Nas entrelinhas escrita por Elizabeth Gray


Capítulo 10
Final


Notas iniciais do capítulo

Aeeeeeeeee, último capítulo!! Demorei mas está aqui. Mas, bem, devo admitir que fiquei chorosa por ter terminado. Foi minha primeira fic, afinal, e eu adorei escrevê-la.
Bem, sobre o capítulo: este foi especialmente difícil de escrever. Não por ser o último, mas porque escrever uma história que se passa durante uma história é como pintar um quadro dentro de uma moldura. O autor não tem tanta liberdade para escrever. E para desenvolver algumas cenas, tive que descrever e adequar algumas partes do mangá e do anime à história.
Enfim, chega de explicações. Vamos ao capítulo (que ficou meio grande, a propósito).
Boa leitura!





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Os dias que se seguiram pareciam não ter fim. Nezumi saía cedo para trabalhar e só voltava tarde da noite. Não conversamos muito durante esse período. Ele nunca foi um rapaz extrovertido, devo admitir, mas estava mais calado do que o normal. Contava-me sobre alguma história que lera recentemente, perguntava-me como havia sido meu dia e quando eu visitaria Inukashi. Tentei puxar assunto, perguntando qualquer coisa sobre literatura e arte, recebendo como resposta o típico revirar de olhos que ele me dava quando subitamente se lembrava de que eu era um completo leigo nesses assuntos. E eram esses momentos que faziam meu coração se acalmar um pouco, pois era assim que Nezumi agia normalmente. Além disso, qualquer tempo livre era usado para colocar sua leitura em dia ou para fazer o controle de alimentos, acompanhado-me sempre que possível ao mercado. E quando nada disso precisava ser feito, tudo o que ele fazia era ficar sentado numa pedra a poucos metros de nossa casa, mirando o céu até que o sol resolvesse se esconder no horizonte; mirava a paisagem com uma expressão séria e um olhar distante, olhar este que só então descobri que ele podia ter. Quando percebia que estava sendo observado, ele se virava pra mim e sorria; um sorriso deslumbrante que pintava seu belo rosto, diferente de todos os outros que ele tinha. Mas seu olhar permanecia distante, seu sorriso continuava vazio, e todas as vezes em que lhe perguntava se havia algo errado, ele me lançava o mesmo olhar e o mesmo sorriso, dizendo para eu não me preocupar, dizendo que tudo ficaria bem. Então, voltava os olhos prateados para o horizonte, permitindo que seu rosto voltasse a ser manchado por aquela expressão indecifrável. Uma expressão que fazia meu coração vacilar em dúvidas.

Nezumi não me tocou durante aqueles dias.

*

Recebi o bilhete pouco tempo depois por um dos cães de Inukashi. Não faço ideia do que Rikiga teve de fazer para que a garota lhe concedesse um favor, mas era sobre ele que o bilhete falava. No papel, um pequeno texto, que se resumia a declarações exageradas de afeto por parte do homem e um pedido para encontrá-lo na cidade.

Entreguei o bilhete para Nezumi, que rapidamente leu e estalou a língua enquanto me devolvia o papel.

— Tsc, esse velho gosta mesmo de você, huh?

— Eu posso ir?

— Pode, mas tenha cuidado, por favor. E não pense que pode confiar naquele velho pervertido, certo?

— Ah, Nezumi, ele tem o jeito dele, mas no fundo é um bom homem – comentei, sorrindo gentilmente.

Ele me observou por alguns instantes, até que respondeu:

— Você definitivamente é um cabeça de vento, Shion. – Fechou o livro sobre o colo e o guardou numa prateleira, voltando-se para mim em seguida. – E então? Você vai agora? Eu posso te deixar lá, se quiser.

— Mas você não tem que ir ao trabalho?

— Eu vou ao teatro hoje. Te deixo com Rikiga e sigo para lá.

— Certo, vou pegar meu casaco, só um minuto.

*

Conversamos casualmente durante todo o caminho, enquanto eu observava o céu e a paisagem. As árvores já começavam a perder suas folhas, a grama já se tornava mais escassa e uma brisa fria rodopiava ao nosso redor. A natureza montava o palco para o inverno que aos poucos se intensificava. Estremeci quando um vento forte bagunçou meus cabelos. Nezumi, ao ver meu ato involuntário, tirou a capa de superfibra que sempre levava ao redor do pescoço, envolveu o braço em minha cintura e puxou-me para si, jogando o tecido pesado sobre nossas costas. Quando eu estava prestes a dizer que aquilo não era necessário, ele se inclinou sobre mim e beijou minha testa.

— Você devia ter trazido um casaco mais pesado, Majestade. – Observou-me como se estivesse analisando as próprias palavras, quando de repente disse em tom risonho – Você realmente está parecendo um rei agora.

Pensei naquilo por um tempo. Quando finalmente entendi o que ele queria dizer, abracei-o por baixo da capa e belisquei sua cintura.

— Imbecil – murmurei, revirando os olhos. Ele abafou o riso e continuamos nosso caminho até chegarmos ao mercado.

Rikiga estava apoiado contra a parede de um estabelecimento que vendia aparelhos eletrônicos falsificados. Vestia o típico paletó desbotado, com uma camisa branca e uma elegante gravata borboleta carmesim. Olhava impaciente o relógio de pulso, murmurando palavras que pareciam desaprovar meu suposto atraso. Assim que me viu, seu rosto se iluminou num sorriso largo, que desapareceu logo em seguida ao reconhecer a pessoa ao meu lado.

— Shion, você deveria rever seu círculo de amigos – disse, os olhos fixos nos de Nezumi, que prontamente se endireitou ao meu lado e colocou o braço sobre o meu ombro.

— Ora, eu concordo. Comecemos, então, por você. Com o que trabalha mesmo, velho? – Provocou, os lábios meio curvados num sorriso desafiador.

Rikiga encarou o rapaz com uma expressão dura, soltando um suspiro pesaroso em seguida:

— Até hoje eu não consigo acreditar que você seja assim, Eve. O que te sobra em talento, te falta em educação. Espero que não tenha corrompido o coração puro de Shion.

