Chilon bateu as palmas levemente e, quase que imediatamente, o som de vozes na sala cessou. "Como de costume, em homenagem ao convidado de honra e a todos vocês que se deslocaram do conforto dos vossos planos para nos agraciar com vossa presença, eu, me colocando como representante do Povo da Ilha da Névoa densa, vos ofereço nosso dom mais belo, a dança!" o Grande Mestre olhou para sua neta e conselheira "Zahira Xigmad..." instigou.

A mulher caminhou até o tapete grande e redondo na frente da mesa principal e esperou as próximas palavras de Chilon que não tardaram a vir.

"Esta é Zahira Xigmad, minha neta e conselheira oficial. A melhor dançarina da Ilha da Névoa Densa e ela irá apresentar para vocês a Dança do Fogo, uma tradição que cedemos aos seus olhos e ouvidos."

Zahira despiu-se da longa capa deixando a mostra a fina roupa de dança esmeralda, em sua opinião, nesse momento, aberta e leve demais. Um criado pegou o pano dos seus pés e colocou no lugar as três espadas ornadas com flores. E ela pode ouvir os primeiros tamborilares dos instrumentos ao fundo sendo acompanhados pelas cordas tranquilas, mas desafiadoras para os passos de uma dançarina. Tudo extremamente alto graças ao silêncio na sala.

Ela se abaixou pegando as espadas, mas logo levantou-se, rodando lentamente. Começou a formar a coreografia de forma a acompanhar a sonoridade melódica e crescente. Seus braços automaticamente começaram a se mover com agilidade acima de sua cabeça e ela fechou os olhos para sentir a música por completo. O quadril começou a se mover de forma lasciva e, por um momento ela se impressionou em como não havia se esquecido dos passos. No entanto, esse momento passou rapidamente, logo o ritmo da música foi aumentando e ela usava as pernas com um exímio equilíbrio, passando as espadas por baixo delas, eventualmente, e em volta de seu corpo, dando a sensação da criação de uma aura dourada em seu entorno. Movendo as pernas e os braços para simular o fogo, a música foi ficando mais lenta, mas não por muito tempo. Ela chegou ao seu ápice e todos os presentes na sala poderiam jurar que Zahira havia se tornado uma chama enquanto pulava e girava da forma mais rápida que conseguia. Largou uma das espadas no chão e começou a rodar outra com uma das mãos, enquanto rodopiava incansavelmente.

"A menina está em chamas!" ela pode ouvir, e isso trouxe um sorriso em seu rosto. Estava fazendo certo, sentia seu corpo se movendo quase no automático e, ainda assim, era prazeroso e relaxante como uma brisa de verão.

Sentindo-se confiante e embalada pelo ritmo alegre e sensual da música, abriu os olhos e se deparou novamente com o olhar de Cam Azai. Por que ele a olhava tanto? O que havia de tão interessante? Obviamente, nesse momento, muitos a estavam olhando, e se permitindo sentir algumas coisas, reparou na luxúria, inveja e admiração. Tentou sentir o que Cam sentia, mas por algum motivo não se permitiu. Olhou para ele mais uma vez e pode ver que sorria. Sorria como se ela estivesse dançando para ele e como se aquilo o agradasse muito. Ela sentiu raiva, não estava dançando para uma pessoa! Mas para todos ali, para que se divertissem. Essa era a missão de uma diplomata, agradar a todos.

Sentiu o corpo embalar de forma mais lenta, e, jogando uma espada para cima, depois pegou-a com as duas mãos pela lâmina. Ela pôde ouvir alguns suspiros, se foi susto ou admiração ela não poderia dizer. Aquelas espadas causavam um efeito maravilhoso quando cortavam o ar.

Por fim, caiu no tapete de joelhos em sincronia com o término da música. Abaixou a cabeça por um instante e foi quando as palmas vieram, ela levantou o rosto suado sorrindo e agradecendo com meneios de cabeça. Levantou-se e fez uma simples reverência, voltando-se ao seu lugar em seguida.

