Contos Brasileiros escrita por J R Mamede


Capítulo 1
Extravagância




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Apesar de tanto tempo em São Paulo, ela ainda não deixou seu sotaque alagoano. Sua voz alta, quase ensurdecedora, é ouvida a metros de distância. Não possui bom senso; ela é o constrangimento em pessoa, é o desastre social. Seu peso excessivo deixa a figura mais bizarra, mais desajeitada.

A gorda é extravagante, exagerada, exótica, exuberante. Veste-se como se o carnaval fosse o ano inteiro: cores fortes, chamativas, sem nenhuma combinação ou ligação entre elas; bijuterias grandes, pesadas, feias.

Sua infância foi muito pobre. A Senhora J. viveu seus primeiros anos em São Paulo em uma pensão fedorenta, onde habitavam moças prostituas, viciadas e domésticas.

Sim, a Senhora J. era uma doméstica. Trabalhava horas em casas de família para ganhar uma mixaria. Era extremamente magra. Seu dinheiro só dava para pagar a miserável estalagem onde vivia.

Ficou grávida aos vinte anos, mas a criança não teve pai.

E nem mãe legítima.

A menina fora mandada para Alagoas para ficar aos cuidados da avó.

Em uma de suas limpezas para ganhar a vida, foi trabalhar na casa de um senhor viúvo, uns vinte e cinco anos mais velho do que ela.

Como em um conto de fadas, a moça pobre de Alagoas conseguiu conquistar o coração do velho A. Casaram-se, viveram quase vinte anos juntos, até o Senhor A. partir desta para uma melhor.

A Senhora J. herdou tudo o que o velho A. havia conquistado durante a sua vida.

Seu corpo começara a ser moldado para a forma redonda assim que fora morar com o Senhor A.; a vida boa que ele lhe proporcionava deu o direito da moça pobre de Alagoas se esbaldar.

A cada dia a Senhora J. engordava mais e mais.

E como comia aquela mulher!

“Não como sopa”, dizia ela, “sopa me lembra de quando eu era pobre”.

Ela também ama comprar. Existem doze cartões de crédito em seu nome, só para satisfazer às vontades da gorducha.

“Quando eu era menina, só tinha dois vestidinhos feios, sem graça. Eram, na verdade, uns verdadeiros trapos!”. Fazia uma pausa para refletir, então continuava: “Só tinha um par de tamancos feios que faziam toc, toc, toc, quando eu andava. Nossa, como era ruim! Ser pobre é muito ruim! Por isso eu compro tudo o que eu quero.”

Esse era o argumento da Senhora J. para continuar com seu consumismo exagerado.

Como não suporta ficar sozinha, a Senhora J. conseguiu conquistar mais um homem. Dessa vez, um que tinha, mais ou menos, a sua idade.

O Senhor O. era um tanto desproporcional para a Senhora J. Ele, tão franzino, acabou se casando com a rechonchuda.

O Senhor O., antes de conhecer a Senhora J, trabalhava em uma oficina como mecânico.

A história se inverte agora, pois o mecânico pobre fisga a gorda rica e consegue dar uma elevada em sua vida social. Deixou de trabalhar na oficina, para viver no conforto e no luxo. Seus trapos velhos foram substituídos por roupas compradas em lojas de shopping. Perfumes, sapatos, relógios, tudo era comprado para o Senhor O. com o dinheiro da Senhora J.

Ele saía e dizia que ia trabalhar, mas não se sabe ao certo o que ele começou a fazer depois que saiu da oficina.

Isso rendia uma boa fofoca para as mexeriqueiras da vizinhança, as quais soltavam a língua para falar o que “ouviram falar por ai” do Senhor O.

“Ouvi falar que ele é traficante”, dizia uma. “Já eu, ouvi falar que ele vai todo dia nesse horário para se encontrar com a amante”, dizia a outra. “Eu ouvi falar que a Senhora J. comprou a oficina de mecânica para o Senhor O., então ele é o chefe agora”.