Nezumi ouviu cuidadosamente aquelas palavras e assim que o homem terminou de falar, puxou-me para mais perto de si e sorriu malicioso.

— Ah, digamos que ele não se importou muito com isso – respondeu, encarando fundo os olhos do mais velho.

— O que você quer dizer com isso, moleque?

Rikiga estava claramente irritado. Olhava Nezumi com desprezo, enquanto este insistia em provocá-lo com a mão em meu ombro e um sorriso sarcástico no rosto. Quando ameaçou dar uma resposta, eu o detive.

— Certo, Nezumi. Vamos parar logo com isso – os dois me olharam e o homem assentiu, enquanto o outro estalava a língua e se afastava um pouco de mim. ­– Então, muito obrigado pelo convite, Rikiga. É muita gentileza sua querer passar o tempo livre comigo.

– Ah, isso não é nada. Sabe que eu te considero como a um filho. – confessou, sorrindo gentilmente e desfazendo o sorriso ao se virar para Nezumi – Você devia aprender mais com ele, Eve. Diferente de você, Shion é um ótimo garoto. Tem respeito pelos mais velhos, é educado e gentil. – Sua voz imediatamente assumiu um tom tristonho quando ele continuou – Karan... Ela soube criá-lo tão bem... Karan...

E de repente me abraçou. Levantou-me do chão e me sufocou num abraço apertado.

— Oh, Shion, você é tão parecido com ela! – Murmurou emocionado.

Ele cheirava a cigarro, álcool e perfumes caros. Aquilo, juntamente com o abraço apertado, impedia-me de respirar. Procurei Nezumi pelo canto do olho e assim que o vi, lancei-lhe um olhar que dizia qualquer coisa parecida com "socorro".

Mas o que recebi não foi nada parecido com ajuda. Ele apenas ficou parado, a sobrancelha arqueada num olhar de tédio, quando bocejou exageradamente e disse:

— Certo, Shion, você está entregue. Preciso ir agora. Bom passeio.

Rikiga afrouxou o abraço e eu me afastei, virando-me para ver Nezumi caminhar lentamente na direção oposta. Corri atrás dele e lhe segurei o braço, fazendo-o virar para mim.

— Obrigado por ter me acompanhado, Nezumi.

Os olhos prateados me fitaram e eu pude jurar que os vi brilhando, mas tudo o que ele fez foi desviar o olhar para o chão e dizer:

— De nada. Até mais – e voltou a andar, acenando com a mão por cima do ombro.

Fiquei a observá-lo até que sua silhueta fosse consumida pelo mar de gente.

— Eve é muito frio, não acha? – Perguntou Rikiga, que devia estar parado ao meu lado há algum tempo.

— Não... Você pode não acreditar em mim, mas no fundo ele é uma pessoa cheia de sentimentos. – Essa era uma das coisas que descobri sobre Nezumi. De fato ele aparentava ser frio e calculista, evitando ao máximo atitudes e gestos desnecessários. Mas sob aquela fortaleza construída para assegurar a própria segurança, havia um garoto bom e gentil, capaz de abrigar um completo estranho em sua própria casa; de se envolver com ele e fazer de tudo para protegê-lo. Capaz de amar. Rikiga me observava intensamente, como se tentasse ler meus pensamentos. Sorri para ele de modo gentil e continuei. – Enfim, vamos andando?

— Ah, sim. Vamos por aqui.

*

Rikiga era um bom homem. Passamos por diversas lojas, ele me apresentou alguns vendedores que chamava de "amigos" e comprou algumas revistas no que aparentava ser uma banca da cidade.

Depois de andarmos e conversarmos por cerca de duas horas, ele se virou para mim e me olhou da cabeça aos pés.

— Shion, esse casaco é muito fino. Eve deveria te dar um casaco mais pesado. – Disse, colocando a mão sob o queixo como se ponderasse a situação. Então, seu rosto se iluminou num sorriso vitorioso e ele estalou os dedos no ar – É isso! Vamos comprar um casaco pra você!

— O-O QUÊ? Não precisa, Rikiga. Muito obrigado, mas eu não...

— Bobagem, garoto. – Agarrou meu braço e começou a me guiar pelas barracas. – O inverno aqui é rigoroso. Você tem que estar bem protegido. Venha, Shion.

Antes que eu pudesse protestar, ele já estava me arrastando pelas ruas estreitas do distrito ocidental.

Após andar por mais duas quadras, ele virou numa rua estreita e parou. Seus olhos correram toda a extensão dos casebres, até que avistou algo e se virou para mim.

— Ali, Shion. Chegamos.

Uma placa de madeira – descascada e maltratada pelo tempo e pela chuva – informava que aquele estabelecimento vendia "roupas de qualidade por um preço justo". Olhei para Rikiga, numa última tentativa de fazê-lo repensar sua proposta, mas ele simplesmente me puxou pelo braço e me empurrou para dentro da loja.

— Alguém em casa? – Chamou Rikiga.

Uma mulher corpulenta de meia idade saiu detrás dos balcões, esboçando um grande sorriso amarelo ao ver o homem atrás de mim.

— Rikiga! Que prazer em vê-lo! O que me deve a honra de sua ilustre visita?

— Ora, não é necessária toda essa formalidade. Queria comprar um casaco.

— Oh, sim, sim. Um casaco para outra de suas garotas? Deixe-me ver...

— Não. Hoje eu quero um casaco para este rapaz aqui - respondeu, colocando a mão sobre minhas costas e gesticulando para que eu desse um passo à frente.

Os olhos da mulher passaram de mim para Rikiga e voltaram para mim, como se estivesse a deduzir uma suposta relação parental entre nós dois. Depois sorriu e me chamou, correndo para um grande monte de casacos sobre o balcão.

— Aqui, garoto. Temos vários casacos de ótima qualidade.

Ela pegava diversos modelos de casacos, jaquetas e blusas e os estendia no ar, jogando-os num canto qualquer quando eu desaprovava os modelos. Depois de ver os casacos da pilha principal, ela tentou pegar outro monte sobre uma prateleira, mas acabou por derrubá-lo sobre meus pés.