Pegou sua taça de vinho e, por algum motivo a mesa de Lúcifer a atraiu. Lilith a olhava com uma intensidade formidável, num instante ela compreendeu da onde vieram os olhos cinzas de caos de Cam Azai. Assim que percebeu a atenção que recebia, Lilith levantou a taça de vinho em direção a Zahira Xigmad como se estivesse oferecendo um brinde. Zahira respondeu com um pequeno sorriso pensando o que poderia estar se passando na cabeça da mulher, ambas beberam ao mesmo tempo sem quebrar a troca de olhares.

Descansando a taça na mesa, a Rainha do Inferno curvou-se na direção de Cam Azai e repousou sua mão sobre a mão do filho. Quando este virou-se para ela, ela cochichou algo em seu ouvido. Zahira desviou o olhar para a conversa de seu pai e avô com o novo deus. Deveria parar de dar tanta atenção para a família de Lúcifer, isso não traria boas coisas para si mesma nem para seu povo.

"... portanto é dessa forma que se pode conseguir moradores para seu plano, Siddartha." Chilon terminava de falar.

"Pretende se casar?" Lambert perguntava enquanto devorava um bolinho de amoras com muita vontade "Como um deus, você tem o direito de ter quantos relacionamentos quiser, com quem você quiser. Se a criatura aceitar sua proposta, obviamente. No entanto, é bom que procure nosso conselho para isso, principalmente se você desejar se unir com um morador de um plano diferente."

"Não tenho essa inclinação, Lambert. Pretendo apenas levar o máximo de sabedoria possível para meus seguidores na Terra." o novo deus parecia estar sempre sorrindo e transbordando bons sentimentos "Também não desejos coisas caras ou complexas. Vejo que muitos, no entanto, são adeptos ao luxo."

"Essa é uma escolha exclusivamente dos deuses, devo dizer. Se você quiser coisas simples, terá coisas simples no seu plano. É só você desejar que tudo o que você quiser será possível no seu lar."

"Paz e harmonia, é tudo o que eu mais preciso."

"Deveríamos lembrar que seria importante uma reunião com os outros deuses." Zahira falou prestativa "Talvez um encontro em sua saleta, Grande Mestre. O dia em que Siddartha Gautama já estiver bem instalado."

"Claro, isso é de extrema importância. Vocês debateriam as regiões ou índice populacional de abrangência, mas isso é apenas burocrático." Chilon afirmou.

"Creio que terei tempo para isso." o novo deus virou-se para Zahira Xigmad com um sorriso de puro agrado "Preciso dizer que você dança extraordinariamente bem, conselheira, é um dom natural?"

A mulher sorriu avermelhando-se levemente "Talvez um pouco de dom natural, mas também muito treino quando eu era mais nova. Todos da Ilha da Névoa Densa dançam, é um de nossos passatempos. Por isso dançamos muito bem."

"Mas ninguém dança tão bem quanto Zahira, nem mesmo a mãe dela dançava assim." afirmou Lambert, inflando seu peito de orgulho.

"Eu dançava muito bem, na minha época de jovem. Zahira Xigmad herdou meu dom!" Chilon riu alegremente "Hoje em dia arrisco uns passos em danças mais tranquilas. Minha neta, no entanto, tem uma agilidade impressionante nos pés e braços. Uma pequena abelha."

"Isso é notável." concordou o novo deus "Como você faz parecer que estava em chamas? Quase tive o impulso de jogar água em você, conselheira!"

Zahira riu alto, talvez o vinho já estivesse fazendo efeito "É apenas um truque da roupa, Siddartha Gautama. Ela tem forro duplo, vê?" ela mostrou o forro de um pedaço do pano que pendia sobre os seus ombros "E é extremamente leve, por isso passa essa impressão."

"Impressionante, talvez eu tenha algo assim no meu plano."

