Contos de Halloween escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 4
Um sonho dentro de um sonho - parte final


Notas iniciais do capítulo

O que é sonho e o que é realidade? Podemos diferenciar uma coisa da outra? Por que nunca percebemos que estamos sonhando? Talvez porque no fim das contas, sonho e realidade sejam uma coisa só.

Segunda parte e conclusão da história.



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Sem pensar duas vezes, Toni correu desesperado, atravessando a rua entre os carros e quase foi atropelado duas vezes. A criatura o perseguia, gritando, rosnando e cuspindo ácido.

Cada vez que olhava, o monstro parecia maior e maior. Como ele podia crescer tão rápido? Uma dor aguda atingiu a batata da sua perna. Um espinho foi cravado e entrou rapidamente antes que o rapaz conseguisse arrancá–lo. Não.. espera... se aquele era o mesmo monstro da revista, então aquele espinho tinha um ovo, com uma larva, que ia devorá–lo por dentro!

– Eu preciso ir a um hospital! É isso! Um hospital! Alguém me ajuda! – algo revirou dentro da sua barriga e estava forçando para fora. Aquilo tinha crescido tão rápido assim? Como? Ele caiu de joelhos no chão, gritando e rangendo os dentes com muita dor.

Sua pele estava sendo perfurada até a cabeça pequena de uma miniatura de monstro emergir das suas entranhas. Ele deu um grito de medo e de dor.

Seus olhos abriram de repente e diante dele estava a televisão da sala com um grande “GAME OVER” piscando repetidamente. Na sua mão, havia um joystick e do lado um grande pacote vazio de salgadinhos. Era a sua casa.

Ainda impressionado com aquele sonho maluco, ele passou a mão no estômago e respirou aliviado quando viu que não havia nada ali. Apenas um sonho maluco e desagradável. Antes que pudesse pensar não que estava acontecendo, um leve cantarolar vindo da cozinha chamou sua atenção, assim como o cheiro bom de biscoitos de chocolate que despertaram sua fome.

– Ô mãe, descola um biscoito aí? – a mulher virou–se para ele com uma bandeja.

– Sim, querido! Pode comer a vontade!

Quando foi pegar um, ele viu que havia algo preso. Não era chocolate. Era um grande besouro partido ao meio.

– Que nojo, mãe! Tem um bicho no biscoito! – ele foi pegar outro e viu que tinha larvas. Mais outro recheado com grandes moscas. Enojado e furioso, ele encarou sua mãe e deparou–se com uma criatura horrenda segurando a bandeja.

– O que foi, meu bem? Não quer os biscoitos da mamãe? Estão quentinhos!

– Sai pra lá, coisa feia!

Ele correu para a sala e tentou ganhar a rua. A porta estava trancada. Aquela criatura horrorosa se aproximava segurando a bandeja com os biscoitos mais nojentos que ele tinha visto.

– Vem comer biscoitos, filhinho! A mamãe fez especialmente para você!

– Não, você não é minha mãe! Sai de mim, coisa feia! Vai embora! Vai embora!

Ele gritou várias vezes e acordou com alguém lhe sacudindo com força.

– Vamos, Toni, acorda! Você tem que acordar! – ele levou um susto ao ver o Franja diante dele.

– Franja? Marina? Onde eu estou?

– Na enfermaria da escola. – O cientista respondeu. – Rapaz, que susto você nos deu!

– O que tá acontecendo aqui? Fala logo!

– Você inalou um gás que vazou de um invento meu que a Marina trouxe para a aula de química.

– O quê?

– Calma, esse gás não é venenoso, mas causa uma série de alucinações.

– Então esse monte de pesadelos era isso? – ele levantou–se rapidamente nervoso e agitado. Se pudesse, daria um grande soco na cara do Franja por causa dessas invenções malucas.

– Agora está tudo bem. O efeito passou e não vai deixar seqüelas. – Marina explicou e Toni deu um suspiro aliviado.

