Nas entrelinhas escrita por Elizabeth Gray


Capítulo 4
3, parte 2


Notas iniciais do capítulo

Na verdade, eu queria postar este capítulo juntamente com o próximo, mas me atrasei na última semana e decidi postar logo só para não deixar de atualizar a história. Desculpem a demora. Boa leitura.



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ATO III

Não lembro bem o que sonhei durante a tarde, mas posso garantir que era algo bom. Sorri antes mesmo de abrir os olhos. Espreguicei-me na cama, esticando as pernas e os braços. Soquei alguma coisa. Nezumi estava sentado ao meu lado, fitando-me.

— Ah? Que horas são? Não me diga que dormi demais e que você foi ao mercado sem mim.

— Não. Na verdade eu vim te chamar, mas percebi que você sorria em seus sonhos e decidi esperar que você despertasse sozinho.

— Ah, entendo. Obrigado. — levantei-me e caminhei até meu casaco enquanto coçava a cabeça, ainda meio sonolento.

— Shion... — ele me agarrou por trás, os braços cruzados em minha barriga. Encostou o rosto em minhas costas, me abraçando com força.

— Nezumi, o que é isso? Você está bem? — perguntei surpreso.

— Sim, é só que... Você é lindo enquanto dorme — disse calmamente, ainda agarrado às minhas costas. Peguei suas mãos e as trouxe para meu peito.

— Olhe, Nezumi. Preste atenção. Apenas seu abraço fez meu coração bater mais rápido. Consegue sentir? — ele tateou meu peito, procurando desabotoar um ou dois botões, de modo que pudesse abrir caminho entre a camisa até minha pele. E assim o fez, as mãos grandes e macias me tocando logo acima do coração.

— Agora posso sentir melhor — disse, a respiração quente em minha nuca. Então deslizou a outra mão pela minha clavícula até o pescoço. Afastou-se e virou meu rosto em sua direção, me beijando gentilmente enquanto acariciava meu peito sob a camisa. Senti um arrepio tomar conta de mim, fazendo os pelos de minha nuca se arrepiarem.

— Nezumi, não faça isso quando estamos prestes a sair de casa — pedi baixo, quase suplicando.

— Desculpe, não pude resistir— confessou, enquanto ria baixinho. — Bom, precisamos ir — tirou a mão de dentro da minha camisa e se afastou, pegando seu casaco e indo para a porta.

Só quando saí pude perceber o quanto eu dormira. Certamente já passava das quatro da tarde. Caminhamos lentamente rumo à área comercial da cidade, enquanto conversávamos sobre livros, música e arte. Nezumi me mostrara outro lado da vida, um lado que eu nem imaginava existir. Mostrou-me um lado pobre e miserável, difícil, mas me fez ver a beleza que existia ali. Porque a possibilidade de ser feliz prevalece sobre as adversidades em nossas vidas. E agora eu podia ver isso. Podia ver nos sorrisos daqueles miseráveis que passavam por nós. E naquele momento eu soube que não importa o quanto a cidade nos rebaixasse, sempre nos ergueríamos para seguir em frente.

— Shion, chegamos. — Estávamos frente a uma rua cercada de barracas, pessoas por todos os lados, diferentes timbres e tons nas vozes daqueles que compravam e vendiam. Havia um beco do lado direito, ao lado de uma barraca que vendia peixes com uma aparência estranha.

— Nezumi, não seria melhor virmos amanhã de manhã? Poderíamos comprar alimentos melhores.

— Shion, nunca há alimentos melhores — lamentou, um sorriso triste no rosto — Veja, quando você morava na No.6, havia uma espécie de feira matinal, certo? Então, quando essa feira termina, todos os alimentos “ruins” que sobram são jogados no lixo e transportados para fora da cidade. Algumas pessoas encarregadas do transporte firmam acordos com os vendedores daqui, que recebem as sobras e, em troca, efetuam o pagamento, que pode ser feito em dinheiro ou qualquer outra coisa que os transportadores desejarem, como drogas ou mulheres. Isso varia entre os acordos.

Fiquei atônito com aquilo. Isso era nojento. Éramos humanos comendo o resto de outros humanos. Éramos ratos vagando pelo lixo da No. 6. Nezumi certamente percebeu aquela expressão em meu rosto, pois o segurou com as duas mãos e levantou minha cabeça, me obrigando a olhar em seus olhos.