— Oh, desculpe garoto – murmurou enquanto pegava as peças do chão, olhando preocupada para Rikiga que lhe lançava um olhar insatisfeito.

Abaixei-me para ajudar a mulher a recolher as roupas, enquanto procurava algo que me agradasse. De repente, meus olhos pararam sobre um belo casaco cinza claro com um remendo no ombro esquerdo.

Não pode ser.

Apertei a peça entre os dedos e a tirei do monte de roupas para poder observar melhor e confirmar o que já desconfiava.

— Ah, isso é um casaco feminino, garoto. Acho que seria melhor este aqui...

— Onde conseguiu isto? – Perguntei baixo, tentando manter a calma em minha voz.

— Ora, por que isso importa? Não vou dizer onde consigo minhas mercad...

— ONDE VOCÊ CONSEGUIU? – Gritei.

A mulher me olhou assustada, enquanto Rikiga esperava perplexo uma explicação. Por um momento não pude pensar em mais nada. Meu corpo tremia de raiva e de medo e, aos poucos, todas as coisas ao redor foram perdendo o foco. Tudo o que eu podia ver era aquele casaco familiar em minhas mãos e o jovem rosto de sua antiga dona em minha mente.

— ESTE CASACO PERTENCE À MINHA AMIGA. ONDE CONSEGUIU ISSO?

A mulher rapidamente desfez a expressão de susto e assumiu um olhar presunçoso, olhando-me com desdém quando respondeu:

— Não conheço sua amiga, moleque, mas não tenho que dar satisfações a você. Agora, se me der licença...

Avancei em sua direção, sendo logo detido por Rikiga, que a empurrou contra a parede enquanto agarrava a gola de sua camiseta.

— Acho bom você responder às perguntas do garoto – rosnou.

Ela olhou dele para mim, provavelmente pensando em como a situação chegara àquele ponto, mas não deu sinais de que responderia qualquer pergunta. O homem logo notou isso e começou a pressionar o pescoço da mulher, que tossiu e movimentou a boca minimamente:

— I... Inu... Inukashi.

Assim que ouvi o nome, disparei contra a porta de saída, segurando firme o casaco de Safu bem próximo ao coração.

*

Enquanto corria até o hotel de Inukashi, uma corrente de pensamentos não parou de fluir por minha mente. Por que o casaco de Safu está aqui no Bloco Ocidental? Ela jamais se desfaria dele, era seu casaco favorito. Será que ela... Não, isso é impossível. Ela foi passar dois anos fora da cidade, não tem como ter vindo para cá. E mesmo se tivesse, o que faria uma jovem como Safu cujo nível de inteligência lhe assegurou uma casa na área mais nobre da cidade vir para o Bloco Ocidental?

Aquele pensamento me fez tremer. Algo me apertou o peito, uma angústia que fazia minhas pernas vacilarem durante a corrida. Mas eu não queria pensar no pior. Precisava encontrar Inukashi e exigir explicações.

Chegando ao hotel, fui recebido por parte da matilha de cães, que logo perceberam meu estado emocional e abriram espaço para que eu pudesse passar. Subi as escadas que levavam ao escritório principal, onde Inukashi estava sentada numa cadeira, bebendo lentamente seu café com dois grandes cães de cada lado da mesa.

— Ora, ora, se não é meu cabeça de vento favorito. O que te traz aqui hoje? Não me lembro de ter te chamado – disse, enquanto dava um longo gole em sua bebida.

Joguei o casaco sobre a mesa, derrubando parte dos papeis depositados sobre ela. Os cães se levantaram e assumiram uma posição de guarda, rosnando baixo enquanto exibiam suas fileiras de dentes amarelos e pontiagudos. Inukashi olhou para o objeto recém-lançado e depois para mim, dando-me um sorriso irônico ao dizer:

— Um presente? Agradeço a gentileza, Shion, mas a peça não faz muito meu estilo.

— Quero saber onde conseguiu isso, Inukashi. – Expliquei, dando um passo à frente e observando os cães fazerem o mesmo, rosnando mais alto em resposta ao meu movimento imprudente. Olhei para a garota, que logo gesticulou para os cães se afastarem. Estes, fielmente obedeceram, deitando novamente ao lado da mesa. Voltou-se para mim.

— E por que quer tanto saber? É só um casaco, não tem nada demais nele.

— Este é o casaco de uma amiga minha, Inukashi. Safu... Ela cresceu comigo... Somos amigos de infância.

— Espere! Amigos de infância? Você quer dizer de dentro dos muros da No.6?

— Sim. Ela morava em Chronos comigo, antes de eu perder meus privilégios. Inukashi... Por favor... – Pedi, as palavras saindo num fio de voz.

Ela engoliu em seco. Olhava para mim confusa, como se estivesse escolhendo com cuidado cada palavra. Meu coração apertou. Meus punhos cerraram ao lado do corpo e senti os cantos dos meus olhos queimarem.

— Por favor... – insisti, esperando pelo pior.

Ela colocou a xícara sobre a mesa e suspirou. Depois olhou para mim e disse:

— Eu vou te dizer a verdade, Shion. Mas, por favor, não vá fazer nada imprudente. – Assenti e ela continuou – Consegui esta blusa com um funcionário do instituto correcional.

Não me mexi. Não consegui mover um músculo. Apenas fiquei ali, encarando a garota à minha frente. Não. Não pode ser. Isso não é possível. Safu. Ela está no instituto correcional. Por quê? Por que ela? Por quê?

Aqueles pensamentos me derrubaram. Safu estava presa naquele lugar horrível, sem ter feito absolutamente nada. Aquilo não podia estar acontecendo. Não com ela, a pessoa que esteve ao meu lado desde quando éramos pequenos. A única amiga que tive na vida, que não me deixou quando perdi o direito de viver em Chronos; a única que permaneceu comigo sem pedir nada em troca. Minha melhor amiga. Uma irmã. Não, ela não. Por favor...