– Então eu não vou ter mais aqueles pesadelos?

O casal olhou um para o outro e depois olharam para Toni com um sorriso sarcástico no rosto.

– Você está num deles, idiota! – os dois falaram ao mesmo tempo e seus corpos foram mudando até virarem formas fantasmagóricas e sinistras. – Você nunca mais sairá desse pesadelo! Ficará aqui para sempre!

– Não! – Ele gritou várias vezes e fechou os olhos com força e só os abriu quando alguém deu um bofetão na sua face.

– Acorda, cabeção! Anda, acorda! – uma voz familiar gritou e ele viu a Mônica diante dele, o que lhe deixou feliz apesar de não gostar nem um pouco de ver a cara feia do Cebola ao lado dela.

– Mônica, que bom te ver! Eu tô tendo um monte de pesadelo, não agüento mais isso! Me ajuda!

Mônica olhou para os lados e falou.

– Você ainda tá sonhando.

– Não, chega! Quero acordar!

– Fica calmo e escuta. O Nimbus e a Ramona ajudaram a gente a entrar no seu sonho, mas não podemos ficar aqui pra sempre.

– Como isso foi acontecer? – Cebola respondeu.

– Você tá nessa doideira porque andou brincando com o que não devia.

– Eu? Do que você tá falando?

– Do ritual de invocação. – Mônica explicou. – Tente se lembrar, é importante!

O valentão fez um grande esforço e aos poucos as lembranças foram clareando. Sim, houve mesmo um ritual de invocação. Mas aquilo não era somente uma brincadeira? Uma zoação entre amigos?

Eles estavam comendo pizza e assistindo a uns DVDs de terror quando um deles falou.

– Cara, não seria da hora se aparecesse um desses demônios do filme?

– E pra quê você quer isso, mané? – Toni perguntou comendo um pedaço de pizza.

– Pra ver como é, ora! Deve ser muito legal!

– Bah, esquece! Isso não existe.

– Será? – outro rapaz disse com um ar misterioso. Toni perguntou em tom de deboche.

– Que foi? Você viu um por acaso?

– Não, mas olha o que eu roubei lá do sebo da cidade! Foi por isso que chamei vocês pra verem esse filme na minha casa. É tipo uma introdução pra algo mais maneiro ainda!

Ele mostrou um livro de capa preta com uns desenhos desconhecidos na capa. Os outros folhearam com grande interesse, mas Toni não se importou.

– Afe, tanta coisa pra roubar e você pegou essa coisa inútil? Eu teria roubado uma playboy!

– Deixa disso, rapaz! Esse livro tem umas imagens da hora!

Havia duendes, demônios, espíritos de diversos tipos e outras criaturas que eles não conheciam. Cada um tinha um ritual de invocação adequado.

– Vamos invocar esse aqui, ó! Dizem que ele cospe fogo!

– Aí vai queimar a minha casa, seu lesado! Vamos invocar esse! Dizem que transforma pedra em ouro!

– Não, esse aqui é mais legal!

– Esse!

Os quatro começaram a discutir até que Toni perdeu a paciência, pegou o livro e virou as páginas até ver uma figura que lhe interessou.

– Vamos invocar esse aqui!

Era a figura de uma bela mulher usando trajes mínimos e coberta de jóias. Ela tinha longos cabelos negros presos com pequenas correntes douradas, grampos e uma grande coroa. Muitos colares enfeitavam seu pescoço e pulseiras adornavam seus pulsos.

– Mó bonitona ela, hein!

– Deixa eu ver... o nome dela é Menara, a senhora dos sonhos. Aqui diz que ela controla os sonhos das pessoas e...

– Tá, tá, vamos logo invocar a tia gostosona pra ela fazer a gente ter bons sonhos.

