Sentado no fundo daquela jaula de madeira, eu observava as pessoas na feira ao meu redor. Todos tranquilos, comprando comida, roupas, jóias... E eu ali, com as mãos e pés amarrados por uma corda de palha que pinicava pra burro, a cabeça ainda latejando por causa da pancada que aquele guarda infeliz havia me dado ao me capturar e as roupas imundas por causa dos três meses que eu passara fugindo das tropas romanas.

Engraçado, há algum tempo, eu era um herói aclamado. Agora era um criminoso condenado a lutar no coliseu até o meu último momento de vida, ou até o estoque de vencedores e feras do imperador acabar. Ajeitei-me no chão de madeira e abaixei a cabeça para evitar o sol escaldante das tardes de verão mediterrâneas.

— Mamãe, por que aquele garoto tá preso? - soou uma voz à minha esquerda.

Inclinei a cabeça levemente e olhei por baixo do braço. Uma garota que devia ter por volta de uns sete anos me encarava com seus enormes olhos castanhos por detrás da saia da toga da mãe. Sorri para ela e a garotinha se escondeu. A mãe nem olhou para mim antes de responder.

— Deve ter roubado alguma coisa. É um desses delinquentes de rua que vive de fazer o caos na cidade. - Levantei a cabeça, indignado, mas não falei nada. Eu não era delinquente! Tá bom. Talvez só um pouquinho.

— Ele parece triste - falou a menina, botando a cabeça para fora de seu esconderijo - Posso ir lá falar com ele?

— Nem pensar! - a mãe bradou agarrando a mão da garota e puxando ela para trás de si. Ela finalmente olhou para mim, seus olhos me fuzilando - Pare de olhar para a minha filha, seu pervertido. - E se voltou para a filha. - Se ele está ali dentro quer dizer que fez algo muito errado e é perigoso para nós ou para o império.

— Meu único erro foi acreditar em mais de um deus - murmurei com o queixo apoiado no joelho.

— O quê disse? - a mãe perguntou me olhando cheia de ódio.

— Eu disse que meu único erro foi acreditar em mais de um deus. Sabe Zeus, Poseidon, Hades...

Alguém agarrou meu cabelo e puxou minha cabeça para trás antes que eu pudesse terminar de listar as divindades olimpianas.

— Eu mandei você calar a boca, graecus! - berrou o guarda que me jogara ali dentro. Ele soltou meu cabelo e agarrou a gola da minha toga, me puxando contra as grades da jaula - Se continuar batendo papo com os passantes, vou cortar a sua língua fora aqui mesmo!

Sustentei seu olhar sem dizer nada e ele me soltou algum tempo depois. Encolhi-me no canto oposto da jaula, me afastando dele o máximo possível enquanto ele se virava para a mãe, ainda com um olhar cheio de ódio voltado para mim.

— Desculpem-nos por isso, minha senhora - falou o guarda. - Estamos esperando reforços para levá-lo para o subterrâneo do coliseu. Gastamos três meses atrás dele.

— Por que tanto tempo? - perguntou a mulher.

— Além de ele ter se refugiado no interior da Grécia, ele afogou três tropas nossas. Ninguém sabe como. - Abri a boca para explicar, mas o guarda me lançou um olhar tão assassino que eu a fechei batendo os dentes.

Ouvi o trotar de cavalos e soltei alguns palavrões involuntários em grego. O guarda me olhou com um sorriso digno de uma das Fúrias de Hades e a mãe, com os olhos cheios de desgosto. A menina pequena era a única que parecia triste por mim.

— A senhora pode vir assistir ao combate, amanhã na hora do almoço - falou o guarda enquanto eu era cercado por soldados romanos, cada um mais mal encarado que o outro. - Esse graecus vai acabar comido pelos leões.

— Ah! Eu irei sim, não se preocupe - a mulher respondeu enquanto observava minha jaula ser atrelada a dois cavalos. A menina continuava me encarando por detrás das pernas da mãe.

Os guardas se afastaram e viraram as costas para mim e para a mulher enquanto montavam seus cavalos. A mãe voltou a procurar algo para comprar na barraca que estava vendo antes. A garota se aproveitou do momento e se aproximou da minha jaula. Trazia algo bem apertado nas mãos.

— Pegue - ela sussurrou quando eu me aproximei dela. - Isso vai te proteger no coliseu.

A garota passou um estilete de osso¹ por entre as barras da jaula e eu o peguei confuso.

—Obrigado, mas... Isso é um estilete - falei. - Como isso vai me proteger?

— Chame por ela, Perseu, e ela virá em seu auxílio - a garota falou.

— Espere! Como você sabe meu nome? - perguntei confuso, segurando as barras com ambas as mãos.

Os olhos da garota brilharam e me vi encarando as reconfortantes chamas de uma lareira em seus olhos. Olhei para a mãe da garota atrás dela, na barraca. Ela me olhou também, olhos cinzentos e cabelos loiros. Pisquei sem acreditar, estava diante não de uma, mas de duas deusas olimpianas! Héstia e Atena.

— Estamos torcendo por você, Perseu. Todos estão. Boa sorte, jovem semideus. E que Nice te abençoe.

— O-Obrigado - gaguejei sem jeito.

A carroça deu um tranco e eu comecei a me afastar, a ser levado para o coliseu. Pisquei e, no segundo seguinte, ambas as deusas tinham desaparecido.

Ainda agarrado às grades olhei para o estilete em minha mão. Tinha algo entalhado nele. Espremi os olhos para ler o que estava escrito. Fazendo sombra no objeto, identifiquei a seguinte palavra: Anaklusmos, Contracorrente.

~X~

Notas de Rodapé:

¹Os estiletes romanos eram ferramentas de escrita feitas de osso ou metal