"Shion...", ela chamava com a voz embargada pelas lágrimas que lhe escorriam pela face, "Me ajude", pedia. E, de repente, uma gota pesada escorreu pelo canto do meu olho.

Inukashi me encarava temerosa, abrindo e fechando a boca diversas vezes na tentativa de me convencer a desistir da ideia que eu tinha em mente.

Enxuguei a lágrima de meu rosto e disse:

— Obrigado, Inukashi. Até mais.

Eu já estava a meio caminho da porta quando ouvi uma cadeira sendo empurrada bruscamente para trás. Não me virei.

— SHION! – Gritou. – O que você pensa que está fazendo? – Permaneci quieto, parado sob o batente da porta. – Ela já deve estar morta. Não há nada que você possa fazer.

Aquelas palavras doíam. Safu morta injustamente, uma garota que tinha um futuro brilhante...

— Não há como ter certeza – disse, e saí do cômodo. Passos apressados me seguiram.

— Shion, por favor... Eu não vou falar de novo. Este é meu último aviso: não faça isso.

Inukashi era uma boa pessoa. Era gentil, esperta e cuidava muito bem de seus cães. De repente fiquei feliz por tê-la conhecido. Virei para ela e lhe dei meu melhor sorriso.

— Inukashi, obrigado. Por tudo. – E desci as escadas, saindo pela porta do hotel sem olhar para trás, enquanto ouvia a garota praguejar meu nome e amaldiçoar todos os santos à beira da escada.

Saindo para a luz de fim de tarde, comecei a caminhar rumo ao esconderijo. O céu estava limpo, pintado com tons róseos e alaranjados enquanto as nuvens pareciam ser feitas de algodão. Aquela paisagem calma era o completo oposto do que se passava dentro da minha cabeça, agora atormentada por diversos pensamentos. E em todos eles, dois nomes insistiam em se ligar na minha mente: Nezumi e Safu.

O que eu vou fazer? Safu está presa no instituto correcional. Minha melhor amiga... A única que eu tenho. Ela está lá, sozinha. Presa por um crime que não cometeu. Por que ela? O que ela fez para ser condenada àquele lugar? Eu não havia feito nada e a mesma sentença coube a mim. Eu preciso chegar em casa e contar para o Nezumi o que acont... Nezumi. Não posso. O que isso tem a ver com ele? Tem seus próprios problemas para resolver. Não posso jogar isso em cima dele desta forma. E o que ele poderia fazer? Não, não vou envolver Nezumi nisso. Eu não poderia. É arriscado demais. Eu não posso arriscar perdê-lo... Não assim... Não agora que nós...

E sem perceber, lágrimas rolaram pela minha face.

— Nezumi... – murmurei para mim mesmo ao tentar conter o choro.

Não posso fazer isso com ele. Eu o amo demais para envolvê-lo nisso. Se pelo menos eu tivesse garantias de voltar vivo... Então, por que eu estou indo? Por que tenho que salvar aquela garota? Não é Nezumi quem amo? Não é com ele que eu quero passar o resto dos meus dias? Por que eu deveria salvá-la? Ninguém me mandou fazer isso. Eu não preciso ir. Mas...

Hesitei. Refleti sobre o que eu havia acabado de pensar. Que maldito egoísta eu sou. O que eu estou pensando? Sacrificar a vida de uma pessoa inocente? Pior que isso: sacrificar a vida da minha melhor amiga? Não, eu não poderia. Não sou tão egoísta a esse ponto. É verdade o que Inukashi disse. A chance de ela já estar morta é muito alta, mas eu não posso desistir. Enquanto houver uma chance, por menor que seja, eu devo tentar. Não tenho dúvida alguma de que o que eu mais quero é ficar com Nezumi, mas não posso abrir mão da vida de Safu por minha felicidade. Por outro lado, não posso pedir a ajuda dele. Isso é um problema meu e cabe a mim resolvê-lo. É isso.

E a meio caminho de casa, o sol já começava a se esconder no horizonte, anunciando a iminente escuridão que se aproximava.

*

Cheguei ao esconderijo pouco antes de anoitecer. Nezumi estava deitado em nossa cama com um livro antigo em mãos.

— Cheguei – disse, fechando a porta atrás de mim.

Tirei meu casaco e o joguei sobre a cama, indo em direção ao armário para pegar um copo de água. Só então percebi que Nezumi me observava com a sobrancelha arqueada.

— O que foi? – Perguntei inocente. Ele revirou os olhos e voltou a ler seu livro.

— Rikiga deve ter te arrastado para muitos lugares, huh?

— Oh, sim. Andamos bastante pelas lojas. Ele até me levou para comprar um casaco novo.

Levantou os olhos novamente e me olhou de cima a baixo.

— Cadê?

— O quê?

— O casaco. Não disse que ele te levou para comprar um casaco?

Que droga, Nezumi.

— Oh, sim. Mas eu não gostei de nenhum em especial.

— Tsc, garoto mimado – bufou, e voltou os olhos para sua leitura.

Abafei o riso e me sentei ao seu lado, observando-o enquanto lia. Fiquei perdido em pensamentos. Como eu amava estar com ele daquele jeito. Nezumi deslizava delicadamente os dedos sobre as páginas do livro, percorrendo cada palavra de cada linha, como se apreciasse até mesmo o mínimo detalhe de seu conteúdo. E de fato, essa era a mais absoluta verdade.

— O que foi agora? – Perguntou impaciente.

— O quê? Do que está falando?

— Você está aí, me olhando feito bobo. Pode parar com isso?

— Ah, desculpe. É que eu nunca me canso de observar seus movimentos. São tão elegantes – confessei.

Ele ficou me olhando confuso, até que agarrou meu braço e me puxou para que eu deitasse a cabeça em seu peito.

— Shion, você definitivamente é um cabeça de vento – disse, e voltou a ler, colocando o livro na frente do meu rosto para que eu pudesse fazer o mesmo.