Eles deram de ombros e decidiram fazer o ritual, que não era complicado e não pedia materiais difíceis de encontrar. Apenas um pouco de sal, algumas velas e cristais de quartzo que foram tirados do aquário da sala. As palavras mágicas foram pronunciadas e pronto. Nada aconteceu e Toni deu uma risada de deboche.

– Viram só? Esse negócio de espíritos é pura balela, não existe! Ainda bem que você não comprou esse livro, cara, ia ser dinheiro jogado fora.

– Acho que a gente não fez direito. Ou então ela não quis aparecer.

– Pfff! Assombração mais mixuruca essa! Vai ver ela tá tão velha que embarangou geral e ficou com vergonha. Hahaha!

Eles voltaram a assistir o filme e não falaram mais nisso. O restante foi apenas lembranças confusas.

– A Ramona falou que essa Menara é muito orgulhosa e se ofende facilmente. Você a insultou e agora ela tá te castigando. Bem feito pra você deixar de ser idiota!

– Cebola! Nós temos que tirar ele daqui!

– Por favor, me ajuda! O que eu devo fazer?

Os corpos dos dois começaram a ficar transparentes, como se estivessem desaparecendo. Mônica falou, com sua voz ficando cada vez mais baixa.

– Pela desculpas, desculpa sinceras....

– Desculpas? Ah, não brinca! Eu não fiz nada demais!

– Peça desculpas ou vai ficar aqui pra sempre. Pra mim não vai fazer falta nenhuma! – Cebola finalizou antes dos dois desaparecerem, deixando Toni sozinho no meio daqueles corredores escuros e sombrios. Ele tinha voltado ao ponto de partida.

Pedir desculpas. Que coisa mais humilhante! O maior bully do colégio não pedia desculpas para ninguém!

– Até parece... quer saber? Vou sair daqui sozinho! É só eu me beliscar bem forte pra acordar e pronto! – Dito isso, ele beliscou o próprio braço com toda força que pode reunir. Uma onda de choque varreu seu corpo e ele acordou em sua cama, feliz e satisfeito por ter saído daquela encrenca sem ter que se humilhar para uma megera mal amada que se ofendia com facilidade.

Orgulhoso de si mesmo, ele foi tomar um banho planejando como ia aproveitar aquele dia.

– Quê? Acabou a água? – a torneira foi aberta ao máximo até algo sair novamente do chuveiro, mas não era água. Era um líquido grosso e vermelho como sangue, que caiu no corpo dele grudando em sua pele. Um grito apavorado ecoou por todo o banheiro e Toni abriu novamente os olhos saltando da cama do seu quarto.

Ele acordou várias e várias vezes, sempre achando que era definitivo só para descobrir novamente que estava no mesmo pesadelo sem fim. Aquilo era pura insanidade! Às vezes ele acordava na sua casa, outras na casa de algum amigo ou então na enfermaria da escola. Em muitos momentos, ele ia parar naqueles corredores e vagava sem rumo, tentando encontrar uma saída, acordando novamente no mesmo pesadelo.

– Por favor, eu quero sair daqui! Pelo amor de Deus! Me deixa sair ou me mata de uma vez! – Ele chorou caindo de joelhos, totalmente exausto. Seus nervos estavam em frangalhos, toda sua marra, força e arrogância tinham desmoronado como um castelo de cartas. De que adiantava ser um valentão num mundo governado por forças que ele não podia controlar?

Ele estava preso em um pesadelo sem fim e não havia como sair dali. Ele só acordava para descobrir que tudo continuava igual e era muito desgastante ter esperanças só para descobrir que ele estava andando em círculos sem sair do lugar. Essa tal Menara era muito forte e poderosa. Muito mais forte do que ele. E se tinha uma coisa na qual Toni acreditava era a lei do mais forte. Era assim que o mundo funcionava. Os mais fortes comandavam, os fracos obedeciam. E daquela vez havia alguém mais forte dando as cartas. Quem podia, mandava. Quem tinha juízo, obedecia. Estava na hora de ele criar juízo.

