A Esfera dos Renegados escrita por Boo, Jr Whatson


Capítulo 8
O Mundo de Sete Andares


Notas iniciais do capítulo

' Mais sujo que meu chulé. ' — RIBS, Ed.



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Capítulo VIII - O Mundo de Sete Andares

15/03/16 

Ed's POV

A luz dos postes piscava precariamente. A iluminação da rua não era das melhores e o malcheiro invadia minhas narinas, tão indiferente quanto o homem que dormia sob uma caixa de papelão logo adiante. Sua soneca, entretanto, não me concernia. Estava mais preocupado com meus afazeres, e segui adiante, até o local a que me destinava, um enorme sobrado mal cuidado e fedorento.

Conferi o número em um pedaço de papel velho e amassado – ato desnecessário, vide que o local não poderia se identificar menos com o homem que estava prestes a visitar – e segui adiante. Dei três batidas na porta e aguardei. A imensidão do silêncio me incomodava. Por um instante, pensei que ninguém viesse ao meu encontro e que talvez Kaine tivesse desistido da visita. Ou talvez adormecido, não se sabe. Todavia, um rangido se fez presente e uma figura assomou-se em meio à escuridão que assolava o interior do aposento.

Assustei-me, a princípio. A figura detrás da porta era uma senhora esguia e apática. Seus cabelos eram brancos, nariz retorcido e algumas verrugas espalhavam-se por sua face. Era impossível não notar as rugas da senhora, cuspidas e escarradas pelo tempo. Chamá-la de bruxa talvez fosse um elogio, senão mesmo uma ofensa às bruxas. Contemplando-a naquele momento, quase me senti jovial novamente. Quase.

— Ora, ora, veio visitar Kaine, não é mesmo? Boa noite, senhor. Entre, entre, não é seguro ficar aí fora a esta hora — Apertou minha mão conforme entrávamos. Sentia seus ossos frágeis saltando a pele. Prosseguiu então com sua voz rouca e gélida — Temi que não viesse. Esse homem não tem cara de muitos amigos. Para ser sincera, acho que nunca recebeu visitas desde que se mudou para cá há cinco anos. — soltou uma risada aguda. — A propósito, sou a Sra. Ann, mas se preferir me chame de Tia Silvy.

Tia Silvy me acompanhou pelos compridos corredores, despreocupada com a soneca de seus inquilinos ou com os decibéis extrapolados que não muito se adequavam ao horário. Apesar da impressão anterior, mostrou-se educada e simpática. Talvez este lugar não fosse tão ruim quanto imaginasse. Estaria enganado?

Paramos em frente a uma escada. Tia Silvy me orientou como chegar ao apartamento de Kaine e se despediu.

— Qualquer coisa que precisar, estarei aqui embaixo, no apartamento 101, pode me chamar a qualquer hora, não tem problema. — Completou com um sorriso simpático.

Os degraus cantavam em meio a rugidos conforme eu subia. Falhei em um deles e quase caí, mas debrucei-me no corrimão. Arfei por um instante e me levantei em seguida. Olhei para trás. A Sra. Ann não estava mais lá, se transformara em apenas mais um ponto escuro no infinito do corredor.

Segui adiante. Conferi novamente em meu papel amassado. Apartamento correto. Bati na porta três vezes. Mais uma pausa. Não receei dessa vez. A porta se abriu e lá estava ele. Não o homem que conheci, não o homem com quem lutava nas ruas nos velhos tempos. Sua barba não parecia ter sido feita há anos, o estresse e o desgaste o haviam corroído. Segurava uma bengala na mão, creio que só de enfeite, pois duvido muito que um homem como Kaine deixaria o sedentarismo realmente dominá-lo. Poderia convencer os velhos justiceiros, a polícia, o governo, ou a bruxa da Tia Silvy, mas não me convencia. Não passava de uma máscara. O velho babão que me encarava não era nada mais que um disfarce, eu sabia. O Kaine dos velhos tempos estava lá, enterrado em algum lugar.