E eu poderia ficar ali para sempre, ouvindo seu coração bater num ritmo lento e agradável, sentindo o calor de seu corpo, o cheiro de sua pele macia. Eu estava quase dormindo quando ele se moveu sob mim.

— Shion, eu preciso levantar. Sai de cima.

— Ah, sim. Desculpe – sentei-me ao lado da cama.

Deixou o livro ao meu lado e se levantou, caminhando até a porta, onde pegou a capa de super fibra e a envolveu no pescoço.

— Vai sair? – Perguntei.

— Sim. Só vou ficar um pouco lá fora.

– Ah, tudo bem então. Bom, te chamo quando o jantar estiver pronto.

— Certo. Até mais.

Assim que saiu, tomei um rápido banho para então preparar a refeição. Cozinhei um pouco de arroz e alguns pedaços de carne. Refoguei alguns legumes e misturei ao arroz, deixando a carne numa panela separada.

Uma hora foi o tempo necessário para que eu terminasse tudo e, ao colocar os talheres sobre a mesa, ouvi o som de pequenos passos correndo pelo chão.

— Mas o que...?

De repente, um pequeno rato pulou em meu ombro e emitiu ruídos apressados. Senti meu coração apertar. Nezumi. Ele está lá fora. Sem pensar duas vezes, peguei uma lanterna e saí às pressas do esconderijo.

Já estava completamente escuro lá fora. Não era capaz de ver qualquer coisa a mais de dez metros à minha frente, e havia pedras soltas pelo terreno irregular.

Depois de correr um pouco, vi à distância inúmeros vultos fugirem para longe. Apertei ainda mais o passo e pude ver Nezumi mirando a imensidão negra, a mão apertando o braço pouco abaixo do ombro.

— Nezumi! O que aconteceu? Você está bem? – Perguntei preocupado, tentando ver o ferimento.

Seu rosto estava torcido numa careta de dor, mas ele também estava visivelmente irritado. Mordia o lábio com tamanha força que fazia filetes de sangue escorrerem pelo canto de sua boca.

— Não foi nada. Um cão selvagem me atacou. – Explicou, virando-se para mim em seguida – De qualquer forma, o que está fazendo aqui?

— Hamlet me avisou de que havia algo errado, então vim ver se você estava bem. Consegue andar? – Assim que estendi a mão para ajudá-lo, ele a afastou.

— Lógico que consigo.

Não pude deixar de suspirar aliviado.

— Certo, então. Vamos para casa. Vou dar uma olhada no seu ferimento. – Nezumi assentiu e eu continuei. ­– A propósito, o jantar está pronto.

Apontei a lanterna para frente e olhei para ele, apenas para vislumbrar a expressão indecifrável que me afligiu durante dias se desfazer num pequeno sorriso de canto de boca.

Chegando ao esconderijo, ele se sentou num canto e tirou a jaqueta. Fez uma careta ao ter que tirar a camiseta manchada de sangue, expondo todo o peito nu e um doloroso ferimento no ombro.

Busquei o kit de primeiros socorros e me sentei ao seu lado.

— Oh, isso está feio.

— Vou precisar de pontos? – Perguntou. Tentou parecer indiferente, mas eu sabia que estava preocupado. Sorri atrevido.

— Infelizmente isso não será necessário. Adoraria colocar em prática minhas habilidades como enfermeiro, mas vou apenas despejar esse antisséptico aqui e...

— AI, SHION. Isso dói!

— Desculpe. – Abafei o riso. Ele bufou e desviou os olhos para o chão. Terminei o curativo enfaixando seu braço com algumas camadas de gaze. – Pronto, terminei – exclamei vitorioso.

— Obrigado.

— Ah, espere! – Ele me olhou confuso, mas esperou que eu continuasse. Então eu me inclinei e beijei de leve a atadura. – Pronto, agora sim.

— Muito obrigado, Shion – murmurou, a cabeça encostada em meu peito. Envolvi os braços ao seu redor e o abracei forte – Ai, vá com calma. Está doendo.

— Desculpe. – Ri baixinho, afrouxando o abraço. – E então? Vamos comer?

*

Depois de terminada a refeição, Nezumi me ajudou com a louça suja, sentando-se em seguida para ler um livro. Fiz o mesmo e, após algum tempo, verifiquei o ferimento e decidi trocar a gaze.

— Nezumi, fique quieto. Pare de se mexer.

— Que droga, Shion. Eu disse que não precisa trocar. Vou ficar bem.

— Ora, pare de ser tão teimoso.

Ele bufou e tirou a camisa com um pouco de dificuldade. Desatei a gaze e limpei seu braço novamente, preparando outro curativo.

— Pronto. Doeu tanto assim? – perguntei com um ar irônico.

— Não tanto, mas... – ele me olhou com um sorriso sarcástico – Pensei que poderia fazer um curativo melhor. Se bem que está mais aceitável do que estava há quatro anos.

— Ei, eu fiz o melhor que pude, okay? E realmente acho que fiz um bom trabalho naquela época. Até mesmo agora eu posso dizer isso – resmunguei.

Naquele instante, seu rosto risonho assumiu uma expressão séria. Ele se endireitou na cama, de forma que ficássemos frente a frente.

— Você realmente pode dizer isso, Shion?

— Como assim?

— Há quatro anos, quando me ajudou, e tudo o que te aconteceu depois disso. Sua vida inteira virou de cabeça para baixo. Você realmente pode olhar para trás e dizer que tudo não foi um erro?

Eu não entendia o que ele estava querendo dizer, então tudo o que fiz foi dizer a verdade, sem pensar duas vezes.

— Mas é claro que posso.

Ele me olhou surpreso, como se não estivesse esperando uma resposta tão honesta e direta.

— Você não se arrepende?

— Não.

— Nem mesmo um pouco?

— Não.

— Mas... – hesitou – Por que não?

Observei-o por um momento e suspirei, antes de sorrir e dizer:

— Se eu pudesse voltar àquela noite... Se eu pudesse voltar num momento antes de te conhecer... Eu pensei muito nisso durante esses quatro anos e sempre cheguei à mesma conclusão: não importa quantas vezes eu pudesse voltar àquela noite, Nezumi; em todas elas eu iria abrir aquela janela e esperar por você, chamar por você. E eu não me arrependo de absolutamente nada do que aconteceu depois disso.