Ainda hesitante, ele ergueu o rosto e olhou para cima, vendo apenas um grande teto escuro. Não tinha importância. Ela devia estar vendo e observando tudo.

– Ei, Dona... Senhora... Majestade... por favor, me perdoa! Desculpa eu ter te ofendido, foi mal! Eu sei que você é mais forte, respeito isso! Por favor, deixa eu ir embora! Nunca mais vou te ofender de novo, palavra! Me perdoa!

Ele gritou várias vezes, implorando perdão de joelhos. Nada aconteceu. Ele continuava naquele labirinto escuro, tendo apenas os ecos como resposta. Será que ela não ia perdoá–lo? Será mesmo que havia alguma senhora dos sonhos lhe aprisionando? E se aquilo não fosse um sonho? Ele podia ter morrido e sido levado ao inferno, condenado a passar o resto da eternidade num eterno sonha–desperta–sonha sem nunca poder se libertar.

Apavorado com esse pensamento, ele curvou–se até encostar a cabeça no chão, gemendo e chorando desesperado. Toda sua esperança tinha acabado e ele não tinha forças para fazer mais nada. Só lhe restava continuar ali, encolhido, abandonado e esquecido por todos. Quando já estava conformado com seu destino, Toni sentiu a superfície abaixo dele mudando e se transformando em algo que parecia um tapete. O tapete do seu quarto. Seria possível!

O rapaz levantou–se rapidamente e olhou ao redor mal respirando com dificuldade, o coração batendo desordenado e o suor pingando de seu rosto. Ele tinha realmente acordado ou ainda estava em um pesadelo? Tudo parecia tão normal! Os sons, o cheiro do seu quarto, as cores...

Toni apalpou o próprio corpo cuidadosamente, se beliscou algumas vezes e gemeu de dor. Não, ele não estava sonhando. Ele também se olhou no espelho e viu seu reflexo. Estava pálido, com olheiras e o cabelo desgrenhado, mas parecia tudo em ordem e ele finalmente pode respirar aliviado.

– Rapaz, que doideira! Fala sério! – ele deu uma risada para extravasar o nervosismo. Tudo estava bem de novo. Será que a tal Menara tinha lhe perdoado? Ela existia mesmo? Ou teria sido só um sonho totalmente maluco e fora do normal?

Bem... isso não importava. De qualquer forma, ele decidiu que não ia mais brincar com coisas sobrenaturais. Prevenir era melhor do que remediar. Ele indo até a cozinha comer algo quando viu, no canto do olho, alguém em seu quarto lhe olhando sorrateiramente com um sorriso perverso no rosto. Foi muito rápido, coisa de dois ou três segundos. Quando virou–se para ver melhor, aquilo tinha desaparecido.

Arrepios desagradáveis percorreram seu corpo de cima a baixo e uma sensação estranha golpeava seu estômago. Teria sido sua imaginação? Ou um aviso de que devia ficar longe de coisas que não conhecia? Talvez ele ainda estivesse no pesadelo, não dava para saber e Toni desistiu de pensar o assunto, preferindo acreditar que tudo tinha acabado. Afinal, ele pediu desculpas, aprendeu a lição e prometeu nunca mais fazer novamente. O que mais podia ser feito?

– Hum... acho que vou agradecer a Mônica pela ajuda. Rapaz, ela preocupou em me ajudar, aposto que tá gamadinha em mim! DC que se cuide, o rei do pedaço tá de volta!

O rapaz entrou na cozinha pensando em qual presente de agradecimento dar a Mônica e não viu uma forma etérea se formando no meio da sala e observando seus passos. Aquele rapaz tinha lhe dado muita diversão. Pena que acabou tão depressa. Bem... talvez não houvesse problemas em brincar com os sonhos dele de vez em quando.

Afinal, o que era a vida senão um sonho dentro de um sonho?


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