Mensagem escrita por Amanur


Capítulo 1
Capítulo Único




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...

O sol começava a exibir os primeiros raios do dia, e uma leve cerração ainda cobria a estrada. Ela corria desesperadamente em direção do bosque que delimitava a cidade, como se sua vida dependesse daquilo. Cada passo que dava, seu coração batia mais forte. Ela ofegava tanto em desespero quanto cansaço. Mas suas decisões eram sempre definitivas. Uma vez a feita, jamais voltaria atrás.


Depois de poucos minutos, que lhe pareceram eternidade, ela adentra sua área alvo, percorrendo por entre as árvores altas. Um forte calafrio percorreu por sua espinha dorsal, em contato com aquele ar levemente mais gélido que ali pairava. Enquanto alguns galhos cortavam sua pele, ela sentia que a adrenalina era o combustível principal de sua locomoção. Mas ela sabia que logo ficaria sem forças. No entanto, sua mente dizia que deveria continuar correndo, não importa o que acontecesse.


Enquanto corria, passagens de sua vida iam passando em sua mente. A primeira boneca, a qual ainda tinha guardada com cuidado em seu armário. A primeira bicicleta que ganhara de seu pai em seus seis anos de idade. O primeiro amor. O primeiro encontro seguido de seu primeiro beijo. Os passeios em família. Sua mãe lhe contando histórias para dormir. Seu pai a carregando nos braços quando quebrou a perna. O dia em que conhecera o noivo. A primeira viagem que fizeram juntos. A primeira transa. O dia em que ele pedira sua mão.

Eram todas memórias que guardava como preciosidades.

Na medida em que se aproximava do penhasco, ao final do bosque, ela foi reconhecendo uma forma humana à sua frente. Bem na beira do buraco, onde seria seu destino final.

Aos poucos foi desacelerando os passos, até chegar caminhando ao lado daquele estranho, que permanecia imóvel.

Ela respirou fundo aquele ar puro e fresco, pensando que seria a última vez que o faria. E em seguida, movida apenas pela curiosidade, lentamente, virou o rosto para espiá-lo. Era um rapaz que teria aproximadamente a sua idade. Cabelos lisos, escuros e curtos. Alto e se vestia bem. Ele olhava a paisagem a diante, com um olhar tão perdido quanto sua expressão. No entanto, percebeu que ele segurava um revolver na mão direita, o lado em que ela havia parado. Ela ficara um tanto surpresa, mas em seguida resolveu que não daria bola para aquilo. Afinal, decidira que aquele seria seu último dia. E se ele lhe fizesse o favor de acabar com sua vida, seria melhor ainda. Seria tudo mais fácil.


- Não vai perguntar o que estou fazendo? – sem olhar para ela, o rapaz a questiona ao perceber que ela o olhava.


- Não faz diferença. – ela diz suspirando, voltando seu olhar para a paisagem de campos verdes a frente deles.


- Hm. Pra você também?


Dessa vez ela o olha mais abertamente; apreensiva, entendendo o significado daquelas palavras, que por algum motivo lhe doeram.

- Qual é o seu motivo? – ele pergunta.


- Deus não existe. – ela responde amargamente.


- Tem certeza?


- Sim.


- Como?


- Eu era uma boa pessoa. Sempre me esforcei para tirar boas notas na escola, e ainda consegui entrar na melhor universidade do país. Consegui um namorado maravilhoso que me aceitava com todos os meus defeitos. Me abraçava com um lindo sorriso no rosto, toda vez que me irritava com ele... Ajudava meus pais em casa, que também eram boas pessoas. Sempre me deram tudo o que precisava, e um pouco mais. E ainda ajudavam quem lhes pedisse uma mão. Eram honestos. Pessoas de boa índole que nunca pediram nada em troca.


- Percebe que se referiu a si mesma no passado? – ele pergunta com certa ironia, que ela não deixou se abalar.


- Sim. – ela apenas responde.


- Por quê?


- Morri alguns dias atrás.


- Hm. E então, senhorita fantasma?


- E então? Deus definitivamente não existe! Ele levou todos eles para longe de mim. Todos de uma só vez. Morreram em um acidente de carro... – ela faz uma pausa, para conter as lágrimas que entalara na garganta ao lembrar-se do fato. -... e apenas eu sobrevivi. Como se fosse castigo. Mas pelo o que? Eu não sei!... Consegue imaginar a dor que sinto, por ter perdido todas as pessoas que me era importante de UMA só vez? Consegue sentir a solidão e desespero que sinto, senhor das armas?


- HM. Não sei. Cada um sofre com uma intensidade diferente. Cada um ama com uma intensidade diferente. Cada um é cada um... Mas acho que só porque você não consegue vê-lo, não significa que ele não exista. Talvez... apenas não tenhamos ainda a tecnologia necessária para comprovar sua existência. Assim como não acreditavam que a Terra fosse redonda; entende o que quero dizer? Mas nem por isso quer dizer que Galileu estava errado.


