Parola escrita por


Capítulo 21
Ensopado de Caranguejo


Notas iniciais do capítulo

AHOY MARUJOS! Voltamos do hiatus, mil desculpas por ter existido um hiatus, mas as coisas se complicaram com vestibular e etc etc etc ninguém quer saber disso, não é mesmo? PAROLA IS BACK, BITCHES ~O~ Espero que gostem do retorno!



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Trad acordou sentindo a ardência do corte em sua bochecha esquerda. Percebeu que tinha suas mãos atadas à cabeceira da cama. Observou o ambiente mal iluminado cuidadosamente, tentando entender o que havia acontecido. Um balde estava jogado no chã próximo à porta, esclarecendo o motivo de a sua cabeça doer tanto. Na penumbra, segurando a sua faca ensaguentada estava a misteriosa mulher que ele havia resgatado.

Ele a encarou, descrente e intrigado. Não estava com medo ou apreensivo, estava curioso. A situação lhe parecia até mesmo divertida. Trad soltou uma gargalhada que pareceu irritar ainda mais a mulher.

– É assim que me agradece por ter salvado você?- Perguntou ele, ainda com um sorriso no rosto. A moça levantou uma sobrancelha, não acreditou no que havia acabado de ouvir.

– Me salvou? Você? - Tinha um forte sotaque francês, sua voz fazia cócegas aos ouvidos. Aproximou-se sutilmente, passando o dedo indicador sobre o gume da faca. – E como, exatamente, você me... salvou?- Ela sussurrou as palavras de forma sombria, inclinando a cabeça como um predador espreitando sua presa, o sorriso do pirata exitou por alguns instantes.

– Você estava no chão, inconsciente, machucada. Eu literalmente esbarrei em você.- Sua voz tinha um tom leve, embora a faca começasse a se tornar uma ameaça. Uma sombra de reconhecimento passou pelo rosto da moça, mas ela não perdeu a sua expressão, continuava analisando Trad.– A propósito, meu nome é Trindad.

– Bem, Trindad, foi um prazer te conhecer– ela disse, levantando a bolsa onde Trad guardara seu butim. Ele não percebeu que o peso havia desaparecido– mas agora eu preciso ir.

Ela cravou a faca no chão de madeira aos seus pés, acenou e correu em direção à porta, levando consigo todo o dinheiro que Trad havia conseguido com o saque. Essa certamente seria uma história que Po gostaria de ouvir.

☠☠☠

Miguel não podia acreditar que finalmente se reencontrara com o seu patrão. Observou cautelosamente a aparência de Owen, chocado por encontrá-lo naquela situação. Seus ossos se projetavam sob a pele amarela e ulcerada. Seus pulsos tinham feridas recentes e manchas de feridas passadas, que sangravam e coçavam. Suas unhas dos pés e das mãos estavam enormes, assim como seus cabelos e sua barba. Tinha um cheiro terrível e suas gengivas sangravam graças à privação do alimento. Os sulcos em sua face o faziam parecer velho, apesar da sua pouca idade. Os olhos, que antes possuíam um brilho aventureiro, estavam opacos. Owen tinha a cara da morte.

Os dois viajaram por algumas horas, um silêncio perturbador tomou conta da carruagem. Miguel não se atreveria a fazer perguntas pois, dado o estado do patrão, a experiência havia sido dolorosa demais. Owen sempre tivera a sua admiração, desde a época em que eram apenas garotos. A determinação necessária para se submeter a tamanho sofrimento era inimaginável. Levar o seu grande plano adiante, correr os riscos que ele correu, tudo isso exigia muita coragem.

Chegaram à propriedade ao nascer do Sol. Miguel sorriu ao identificar a expressão no rosto de Owen. Em meio a tanta tristeza e sofrimento havia um pouco de nostalgia, felicidade em reconhecer coisas simples como as margaridas do jardim, o braço quebrado da sereia na fonte, o cheiro de ensopado de caranguejo de Nana, a pequena mancha de vinho no tapete da sala de jantar. Owen estava em casa e, embora seja lá o que houvesse acontecido com ele no tempo em que esteve no mar não pudesse ser esquecido ou ignorado, ele sentia que era hora de superar, se fortalecer.

Owen caminhou pela casa, observando tudo que havia deixado para trás. Entrou na cozinha, faminto. Só agora, em meio aos aromas e ao calor, percebera como estava com fome. Sua boca se enchia de saliva, suas narinas farejavam o ar, só então percebeu que ele podia comer. Estava em casa. Tudo ali lhe pertencia. Nada de rações diárias, restrições, porções, quantidades. Nada de carne podre ou água estagnada. Ele não precisava de permissão.