Ele abriu e fechou a boca ao ouvir aquilo. Abaixou a cabeça, selecionando as palavras, depois olhou para mim com aquela expressão indecifrável e perguntou:

— Mesmo sabendo que aquele ato arruinaria sua vida?

Aquilo era desconfortável. Qual a dificuldade de entender que você é o que aconteceu de melhor em minha vida?

— Eu não sinto como se minha vida tivesse sido arruinada – ameacei me levantar, quando Nezumi agarrou firme o meu braço.

— Não importa o que aconteceu, Shion, mas não se atreva, nem que por um maldito minuto, a pensar que você me salvou. Você não está em posição de se preocupar com as outras pessoas, então não faça nada. Absolutamente nada. – Ele estava quase gritando, então, subitamente, diminuiu o tom de voz – Shion, eu te imploro: não faça nada imprudente. Não se coloque em perigo de forma tão deliberada como fez agora a pouco.

O quê? Do que diabos você está falando?

— Mas isso não faz sentido, Nezumi.

Ele me lançou um olhar confuso. Quando abriu a boca para dizer qualquer coisa, eu o detive.

— Quando Hamlet pulou em meus ombros, eu sabia que você estava em perigo. Eu senti isso. Eu fiquei preocupado e decidi ir atrás de você. E se algo pior tivesse acontecido? – Aquele pensamente me atingiu como uma faca. O que eu faria? O que eu faria se algo pior acontecesse a ele? Cerrei os punhos em minhas próprias roupas, apertando-as com força entre os dedos – Eu me preocupei com você, Nezumi. Qual é a dificuldade de entender isso? Você poderia ter morrido lá fora. Foi isso o que senti então eu corri para te ajudar. – Senti meus olhos queimarem, como se cada palavra me pesasse no coração – O que você esperava? Que eu pensasse que ir atrás de você era uma atitude imprudente e eu deveria ter sentado e esperado? Queria que eu não fizesse nada mesmo sabendo que você estava em perigo? Eu não posso fazer isso! Não há uma única razão que me faria fazer isso, seu imbecil!

Ele me olhava assustado. Não era meu objetivo aumentar a voz daquele modo, mas eu realmente não pude evitar. De certa forma, aquilo foi bom. Dizer todas aquelas coisas naquele momento, considerando o que eu faria na manhã seguinte. Ele não disse nada, apenas desviou os olhos para as prateleiras de livros.

— Por que você está tão quieto, Nezumi?

— Não é nada – respondeu indiferente.

— De qualquer forma, – disse ao me levantar – pode ficar com a cama hoje. Seria problemático para nós dois se você acabasse machucando ainda mais seu ombro.

— E quanto a você?

— Eu durmo no sofá, não se preocupe. E... Nezumi – chamei, hesitante.

— Huh?

Caminhei novamente para ele, parando em sua frente de cabeça baixa, pensando no que eu iria dizer, no que eu iria fazer. Respirei fundo e continuei:

— Eu pensei nisso por um bom tempo. Em tudo o que passamos e fizemos... Nos momentos que tivemos juntos... Nezumi, se eu nunca tivesse te conhecido eu jamais teria descoberto o tipo de pessoa que eu sou.

— O quê? Aonde quer chegar?

— Se eu não tivesse te conhecido, eu jamais saberia sobre os diferentes sentimentos que estão dentro de mim. Eu teria crescido como um adulto apático e obediente, incapaz de fazer qualquer coisa por mim mesmo. Você mudou isso, Nezumi. Foi por sua causa que descobri a raiva, a felicidade, o desespero e o amor. Até então eu não sabia o que era chorar de verdade, ou o que era sentir o estômago latejar pela fome. E foi por você que conheci tudo isso e me sinto orgulhoso por saber que há tanto dentro de mim. – Hesitei. Havia tanto para dizer a ele. Tantas coisas que eu queria que ele soubesse. Como eu me senti quando o vi pela primeira vez; como meu coração se alegrou ao ouvir sua voz saindo daquele pequeno roedor sobre meu ombro; como eu era grato por tudo o que havia feito por mim e como sentia um profundo respeito por ele.

Aquilo era difícil. Dizer todas aquelas coisas sabendo que eu o deixaria no dia seguinte. O que eu estou fazendo? Estou me despedindo? Por que é tão difícil? Por que não posso simplesmente abrir mão dele?

Meu coração doía. Batia incontrolável dentro do meu peito. Percebi que a qualquer momento meus olhos não conseguiriam conter as lágrimas que ameaçavam fluir. Mas isso não poderia acontecer. Eu devia permanecer forte até o fim. Eu precisava fazer isso. Mas tudo o que eu queria era desistir daquilo; ficar com ele ali, na nossa casa, entre seus livros que guardam tantas de nossas histórias. Senti como se o mundo estivesse se desfazendo diante de mim. Eu não queria ir. Mais do que tudo, eu não queria ir.

Eu queria ficar com você, Nezumi; cuidar de seu ferimento e de todos os outros que certamente virão. Só queria acordar todos os dias ao seu lado, te dar um beijo e dizer bom dia, só para ver seu rosto se iluminar num sorriso bobo e ouvir sua voz rouca me chamar de “cabeça de vento”; e ouvir essa mesma voz assumindo um novo tom ao sussurrar palavras de carinho em meu ouvido. Queria poder sentir seus toques suaves sobre minha pele, fazendo os pelos da minha nuca se arrepiarem; e sentir suas mãos habilidosas a brincarem com meus cabelos, num carinho afetuoso que eu desejaria que fosse eterno. Só queria sentir seus braços me envolvendo todos os dias; ver seus olhos instigantes me dizendo para ficar enquanto sua boca não diria nada. Sentir seu calor me aquecendo durante as noites frias; seus lábios a deslizarem por todo este corpo que há muito tempo já te pertence. Eu queria poder te amar, Nezumi. Só isso, e nada mais.