A conversa fluiu para outro assunto e Zahira Xigmad sentiu que talvez devesse parar de beber tanto vinho como estava fazendo. Encheu apenas mais uma taça, culpando a tontura aos giros que havia dado. Olhou novamente para as mesas dos deuses, mas seu olhar caiu sob a mesa de Três Entidades dessa vez. Alguns anjos conversavam animadamente e o deus falava mais secretamente com um outro, dando olhares furtivos para a mesa de Lúcifer. Ela concluiu que ele devia estar olhando para Lilith, sentiu a raiva dele e tentou amenizá-la de forma a não estragar tudo. Sentiu-o relaxar aos poucos e desconectou rapidamente sua mente da de Três Entidades, ela não podia influenciar mais do que aquilo, não no estado em que se encontrava.

Deixando de lado a taça de vinho, levantou-se e, pedindo licença aos presentes em sua própria mesa, se retirou do salão. O vento frio foi um choque que a deixou um pouco mais sóbria. Pensou em voltar e buscar a capa, mas desistiu da ideia pensando que um pouco de frescor poderia fazer bem para a mente nebulosa.

Caminhando pelo jardim e eventualmente deixando que o olhar se perdesse por entre as luzes e as flores, Zahira sentiu sono. Queria deitar-se na grama, ser acolhida pelo poder da terra. Sentou-se no meio do jardim e olhou o céu acima da sua cabeça, branco com a névoa que recobria toda a Ilha de um jeito apaziguador, mas muitas vezes monótono. Ela gostava de olhar para o céu enevoado do seu plano, provavelmente porque não tinha olhado para o nenhum outro céu que não aquele sobre sua cabeça.

Zahira sentiu alguém se aproximando e olhou na direção do som dos passos. A figura esquia de Cam Azai aproximava-se lentamente dela, com um pequeno sorriso enfeitando o belíssimo rosto. Ele caminhava de forma lenta e ritmada, o que deixava a aparência andrógina dele muito mais atraente. Estaria ela sobre o efeito de tanto vinho para ter esse tipo de pensamento?

"Cansada dos festejos ao convidado, Zahira Xigmad?" ele perguntou sem, em nenhum momento tirar o pequeno e malicioso sorriso do rosto "Prefere a solidão a ficar com pessoas tão divertidas, tantas coisas para seu entretenimento estão acontecendo naquela sala."

"Se está tudo tão belo e divertido, por que você não volta, Cam Azai? Estou bem onde estou."

"Nem um pouco diplomática sua postura, conselheira."

Zahira deu de ombros e deitou na grama, acreditando que, se talvez fosse ignorado, Cam voltaria e procuraria outro tipo de entretenimento que não fosse ela.

Ao contrário do que ela imaginou, Cam gostava de um desafio. Ela se mantendo calada só intrigava mais o herdeiro de Lúcifer. Ele sentou ao lado dela, apenas para a observar mais de perto. Se apoiou em um braço para poder ter a visão perfeita do rosto da mulher ao seu lado. Ele se impressionou com a limpeza que demonstravam os olhos dela, profundos e serenos. Cam Azai sabia que estava chegando em um momento crítico de sua vida, o desejo afloraria e ele teria que encontrar um parceiro para saciar as demandas mais carnais. No entanto, Zahira Xigmad oferecia a ele uma atmosfera completamente diferente. Os lábios pálidos, mas cheios, convidativos e, ao mesmo tempo, sarcásticos. O cabelo leve como seda, vermelho, contrastando com a pele branca e leitosa. Ele tinha vontade de passar os dedos gentilmente pelos longos e enrolados cabelos dela, só para senti-los, saber que eram reais. Os ombros e barriga dela estavam a mostra, eram brancos demais para o gosto dele. Tanto que ele sentiu vontade de marcar toda aquela pele mácula.

Cam suspirou afastando alguns pensamentos que começavam a ultrapassar o malicioso de sua cabeça. O que ele estava fazendo?