- Hm. Eu costumava pensar assim. Não penso mais. Quero dizer... por que eu? Por que ele escolheu a MINHA família para levar, de tantas outras? Não existe explicação para isso! Apenas que foi uma maldita coincidência dos fatos e atos. Só.


- Eu costumava pensar assim.


- Hm. E o que o fez mudar de idéia?


- Um sonho.


- Um sonho? – ela pergunta incrédula.


- Recebi uma mensagem. Um homem alto, que nunca havia visto na vida, me disse que deveria matar meus pais.


- Por quê? – ela pergunta agora aflita sentindo uma pressão em seu peito.


- Seriam eles ou eu. Se não os matasse, eles me matariam... e eu não queria morrer.


- E por que eles lhe matariam?


- Por que nasci sem o consentimento e planejamento deles. Por pura irresponsabilidade de dois adolescentes sem futuro. Só por isso. – ela percebeu que cada palavra que saia dos lábios daquele rapaz, eram apenas secas. Sem emoção alguma. Era como se ele fosse apenas um boneco, sem alma. Apenas animado.


- E agora você mudou de idéia?


- Os matei. Mas o vazio e solidão que sinto são demais para suportar pelo resto que tenho de vida.


- Irônico.


- Hm. – ele concorda.


- E você fez da morte deles em vão.


- Não creio. Garanto que me agradeceriam. A vida deles era patética de mais.


- Hmmm. E ainda assim você acredita em Deus. Naquele que te deixou com essa solidão.


- Engraçado né? Nossos pensamentos são opostos. Nossos motivos são apostos. Mas temos o mesmo sentimento. E no fim tomamos a mesma decisão.


- Irônico. Coincidência.


- Talvez sim, talvez não. Quem sabe?


 

Os dois permaneceram por mais algum tempo em silêncio, apenas observando os raios de sol banhar a paisagem que contemplavam.


Enquanto ele refletia sobre sua vida, ela se lembrava do passado.

De repente, ele lança a arma para longe, olhando atentamente o artefato desaparecer entre o verde do campo abaixo. E ela apenas o observava sem muito entender o propósito.


- Tem certeza? – ele pergunta por fim.


Ela observou por um breve momento o movimento que os fios negros do rapaz faziam, em reação ao vento que soprava ali do alto. Percebeu o canto dos pássaros que sobrevoavam o bosque, e depois olhou para o céu cheio de nuvens de algodão em suas formas abstratas.

Ela estava cansada. Exausta. Não apenas pela corrida que fez, mas pelos longos dias de lágrimas que derramara, até que secassem toda a sua reserva. Seu espírito estava esmaecendo, assim como o daquele rapaz havia feito há algum tempo atrás. E se não se apressasse, sabia que se tornaria uma boneca, assim como ele havia se tornado.


- Absoluta. – ela responde sem hesitar. Então ele da alguns passos para seu lado, e ainda sem olhá-la, ele alcança a pequena mão da moça que tremia, enquanto a dele permanecia serena e fria.


- No três? – ele pergunta.


- Ok.


- Ok... – ele dá seu último suspiro, mas com indiferença. Enquanto ela fazia o mesmo, para conseguir energias.


 - Um... dois... três.

 

 

 

 

 

 


 

 

Quando ela avança um passo a frente, ele a puxa para si e lhe dá um beijo nos lábios, a fazendo estremecer ainda mais, com a ação inesperada do estranho.


- Eu omiti um detalhe. – ele diz assim que separa seus lábios do dela.


- Hã? – ela pergunta sem entender.


- O mensageiro, ainda me disse que deveria salvar a vida de uma bela moça, que havia perdido a esperança em sua vida.


- Hã? – ela já não conseguia entender o que estava acontecendo.


- O mensageiro era alto. Olhos azuis. Cabelos lisos e compridos, batendo nos ombros. Tinha uma pinta peculiar abaixo do olho, e atendia pelo nome de Pietro. – ao ouvir todas aquelas descrições, ela não conseguiu conter as lágrimas ao reconhecer seu noivo em suas palavras. Aquilo tudo lhe parecia surreal demais para ser verdade. E abalada pela notícia, suas pernas que tremiam sem parar, finalmente perdem as forças a fazendo cair sentada naquela terra úmida do bosque.


- Me diz que isso é mentira! – ela suplica com os olhos afogados em lágrimas.

Ele se ajoelha em frente a ela. Segura com ambas as mãos, a pequena cabeça da moça que parecia ser a criatura mais indefesa que já vira na vida.


- Sinto muito. Mas não gosto de mentir.


Ela o abraça com toda a força que lhe restara nos braços. E ele fez o mesmo, para fazê-la sentir-se segura e aquecida. Para lembrá-la que ainda não estava sozinha no mundo. Que não importa onde for, sempre haverá alguém ao seu lado. E que talvez; apenas talvez, se Pietro o permitisse, e ela o aceitasse... poderia para sempre lhe fazer companhia.

 



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Notas finais do capítulo

Créditos à imagem do banner: http://www.radio.usp.br/especial.php?id=3&edicao=asas