— Está tudo bem, meu pequeno. Não fique assim. Um dia, quem sabe, vou acabar com aquela cidade e dar uma vida digna para esse povo que tanto sofre. — havia uma sombra de ódio em seus olhos — Eu prometo isso a você. Vamos virar este jogo.

Baixei os olhos novamente. Ele soltou meu rosto e passou a me fitar. Eu não tinha dúvidas do que escolheria. Não mais. Eu era completamente apaixonado por Nezumi e estava determinado a ficar com ele pelo resto de minha vida. E isso era um fato. O que eu não entendia era sua obcessão pela cidade. Meu objetivo é salvá-la e não destruí-la. Não depois do que vi em meu sonho. Mas eu jamais voltaria a morar naquele lugar. Amo minha mãe e sinto falta de Safu, mas não poderia viver cercado por um muro de mentiras novamente. O choque de realidade que tive...

— Shion, algum problema?

— Não é nada. Enfim, o que devemos comprar? — tentei disfarçar.

— Certo... — ele me encarou, sabendo que tinha algo errado. Enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel amassado. — Aqui está sua lista. Vamos dividir as compras. Eu cuido das carnes e dos não perecíveis e você seleciona os legumes e verduras. Está tudo na lista e aqui está o dinheiro. Acho que será o suficiente — ele me deu um saquinho cheio de pecinhas de bronze. — Me encontre nesse beco em quarenta minutos, entendeu?

— Entendi — respondi confiante. Era a primeira vez que ele permitiu que eu andasse sozinho pela cidade. Tudo bem que eu estava num mercado e não iria muito longe mas ele confiava em mim. Confiava que eu poderia cuidar de mim mesmo. Não, era mais do que isso. Ele acreditava em mim.

— Shion, tome cuidado — falou receoso — Não dê confiança a ninguém. Não fale com estranhos que não sejam os vendedores. Ao menor sinal de problema, fuja. Não hesite em correr.

— Certo, não precisa se preocupar. — Nossa, ele parecia minha mãe.

— Shion, eu estou falando sério. Corra o mais rápido que puder.

— Eu já entendi, Nezumi — estava começando a ficar incomodado com sua excessiva preocupação.

— Shion... Está com a faca que eu te dei?

—Não acho que será necessário...

— Está ou não?

— Sim. Sempre a levo comigo, como você mandou.

— Ótimo. Use apenas em último caso mas não hesite, porque ninguém aqui pensará duas vezes antes de te matar — advertiu, mais uma vez deixando claro a forma como pensava — Bem, esteja aqui em quarenta minutos. Não se atrase.

— Não vou.

Ele sorriu, assentindo. Depois virou e caminhou entre as barracas, abrindo espaço entre as pessoas discretamente, olhando os produtos disponíveis em ambos os lados. Observei-o até perdê-lo de vista, então comecei com minha lista. “Batata, cenoura, alface, rúcula, espinafre... Bom, não será difícil encontrar esses itens”.

Passei em diversas barracas, comparando a qualidade dos produtos na medida do possível. Alguns vendedores sorriam. Outros me olharam de um jeito estranho. Selecionei os legumes e as verduras menos murchas que pude encontrar, paguei e caminhei até o beco ao lado da barraca de peixe. Olhei no relógio. Ainda me restavam dez minutos. Encostei-me no muro e decidi esperar.

Comecei a observar as pessoas até que duas garotas me chamaram a atenção. Estavam mais bem vestidas do que os demais, os cabelos negros como a noite esvoaçando sobre seus ombros. Sorri. Um homem mais velho com casaco de couro e barba bem aparada, provavelmente o pai das meninas, disse algo para elas, que se viraram e me encararam. Ele as deixou ali e caminhou para o outro lado, enquanto elas vinham em minha direção.

— Boa tarde, rapaz ­— a mais alta, com vestido florido, falou primeiro.

— Boa tarde — respondi educadamente.

— Qual o seu nome garoto? — perguntou a outra, que usava um belo laço azul na cabeça.

— Ah, meu nome é Shion — respondi. Nezumi disse para não dar confiança para ninguém, mas elas pareciam tão gentis. A voz delicada, os gestos suaves. Aparentavam ter a mesma idade que eu.