A “conversa” durava uma tarde inteira, mas nenhuma concordava com a outra sobre a vida do Senhor O. O que ambas concordavam é que o Senhor O. só estava com a Senhora J. por causa do seu dinheiro.

“Quem quer um tribufu como ela?”, era o que todas se questionavam.

O casal assediado pela vizinhança ficou junto por oito anos. Infelizmente, para a Senhora J., o Senhor O. faleceu por contrair uma pneumonia.

A pobre gorda ficara viúva pela segunda vez.

Ficou extremamente triste, muito abalada pela perda do companheiro querido.

Mas o tempo passa, não é mesmo?

Seis meses depois a Senhora J. já estava com uma novo namoradinho no pedaço, toda feliz e cheia de expectativa.

Até o momento, a Senhora J. não se casou com o dito cujo e este permanece vivo.

Por enquanto.

O que o Senhor O. deixou para a Senhora J. foi o seu Opala preto.

A gorducha tem carteira de motorista, porém, a pessoa que a examinou e permitiu que ela saísse pelas ruas de São Paulo dirigindo, deve ser tão louco quanto ela.

Para começar, a Senhora J. não consegue nem tirar o carro da garagem. Para “melhorar” sua habilidade automobilística, contratou uma pessoa para ensiná-la a dirigir sem que tragédias fossem causadas pelas ruas.

Depois de um tempo, sentindo-se mais confiante, dispensou seu acompanhante de direção e foi pilotar seu Opala sozinha.

Má ideia.

Ao tirar o carro de uma vaga do estacionamento, acabou batendo na lanterna de um carro vizinho.

“Filha da puta! Que caralho! Que porra!”, foram as palavras poéticas da Senhora J. ao ver o estrago, não no seu, mas sim no carro de outrem.

Extremamente raivosa, a Senhora J. desistiu de dirigir e resolveu vender o Opala de seu falecido segundo marido.

“Essa porra não funciona, vou comprar um carro mais novo!”

Até o momento, o carro novo não foi comprado.

Graças a Deus!

A Senhora J. é conhecida por falar demais.

Adora falar, e muito alto.

Fala, fala, fala. Não há freio na língua dessa mulher.

E quando se empolga muito com a conversa, dá uma de suas gargalhadas exageradamente altas. A pessoa que estiver perto deve ter cuidado para não ficar surda e com hematomas.

Hematomas?

Hematomas, porque ela adora dar tapas no braço de quem estiver por perto na hora da falação.

Almoçar, jantar ou fazer qualquer refeição com ela não é recomendado. A Senhora J. adora mastigar de boca aberta.

Embora ela cometa tantas gafes, ela não solta pum na frente de ninguém.

“Solto meus puns no banheiro”, diz ela, “ninguém é obrigado a sentir o meu fedor”.

Uma verdadeira lady.

Assistir televisão com ela presente não é uma boa ideia. Ela eleva a voz para falar (como sempre), então não tem como escutar o que está passando.

Uma vez parou de falar e prestou a atenção no programa em que o entrevistador falava com um senhor magro, poucos dentes na boca, extremamente pobre.

“Ha-ha-ha!”, gargalhou a gorda. “Puta merda! O cara é tão pobre que não tem nem dente na boca!”.

A explicação é que como ela já foi pobre, ela dá risada da miséria dos outros, pois ela diz que tem direito de rir da situação em que já vivera um dia.

“Dou risada, porque já riram de mim!”, era a justificativa da Senhora J.

Extremamente ignorante, rude, primitiva, grotesca, mas, apesar de tudo, há um coração batendo naquela casca gorda, e a Senhora J. sabe ser gentil quando quer. Ela é apenas uma mulher que guarda em seu interior a moça alagoana pobre, sofrida, que possui muita experiência de vida, boa e ruim. É apenas uma mulher que gosta de falar, falar, falar, para ser escutada.


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