Ou quase. Agarrou um pão fresco de uma cesta próxima ao fogão à lenha. Estava prestes a mergulhá-lo no caldo encorpado que borbulhava à sua frente quando sentiu algo batendo em sua mão. Nana o fitava, com uma mão na cintura e a outra segurando uma colher de pau. Sorria calorosamente, fazendo aparecer pequenas rugas ao redor de seus olhos castanhos. Fios grisalhos começavam a surgir no seu cabelo escuro, dando-lhe um ar de sabedoria, mas seu sorriso ainda era o mesmo. Owen a abraçou com toda a força que ainda possuía, encolhendo no seu abraço. Chorou como criança nos braços de Nana, mas não por um joelho ralado ou um corte no dedo, como costumava fazer na infância. Chorou por seus pais, por sua vida, pelos seus sofrimentos, pela sua vingança. Chorou por Maya.

– Não se preocupe, niño, tudo vai se resolver.- Repetia a cozinheira, embalando Owen e limpando suas lágrimas como havia feito tantas vezes no passado.

Os três comeram juntos como não faziam havia muito tempo. Depois, Miguel levou Owen para o seu quarto, sempre em silêncio. Era um rapaz de poucas palavras, mas tinha um enorme coração. Tomou conta de tudo enquanto o amigo partia em uma jornada que poderia não ter fim. Foi honesto, justo e nunca se esqueceu da promessa que fez ao amigo. Agora, ele estava de volta por tempo indeterminado. Miguel desconhecia os seus planos, mas, mesmo às cegas, prometera ajudá-lo no que fosse preciso. Eles eram irmãos de alma, companheiros até o fim.

☠☠☠

Ao nascer do sol, os tripulantes do Sangue preparavam o navio para mais uma longa jornada. Os homens carregavam barris de mantimentos, vinho, água ou pólvora, remendavam velas, concertavam pequenos danos e arrancavam cracas e outros moluscos do casco do navio. Em breve deixariam Tortuga para trás, rumo à imensidão azul do oceano. Um a um os marujos apareciam, surgidos de tavernas, bordeis ou hospedarias. Sorriam, cambaleando de volta ao trabalho. Essa era a vida que tinham escolhido para si.

Po observou a pequena multidão que começava a se organizar, limpando o convés ou negociando novas armas. Vasculhou com um olho, à procura do irmão. Usava um tapa-olho do lado esquerdo para esconder o grande hematoma roxo que havia conseguido na noite que passou com as três irmãs. Talvez tivesse sido um pouco “ousado demais” com elas. Mas isso não importava mais, queria saber onde Trad estava. O capitão Casto começava a berrar coisas como “Onde aquele vagabundo se enfiou?” e “A única desculpa aceita para desaparecimento é morte!”.

Po começava a se preocupar com o sumiço do irmão quando o viu. Vinha correndo em meio às pessoas na rua do comércio, sendo perseguido por um homem baixinho que gritava alguma coisa. Ponce por pouco não caiu da amurada do navio, tomado por uma crise de riso. Trad corria pelado em meio às senhoras idosas e carroças de pescadores. Os tripulantes do navio logo o identificaram, rindo e assobiando. Aquilo certamente compensava o olho roxo, era o melhor dia da sua vida!

Trad correu pela rampa do navio, o homem da hospedaria no seu encalço, gritando maldições e o chamando de trapaceiro. Ele não teve outra opção. Fora enganado, a garota roubou até as suas roupas! Mas o hospedeiro não parecia disposto a ouvir as suas desculpas. Continuaram correndo pelo escorregadio convés molhado do navio. Foi então que Trad esbarrou no capitão Casto. Todos pararam de rir.

☠☠☠

A recém-nascida espreitava o ambiente novo, fascinada. Era como se tudo fosse um sonho. Como poderia estar tão diferente? Não reconhecia o próprio corpo. Como aquilo era possível, como estava viva? A resposta era simples, não estava. Sabia que estava morta, pois seu coração não batia mais. Sentia-se diferente por dentro, mais fria. Os últimos acontecimentos martelavam em sua cabeça.

Observava a membrana natatória que unia os seus dedos. Translúcida. Seria aquilo um milagre ou uma maldição? Não sabia. Mas dentro de sua cabeça diversas vozes ecoavam, cantavam, choravam. Era como se todas elas tivessem uma só mente, brigando por uma voz. Estavam conectadas, seus pensamentos eram públicos, seus sentimentos compartilhados. Sussurravam palavras de predestinação, confusas e não nítidas. Era como se ela, dentre tantas outras mulheres, houvesse sido escolhida para aquele destino. Elas lhe delegavam uma missão misteriosa, oculta até que a hora chegasse, mas as horas não passavam como na superfície. Ela não sabia a quanto tempo estava ali.

As correntes de água quente e fria, a escuridão da profundidade, tudo lhe parecia natural, necessário. Mas como viver no escuro, submersa, cercada por criaturas que não via, poderia ser natural? A morte era natural. Depois da morte não deveria haver mais nada. Ou deveria?

Ela era como elas agora, tinha uma sede insuportável, torturante. Sentia-se cada vez mais ávida, faminta. Queria sangue. Mas, mais do que isso, queria vingança.


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Notas finais do capítulo

Miiiil desculpas, eu ainda estou um pouco enferrujada, mas vou dar um jeito nisso! Muito obrigada por continuarem até aqui, marujos!