Mas não pude dizer nada daquilo. As palavras simplesmente morreram em minha garganta enquanto eu, inutilmente, continuava parado no mesmo lugar. Então suspirei e disse o que pensei poder resumir tudo o que sentia:

— Fico feliz por ter te conhecido.

Saiu quase como num sussurro, como se eu estivesse dizendo isso para mim mesmo. E então me inclinei, sentindo seus lábios frios com os meus. Foi um beijo sutil, nem rápido nem demorado. Um simples selar de lábios, suficiente para me fazer repensar meus planos. Afastei-me aos poucos.

— Isso não foi um beijo de “obrigado”, né?

— Foi um beijo de boa noite – menti, mostrando meu sorriso mais gentil.

— “Boa noite”, huh?

— Sim, eu vou lavar os cães amanhã então tenho que acordar cedo. Boa noite.

— Claro. Bons sonhos.

— Você também.

Abri a porta da sala e saí, fechando a mesma atrás de mim. Ainda com a mão na maçaneta, pensei sobre tudo o que havia acontecido. Pensei no que eu havia feito e no que faria quando a manhã chegasse; em tudo o que eu havia dito e em tudo aquilo que não pude dizer. Coloquei a mão sobre o coração; ainda batia forte. Caminhei lentamente até o sofá, onde me cobri com um lençol fino, enterrando a cabeça no travesseiro numa tentativa desesperada de conter os soluços e as lágrimas que insistiam em me condenar.

*

Passei a noite em claro, olhando para o teto e pensando num plano qualquer para resgatar Safu. Mas não consegui pensar em nada. Eu ainda posso desistir. Posso ficar aqui com ele, ajudá-lo com o que precisar, cuidar para que não se envolva em tantos problemas. Mas eu poderia viver com isso? Poderia deitar a cabeça no travesseiro todas as noites e esquecer que condenei a vida de uma pessoa que passou mais de 10 anos ao meu lado? Não, não sou frio o bastante para viver sabendo que fui responsável pela morte de alguém. Eu tenho que ir, não há outro jeito.

Levantei-me, vesti meu casaco e abri a porta cuidadosamente. Olhei para a cama e vi que Nezumi dormia serenamente enrolado num lençol. Fiquei a observá-lo por algum tempo, ainda relutando em deixá-lo e partir, quando um pequeno roedor barulhento escalou meu corpo e parou em meu ombro.

— Shiiiiiiu, fique quieto, garoto. – Sussurrei. – Não queremos acordar o Nezumi.

O ratinho parecia não entender uma palavra do que eu estava dizendo, então o tirei de meu ombro e o coloquei sobre a mesa.

— Não faça barulho, está bem?

Caminhei a passos leves até a porta do esconderijo, onde parei e olhei para trás. Nezumi ainda dormia calmamente. "Desculpe, Nezumi. Eu te amo", e saí para o dia que mal começava.

O sol ainda se escondia atrás dos muros da No.6 enquanto eu caminhava para o instituto correcional.

O que eu vou fazer quando chegar lá? Solicitar uma visita familiar? Não, eu sou um fugitivo da cidade. Eles vão me matar assim que colocar os pés naquele lugar. Talvez até antes disso. Mas eu tenho que tentar. Não posso simplesmente ficar sentado sem fazer nada. Eu preciso tentar.

Por que tudo aquilo estava acontecendo? Não era justo. Mas o mundo nunca foi um lugar justo para se viver. As coisas são assim e ponto. Todas as pessoas têm seus problemas e devem lidar com eles da melhor forma possível. Mas mesmo assim, eu não queria que aquilo estivesse acontecendo. Safu... Mãe... Nezumi... Eu não quero perder nenhum de vocês.

De repente, senti pequenos pés subirem apressados pelo meu corpo. Era Luz-lunar.

— O quê? O que está fazendo aqui? – Perguntei confuso. A resposta não veio através do roedor.

— É o nosso guia. Ele está te dizendo que você está indo na direção errada. – Olhei para trás e vi Nezumi caminhando lentamente em minha direção. – Você não disse que iria lavar os cães esta manhã? O hotel de Inukashi fica do outro lado.

Nezumi... Por favor...

— Tsc, estou cansado de você me dizendo o que fazer e para onde eu devo ir. – Falei irritado - Se você pensa que deve fazer isso para compensar o que te fiz há quatro anos, você está errado. Você já devolveu o favor há tempos. – Nezumi, por que tem que tornar as coisas ainda mais difíceis? – A partir de agora eu faço o que quiser.

Ele estava parado a uns três metros de mim, quando de repente sorriu e começou a aplaudir.

— OH, bravo! Que bela atuação para um principiante! Pelo menos foi muito melhor do que o beijo da noite passada – disse, cobrindo a distância entre nós com passos lentos.

— Mas do que você...

De repente senti uma dor absurda no estômago. O punho de Nezumi estava cerrado em minha barriga e eu caí no chão abraçando a mesma.

— O QUE DIABOS FOI ISSO?

— Se você realmente acha que é livre o bastante para dizer tudo isso, levante e defenda-se. Aí vai outro.

Ele me chutou com força enquanto ainda estava no chão. Vi estrelas. Tossi rouco, encolhendo-me enquanto respirava com dificuldade.

— Não feche os olhos, Shion. Você precisa olhar de frente seu oponente. LEVANTE!

Apoiei as mãos no chão e tomei impulso para deferir um soco nele, que passou longe do alvo, pois ele rapidamente bloqueou o meu ataque e me derrubou novamente. Eu estava exausto, meu corpo doía e minha cabeça girava. Não fui capaz de me levantar. Ele agarrou meu braço e me puxou para que eu me sentasse.

— Só para você saber: – sua voz assumiu um tom sério e repressivo – isso é um castigo.

— Um castigo? – Cuspi um pouco de sangue – Por quê?

— Por ter mentido para mim. Mas principalmente... – Ele hesitou, depois me olhou de cima e disse ­– Por ter me menosprezado.