— Puta merda, Ed — exclamou o velho, com um ar de insatisfação ou desapontamento, mas ainda assim com um sorriso no rosto. Independentemente de sua vontade, estava feliz em rever um velho amigo. Me recebeu com um forte abraço e entrei em seguida. O homem mancava. Trancou a porta atrás de nós, aprisionando-nos na escuridão da madrugada, amenizada pela luz da lua que invadia por uma janela empoeirada. Aliás, tudo ao redor parecia empoeirado. Kaine não devia manter um hábito muito frequente de faxina. Nunca precisou, afinal. — Fique à vontade, meu amigo. — Não me parecia uma opção. Todavia, afundei-me em um velho sofá rasgado. — Quer um café, um refrigerante ou um suco de uva? Desculpe, é tudo que tenho (ou tudo que cabia no meu frigobar).

Aceitei o suco. Servimos-nos e Kaine sentou-se em um sofá próximo ao meu. Com alguma dificuldade, conseguiu acender umas velas e as posicionou em uma cabeceira entre os sofás. Sua visão já não parecia muito boa. Possivelmente fruto da escuridão a qual se condenava todas as noites. Não havia lâmpadas na casa, nem ao menos um velho lustre ou algo do tipo. O local era realmente velho. De repente me senti deslocado dois séculos no tempo. Bebi o suco enquanto encarava meu velho amigo através da luz das velas que bruxuleava. Seu olhar me assustava. Senti um calafrio. Talvez aquele não fosse mais o homem que costumava ser. Seria possível que cinco anos tivessem feito tanta diferença?

— Kaine... — Comecei. Ele sabia do que ia falar. Ria silenciosamente. Desaprovava, me achava tolo. Havia se esquecido dos valores que um dia defendeu com tanto vigor. — Precisamos derrubá-los. A Máfia, os Capangas... Eles ainda estão lá, não podemos simplesmente aceitar que uns homens de terno e gravata do governo os licencie e permitir que roubem, trafiquem e matem ao belo prazer.

— Não. — Respondeu abruptamente, interrompendo meu discurso. — Não posso, Ed. Tenho respeito por você, mas perdeu a cabeça. Acabou. Não somos mais jovens, não somos mais fortes, e pro inferno por me fazer dizer isso, mas não somos mais heróis. Nosso tempo já passou. Nem temos mais o que fazer, diabos! O Estrela já foi preso, os Capangas mortos. A Máfia foi licenciada, eles não traficam mais porra nenhuma. Acha que se ainda agissem de forma criminosa o governo os permitiria trabalhar livremente?

— Kaine, que porra aconteceu com você? Vá me dizer agora que o governo nunca roubou, matou, extorquiu, traficou e cagou em nossas caras? Licenciar a Máfia, tem ideia do que isso significa? A Máfia é uma fudendo organização criminosa, não se licencia uma organização criminosa, cacete! Acha que aqueles homens trabalhando lá são todos honestos? Acha que não estão monitorando e incentivando centenas de ações ilegais pela cidade?

— Acho, porra! Você sabe que o governo nunca olhou a Máfia com bons olhos! Ambos podem ser organizações infestadas de vermes nojentos filhos da puta, mas não, nem por isso são coleguinhas! O Governo nunca aprovou nem nunca vai aprovar ações ilícitas que não sejam feitas por eles próprios!

— Esses cinco anos enfurnado nesta toca te foderam mais do que eu pensava. Seu cérebro está mofando, velho. Tem lido jornais? Os caras de pau nem tem nada a esconder. Metade dos membros da Câmara dos Deputados são ex-agentes da Máfia. O vice-prefeito de Serra Nova, trabalhou onde? Na Máfia. O governador de Mina Velha, sim, aquele velhinho, já foi o líder, adivinhe só, da Máfia! Bingo! De repente, o Governo decide investir 50 milhões de reais em ações da Máfia. Será coincidência ou de repente o Governo decidiu licitar e bancar uma organização ilegal que age há dezenas, se não centenas de anos? Abre os olhos, mané. A Máfia tomou o Governo.