— Muito prazer, Shion. Que belo nome você tem. — disse a mais alta sorrindo.

— Mas que cabelo diferente — a moça do laço olhava diretamente para mim. De repente ela ergueu a mão e tocou meus cabelos ­— Eu gosto de coisas diferentes.

— Muito obrigado — Sim! Elas eram gentis!

A do vestido florido abriu a boca para dizer algo quando um assovio alto rasgou o caos que era a conversa da multidão. O homem de antes retornara, agora acompanhado de um amigo da mesma idade.

— Ah, que pena. Fica para a próxima — disse a moça do laço, antes de se virarem e irem embora.

Era interessante observar o caminhar de uma mulher. A postura delas era completamente diferente da dos homens. Havia muito mais balanço nos quadris e delicadeza em cada passo. Lembrei-me de Safu, de quando voltávamos juntos para a casa depois da escola. Sorri. Aquilo foi muito agradável e nostálgico.

Corri meus olhos pela multidão e avistei Nezumi caminhando em minha direção. Ele carregava apenas uma sacola na mão esquerda.

— Nezumi! — gritei, levantando as sacolas com as compras que tinha feito. — Olhe, consegui encontrar tudo!

Ele agora estava mais perto. Só então percebi a expressão fechada em seu rosto, os punhos cerrados ao lado do corpo.

— Nezumi... — ele passou pela minha direita sem nem ao menos olhar na minha cara, agarrou meu braço e me arrastou para o beco. — Espere! O que você está fazendo? — viramos numa viela perpendicular àquele.

Não havia ninguém ali. Ele soltou a sacola que segurava e me empurrou de costas contra a parede, o que fez com que minhas compras se espalhassem pelo chão. Apoiou o braço no muro, ao lado da minha cabeça, e agarrou meu braço com a outra mão.

— Shion, que merda foi aquela? — estava completamente enfurecido, os olhos cinzentos lampejando de raiva. Eu nunca o vira daquele jeito.

— O quê? Do que você está falando?

— Você sabe muito bem do que estou falando, seu imbecil. — ele apertava meu braço — O que foi que eu disse sobre não confiar em ninguém? O que elas disseram para você?

— As garotas? Não foi nada demais, eu juro. Elas só perguntaram meu nome e disseram que meu cabelo era diferente — falei o mais calmamente que pude. Meu braço doía.

— E o que mais, Shion? O que elas disseram antes de sair?

— Nezumi... Você está me machucando. — Olhei fundo em seus olhos. Ele parou. Sua expressão mudou completamente. Era um misto de raiva e insegurança, cobertas por uma sombra de arrependimento. Liberou a pressão em meu braço direito e agarrou o outro. Agora ele me segurava contra a parede.

— Shion, você não respondeu minha pergunta.

— Elas disseram algo como “fica para a próxima”, não entendi direito.

— Você é mesmo tão idiota? Será que não percebeu que eram prostitutas? — seu tom de voz estava aumentando — E por que você as olhava daquele jeito? Diga-me, Shion, por quê?

— Achei interessante o modo como elas andavam — admiti, mantendo a calma em minha voz.

— O quê? Só pode ser brincadeira. Não posso acreditar no que estou ouvindo — ele estava irritado, mas não apertava meu braço.

— Nezumi, o que você está...

— Shion, preste atenção no que vou te dizer — baixou o tom de voz, falando calma e incisivamente — Você não pode olhar para as outras pessoas. Você só pode olhar para mim, entendeu? — ele olhava dentro dos meus olhos. Eu podia ver a raiva nele, mas pude também ver a insegurança e o medo.

E subitamente entendi tudo. Sorri gentilmente para ele, que arregalou os olhos, surpreso, e me sacudiu na parede.

— Shion, qual é o seu problema? Não se atreva a rir de mim porque eu não estou brincando. Tire esse sorriso estúpido da cara e diga alguma coisa.

— Nezumi... — suspirei, do modo mais doce que pude — Eu te amo mais do que ontem e certamente menos do que amanhã — então me inclinei e o beijei suavemente, enquanto ele, aos poucos, soltava meus braços.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo foi um pouco engraçado de escrever. Nezumi ciumento é puro amor! Coloquei uma referência a um doujinshi que achei perdido na internet. Eu gosto de referências!! Bom, é isso. Espero que tenham gostado e até a próxima!



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