— O QUÊ? Eu nunca fiz isso.

— Quando você mente para uma pessoa, você a menospreza. Você realmente pensou que poderia me enganar com uma mentira ridícula como esta? – Ele abaixou o tom de voz e continuou – Mas o que mais me irrita... Depois de tudo o que passamos, você presumiu que eu era um moleque que não sabia a diferença entre os distintos tipos de beijo. "Beijo de boa noite"? Não me fode! – Ajoelhou-se e agarrou o colarinho da minha blusa, trazendo meu rosto próximo ao seu – Shion, nunca mais se atreva a me dar um beijo de adeus, entendeu? Nunca mais!

Ele estava visivelmente irritado, mas seus olhos prateados me diziam que ali havia também tristeza e dor. Senti-me um lixo por tê-lo magoado.

— Está bem – respondi ressentido.

— Você jura?

— Eu juro.

— Ótimo. – Disse ele, soltando minha blusa e se sentando à minha frente – Tem algumas coisas estranhas acontecendo dentro de No.6 – continuou calmamente.

— Coisas estranhas?

— Sim. Inukashi está investigando os detalhes, mas parece que há uma movimentação peculiar no instituto correcional.

— Espere! No instituto correcional? Isso significa que você...

— Aquela amiga sua. Você disse que eram como irmãos, certo? Aqui – ele estendeu o braço e jogou uma pequena tira de papel em minhas mãos. Havia uma mensagem nela – Recebi isso há algum tempo. Sua mãe está bem, mas quanto a sua amiga... Bom, eu realmente não sei. – Ele se levantou e continuou – Mas você não precisa fazer isso sozinho. Vamos esperar até termos todas as informações para assim podermos criar um plano. Não estamos indo para morrer, Shion. Estamos indo salvá-la.

E mais uma vez ele me estendeu a mão. Mesmo sem conhecer Safu, mesmo sem nenhuma garantia de voltarmos vivos, Nezumi estava disposto a fazer isso por mim. Mas... O que eu mais temia aconteceu. Mordi o lábio.

— Agora você está envolvido nisso...

— Não é sua culpa, Shion. Vamos, levante a cabeça. – Obedeci e Nezumi olhou fundo em meus olhos – Vai dar tudo certo. Nós dois, juntos, vamos fazer dar certo.

— Obrigado. Você me salvou de novo, huh? – Sorri. Mas havia uma coisa me incomodando. Levantei-me. – Nezumi...

— Huh?

— Vem aqui um minuto.

Ele deu dois passos na minha direção.

— O que...

Cerrei a mão que ainda segurava o bilhete e desferi um soco em seu rosto.

—... FOI ISSO?

— Um castigo.

— Pelo quê? – Perguntou irritado, cobrindo o rosto ferido com a mão.

— Por ter escondido coisas de mim. Você recebeu esse bilhete há dias e não me contou nada sobre isso.

Ele tentou protestar, mas suspirou e disse:

— Tudo bem, você está certo. Desculpe. Isso não vai mais se repetir.

— Você jura?

— Juro pelo soco que acabou de me dar.

Cobri a distância entre nós dois, parando bem próximo a ele. Olhava-me com um olhar divertido e gentil. Não havia em seu rosto nenhum resquício daquele olhar distante ou daquele sorriso vazio. Ambos agora eram afetuosos e verdadeiros. Dei mais um passo é encostei a cabeça em seu peito.

— Obrigado Nezumi. Por tudo.

Fechei os olhos. Ele envolveu os braços ao meu redor e me abraçou forte. Fiz o mesmo, retribuindo o carinho. Seu cheiro, seu calor, seus toques em meus cabelos. Eu o amava. Amava tudo que vinha dele.

— Eu te amo, meu pequeno – sussurrou em meu ouvido.

Afastou-se e segurou meu rosto entre as mãos, beijando minha testa em seguida.

— Vamos para casa. Temos um longo dia pela frente.

Assenti. Apoiou o braço em meu ombro e voltamos ao nosso esconderijo. Enquanto caminhávamos, pude ver nossas sombras sendo projetadas lentamente diante de nós.

— Amanheceu... – Murmurei para mim mesmo.

Continuei a olhar as sombras. Nezumi tirou o braço de meus ombros e segurou minha mão ao lado do corpo e, com a outra, apontou para nossas projeções no chão.

— Juntos – disse ele simplesmente. E tudo o que pude fazer foi sorrir.

Chegando em casa, Nezumi se jogou na cama enquanto eu tirava meu casaco.

— Estou exausto! – Reclamou.

— Eu também estou. – Aproximei-me e sentei ao seu lado. – E então? O que vamos fazer?

— Sobre o plano eu não sei, mas... – Puxou o meu braço para que eu me deitasse junto de si. Abraçou-me forte, segurando minhas mãos na frente do corpo, beijando minha nuca e roçando o nariz em meus cabelos –... Sobre nós... Vamos ficar bem.

E assim, ficamos abraçados por um tempo, sentindo o calor do corpo um do outro, enquanto, entre beijos e suspiros, jurávamos nosso amor, sem fazer a mínima ideia do que faríamos depois. Mas tudo o que eu sentia era calma e confiança, porque eu sabia que, enquanto estivéssemos juntos, nenhum inverno seria o bastante para nos separar.

O sol nascia, pintando o céu com diferentes tons de rosa e laranja, afastando, mesmo que por pouco tempo, qualquer vestígio da escuridão que não tardaria a voltar. Mas, por enquanto, havia luz e calor. E essa era a prova de que estávamos vivos.

— Os vivos são quentes – sussurrei, e adormeci em seus braços.


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Notas finais do capítulo

Bom, é isso. Espero que tenham gostado. Este foi o último capítulo, mas estou trabalhando em outras duas fics que pretendo postar em breve.

Muito obrigada a todos os leitores que acompanharam a história até o final e a todos aqueles que comentaram. Significou muito para a autora aqui!

E por último, não menos importante, gostaria de agradecer a minha beta particular que me ajudou em tudo o que fiz até agora. Minha onee-chan, obrigada!



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