Um silêncio se apossou do momento. Havia dito o que precisava. A mensagem havia sido transmitida, mas o pesar na face de Kaine indicava o contrário. Ele não acreditava. Convicto demais em suas próprias crenças. Cego.

— Fale alguma coisa. — Não obtive resposta. Meu amigo apenas cobria a face com as mãos enquanto balançava a cabeça em desaprovação. Ele queria falar, era visível. Mas tinha pena de mim. Não queria me ferir.

Fiquei puto.

— Fale alguma coisa, caralho! — Levantei-me, com todo ódio do coração e taquei meu copo ainda com uma quantidade significativa de suco de uva em sua direção. Em um átimo, Kaine pegou o copo com a mão direita, a tempo de virá-lo para cima de forma que seu conteúdo não derramasse.

Embora frustrado pelo fracasso de meu ataque, me contentei. Me contentei, pois foi o suficiente para provar que eu estava certo. A bengala, as mancadas, a visão, não passavam de uma máscara, um disfarce. O velho herói ainda estava ali dentro.

— Acalme-se, Ed. Está muito afobado.

Estava. Estava afobado, estava frustrado, estava arrependido, estava puto com tudo isso. Frustrado com meus fracassos. Arrependido porque deveria ter feito tudo isso cinco anos antes, mas não fui forte o bastante para me manter de pé quando devia.

Foi então que Kaine falou. Foi então que esfregou a verdade na minha cara.

— Ouça, Ed. Sei que não quer fazer justiça, não, as coisas não são mais como antigamente. Aprendeu há cinco anos. Verdade, liberdade, justiça? Essas merdas nem existem. Todos esses valores não passam de fábulas, tão reais quanto seu filho que nunca chegou a nascer. Eu não quero ser rude, não quero ser escroto com você, cara, mas ambos sabemos o motivo pelo qual está querendo atacar a Máfia. Sinto muito em ter que te dizer isso. — E tocou na ferida. Aproximou-se e me encarou fixamente. Vi seu olhar duro e pesaroso jorrando a verdade em mim. — Gwen está morta. Morta, ouviu? Não vai voltar.

Antes que me desse conta, estava chorando. Sim, o homem que um dia encarou criminosos, o homem que enforcou Propricius e decapitou o Circolua, chorando, ali, em um apartamento velho em um canto pobre da cidade esquecido na miséria.

— Sei que quer motivos para acabar com eles. Sei que o Governo é corrupto, sempre vai ser, mas o Estrela já foi preso, não há o que fazer. Derrubar a Máfia não vai levá-lo a lugar nenhum, acredite. Sinto muito, Ed. Volte para casa.

Gwen era minha noiva. Mais que isso, minha razão para viver, minha razão para continuar lutando todos os dias naquele inferno. No último dia, quando atacamos a última sede da Máfia, quando a polícia invadiu um prédio de sete andares e prendeu os Capangas, um homem conseguiu fugir em meio ao tiroteio. Fugiu para o Terraço. Quando os policiais chegaram, brincava no precipício, com uma refém presa pelo pescoço. Minha garota. Minha Gwen.

O filho da puta fez um jogo conosco. Queria nos dar uma chance. Tínhamos meia hora para liberarmos todos os criminosos presos aquele dia, — somavam mais de duzentos — e entregar cinco milhões de reais em espécie para cada um (ou seja, um total de um bilhão de reais). Ah, e um helicóptero, claro. Queria seu veículo de fuga. Se cumpríssemos o acordo, soltaria a garota.

Cheguei no terraço. Convenci os policiais a fazer o que pedia, por mais que estivessem certos de que o homem não cumpriria sua promessa (e estavam, de certa forma) e que não valia a pena trocar a prisão de trezentos culpados pela vida de uma inocente. Mas confiaram em mim pela primeira vez. Nunca haviam confiado antes nem nunca mais vão confiar.