"A sua dança lá dentro... Onde você a aprendeu?" ele perguntou a tirando de um pequeno transe.

"Se conhecesse a história da vida do povo de outros planos, Cam Azai, talvez não estivesse me fazendo essa pergunta." ela disse sorrindo como uma criatura perniciosa "Todos do Povo Sem Nome aprendem a dançar desde cedo. É uma arte valorizada entre nós, nossa forma mais pura de expressão e comunicação."

"Eu acredito piamente que nenhum cidadão da Ilha da Névoa Densa dança como você, é mágico." ele sorriu sinceramente e ela olhou nos olhos dele, antes de se perder novamente em pensamentos.

"O que, então, você estava expressando naquele momento?" ele quebrou novamente o silêncio, olhando mais profundamente para os olhos castanhos da mulher, tentando prender a visão dela na dele.

Ela sorriu mais uma vez antes de dizer "Tantas coisas... Mas principalmente receio e ansiedade, nada me deixa tão frágil quanto dançar para tantas pessoas." Zahira calou-se subitamente. O que estava fazendo? Falava dos seus sentimentos para o filho de Lúcifer! Onde ela estava com a cabeça? E a sua integridade? Fechou os olhos e pensou que deveria sair dali naquele instante.

Como se lesse a mente dela, Cam colocou gentilmente uma mão no pulso de Zahira Xigmad. Ela sentiu uma pequena eletricidade subir por todo seu braço, e transpassar seu corpo de uma forma surreal. Imediatamente, ela abriu os olhos para se deparar com olhos calmos e apaziguadores. O caos ainda predominava ao fundo, mas de forma tão contida que ela podia dizer que estava apaixonada. Aqueles eram os olhos mais lindos que já havia visto em sua vida, ao mesmo tempo, não se atreveu em ler os sentimentos do homem. Estava com medo do que ele poderia guardar em seu coração naquele momento.

"Você, naquela hora, era a maior pessoa que existia. Maior que qualquer deus. Maior que meu próprio pai. Você tem um poder que desconhece e em cada passo daquela dança, cada gesto, isso era perceptível." ele disse, os olhos verdadeiros, sem o sarcasmo ou a ironia "Zahira Xigmad, você me ganhou naquele momento. Não poderia estar mais satisfeito."

Ela gargalhou rolando seus olhos e aliviada por quebrar um contato tão profundo e íntimo "Não me diga que você agora vai querer minha mão em casamento!"

Cam sorriu atrevidamente e tocou o rosto de Zahira, seus dedos leves como penas. Ela sentiu como se todo seu corpo entrasse em colapso, se segurou para não se aproximar dos lábios aparentemente macios de Cam Azai.

"Minha querida... Eu irei me casar com você. Eu vejo o desejo nos seus olhos, você é como um livro aberto." ele sussurrou "Mas mesmo se não houvesse, nós estamos fadados ao casamento."

"-O-O que você quer dizer com isso?" ela sentou-se em um pulo o olhando preocupadamente. Ele acabara de quebrar toda a magia que acontecia naquele momento, todo entrosamento.

"Ora, o Grande Mestre não avisou sobre o acordo entre planos?"

"Acordo entre planos... Isso já aconteceu! Não pode haver outro. Nossa cidadã diplomata foi ficar ao lado de Loki!"

"Você bem sabe que os deuses nórdicos caíram em desuso, não existem motivos para manter um acordo diplomático com eles nesse tempo. Três Entidades já têm uma cidadã. Você, minha querida, foi prometida a mim."

Sem acreditar no que ouvida, nem saber como deveria se sentir, Zahira seguiu seu impulso. Levantou e correu como nunca na sua vida de volta para a casa, para a segurança do seu quarto, onde encontraria o jardim com as Águas Sagradas e sua amada cerejeira. Sua cabeça explodia, a confusão a dominou. Esse deveria ser o ponto o qual ela perdia a si mesma como tantos outros, a doença mortal, a loucura.