Gwen tremia o tempo inteiro. Queria parecer forte, segura, mas temia não só pela sua vida, mas pelo bebê de três meses que carregava dentro de si. A pobre criança nunca chegou a nascer. Conversei com ela, acalmei-a, disse que estava tudo bem, que ia dar tudo certo, que sairíamos dessa e dali a seis meses estaríamos felizes com nosso filho. Não passavam de mentiras. Kaine está certo. Não há verdade, não há liberdade, não há justiça. Não passam de fábulas.

Os criminosos foram soltos. O helicóptero chegou. E o dinheiro. Em meia hora exata. O Estrela subiu no veículo e levou consigo sua refém. Me aproximei.

— O que está fazendo? Cumprimos o acordo! Prometeu soltá-la!

Tolo. Idiota. Por que fiz isso?

O maníaco gargalhou.

— Hahahahaha! Sim, sim, prometi soltar essa vadia! — Ligou o motor. O veículo saía do chão e o Estrela segurava Gwen apenas pelo braço.

— Solte-a, seu filho da puta! É minha mulher! É meu filho! Devolva-os!

— Hahahaha! Fizemos um trato, não foi, queridinho? Soltar os trezentos criminosos presos hoje. Recebi o informe, entretanto, de que dois deles, ah coitados, Potter e Kong já estavam mortos e, bem, não havia como soltá-los. Não posso negar que o soltariam caso estivessem vivos. Então, bem, pensei aqui em uma troca justa. Duas vidas por duas vidas. Os quatro acabam soltos no final, não? — Deu um sorriso e uma gargalhada. Nunca tive tanta vontade de matar alguém quanto naquele momento.

E então ele a soltou. Pulei. Nunca havia calculado nada com tanta precisão. Mas a peguei. Abracei Gwen forte enquanto estava no ar. Ela estava comigo. Seríamos felizes, nós três, sem dúvida a família mais perfeita do universo. Naquele segundo tudo o que existia, tudo o que importava estava lá, naquele espaço de sete andares. Naquele segundo, nos casamos, criamos nosso filho, ficamos velhos e vimos gerações passar adiante. Naquele segundo, nosso mundo existiu. Naquele segundo, houve liberdade, houve verdade, houve justiça.

E de repente blow. Não havia mais Gwen. Não havia mais nada. Minha visão fraquejou e a última coisa que eu vi foi a silhueta de um helicóptero voando para longe. A última coisa que ouvi foi uma risada esganiçada. E então entrei em coma por cinco anos.

— Você venceu. — Voltei ao presente, enxuguei minhas lágrimas e me levantei. — Vou para casa, está certo. Chega dessa merda.

Kaine me levou até a porta do apartamento.

— Me desculpe por qualquer coisa. Quer passar a noite aqui? Não é muito seguro sair a esta hora.

— Tranquilo, estou bem. Ninguém me matou na vinda, não me matam na volta.

Demos-nos um abraço de despedida.

— Se cuida, Ed.

— Você também. E vê se dá uma varrida nessa casa. Ah, sim. A porta da frente está aberta ou eu preciso pegar a chave com a Tia Silvy?

— Quem diabos é Tia Silvy? Só os moradores têm a chave lá de fora. — Kaine riu. Não correspondi. Nos fitamos. Algo estava errado.

Então tudo aconteceu muito rápido. Alguém bateu na porta. Um vento frio entrou pela janela e as velas se apagaram. O chão começou a tremer. A casa toda estava um caos. Ouvia vizinhos berrando. Não conseguia enxergar. Tiros me ensurdeceram. Um zumbido explodia meu ouvido e identifiquei um grito agudo ao fundo. Os lábios de Kaine denunciavam seus berros. Rastejei até a janela. Abri.

Sobrevivi a uma queda de sete andares. Dois seriam mole. Vi Kaine sendo arrastado porta afora por uma figura monstruosa, mas não posso dizer o que era, minha visão estava me pregando peças. Pulei ou caí, não lembro mais.

E então tudo explodiu.


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Notas finais do capítulo

Jr -sqn
:251 (22/07/2015)



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