A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 45
Aqueles Que Permanecem


Notas iniciais do capítulo

"— Eu não vou mais insistir. Você sabe o que faz, mas eu quero lhe dizer pela última vez para que saiba que eu pelo menos tentei fazer algo por vocês." Sarym, a Indomável.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/555177/chapter/45

Ainda gotejava dos telhados e dos galhos de árvore, quando o Sol lembrou que devia tomar seu lugar no céu. Uma gota caiu bem em cima de um gato, e ele tomou um susto, pulando com um berro, e saiu correndo pelo beco, onde antes havia uma casa. Agora, só haviam cinzas. E era assim por uma grandiosa parte de Balran agora. Cinzas, construções destruídas, alguns focos de incêndio ainda sendo controlados. Guardas caminhavam de um lado para o outro, comandados por (Nome do moleque cavaleiro lá aqui), salvando pessoas presas, e carregando os mortos para o centro da cidade, onde algumas pilhas já se erguiam. Muitos haviam morrido, muitos se ferido, mas os que restaram, não choravam. Não tinham mais lágrimas para gastar. Eles eram cidadãos de Balran afinal. E só restava para eles olhar para aquele novo dia de Sol como um sinal de esperança para tempos melhores que viriam pela frente.

— Vocês ouviram? Um estranho matou o demônio. Ele está lá na Casa das Bruxas, sendo cuidada — era o que muito se ouvia nas ruas àquela hora da manhã, de boca em boca pelos guardas e moradores. — A Cavaleira de Balran tá por lá também, parece que alguém importante pra ela morreu — diziam outras bocas intrometidas, daqueles que não perderam família ou lar. Mas mesmo sendo boatos, não era mentira. Muitos haviam visto quando Lillian a Cavaleira, gritou desesperada por guardas, que levaram um homem banhado em sangue em direção a Casa de Sariel, junto de outro homem que mais parecia um aldeão humilde. Outros foram juntos, estranhos que ninguém conhecia. E todos estavam lá agora, na Casa de Sariel, sem ninguém poder entrar.

— Saiam! Abutres infelizes, carniceiros vis! — gritava uma das senhoras da Casa de Sariel, irritada com a quantidade de curiosos na porta do estabelecimento. — Vão cuidar dos reparos de Balran! Há muito a ser feito, saiam daqui!

Mas não saiam. Umas cinquenta cabeças de curiosos se reunia ali na porta, alguns feridos que precisavam de atendimentos eram levados para dentro por guardas, os outros eram barrados assim que tentavam entrar. Haviam aqueles que alegavam uma dor ou alguma doença, mas as Mulheres de Sariel sabiam quem mentia e quem dizia a verdade. E os que mentiam eram chutados para fora pelos soldados.

Todos queriam ver os salvadores de Balran, aqueles que conseguiram parar o dragão que causou tanta desgraça em suas vidas, mas o que não sabiam é que os pobres coitados não tiveram escolha. Era o destino deles se sacrificarem por um bem maior, pela destruição do Flagelo, pela extinção do mal em Mythria. Uma das mulheres de Sariel atravessou o corredor que ligava a ala onde eles recebiam tratamento médico e a sala principal da Casa de Sariel com um sorriso discreto no rosto, anunciando para os soldados que aguardavam angustiados por notícias de seus guardiões:

— Eles vão viver. — Comentou ela em tom solene, limpando o suor que escorria da testa. — O grandalhão acordou e a ruiva dorme com tranquilidade, mas o outro...

Um guarda não esperou para que ela terminasse de falar. Correu para a porta, abriu-a e gritou a plenos pulmões. — Nossos salvadores estão vivos! — e uns segundos após, veio o coro dos curiosos na porta. E aquela multidão começou a se espalhar, já indo cuidar de suas fofocas. Os salvadores estão vivos! Os bravos guerreiros que derrotaram o monstro não morrerão! Até o final da tarde, bardos já estariam compondo histórias sobre aqueles estranhos misteriosos que derrotaram o dragão. Um dos soldados, porém, que ficou atento ao o que a mulher falava, pergunto. — O outro o que? — disse, rudemente, sem respeito algum pela Mulher de Sariel.

A senhora lançou-lhe um olhar que corou suas bochechas por baixo da barba cheia, envergonhado pela falta de tato ao se referir com a curandeira. — Só os deuses podem salvá-lo, eu afirmo. Sua ferida não é apenas física, seja lá o que o atingiu, feriu também a sua essência.

— Nossa Comandante... Ela está bem? — perguntou Rudrick, o menor e mais jovem dos guardas ali.

A Mulher de Sariel fitou-o com tristeza por um segundo, mas tratou de se recompor o mais rápido possível. Mulheres de Sariel não podiam sentir pena, não podiam ter emoção para com os pacientes. Tornava mais difícil aceitar que eles poderiam morrer.

— Sua Comandante também está ferida. Mas essa é uma ferida que talvez só o tempo pode curar, embora eu duvide que algum dia isso aconteça.

Todos os guardas ali presentes colocaram a mão direita no peito, sobre o coração, em um sinal de respeito mútuo pela perda de Lilian. O clima era sombrio, apesar das notícias boas, pois a empatia para com a Cavaleira de Balran era maior do que todo o resto.

— O que podemos fazer para ajudá-la, Senhora? — perguntou novamente o rapaz, Rudrick, inconformado. — Quais são as nossas ordens?

— Apenas continuem esperando. Este, infelizmente, será lembrado como um dia tomado pela mais pura agonia. — Virou as costas para os soldados e dirigiu-se novamente ao cômodo onde Lilian e Rey se encontravam, estaqueados ao lado da maca de Zen com uma expressão tão desolada que a dor se tornava mais do que evidente.

A visão de Zen não era das melhores para se ter. O corpo todo enfaixado, só sobrava o rosto de fora, pálido, com aspecto doente. Longas agulhas espetavam ele por todo o corpo, e uma menor estava introduzida no braço esquerdo, por onde passava uma solução levada por um tubo feito com o intestino de um peixe muito raro naquelas terras. No peito, um pouco abaixo do coração, estaria um furo com uns seis centímetros de diâmetro, mas ele agora havia sido fechado por cauterização. Um processo doloroso, onde qualquer homem gritaria de tanta dor. Mas Zen não gritou. E isso não era um bom sinal. Lillian, sentada numa cadeira ao lado da cama, estava com a cabeça baixa, os cabelos loiros caíam soltos, escondendo seu rosto. Alguns diziam que ela estava dormindo, mas tanto a Mulher de Sariel quanto o pequeno Rey, desolado ao lado dela, sabiam que ela não estava. Não havia nem piscado o olho, durante todo aquele tempo, e não respondia mais ninguém. Era quase como se a Cavaleira de Balran, forte, imponente, houvesse ido embora, e só tivesse deixado uma casca vazia para trás.

A porta se abriu mais uma vez, e desta vez não era nenhuma das mulheres de Sariel, mas que também havia ajudado no processo de recuperação do rapaz. Sarym, com olheiras contrastando com sua pele extremamente branca, tinha uma expressão abatida no rosto, embora um sorriso triste tomasse conta de seus lábios.

— Precisamos conversar, Cavaleira. Sabe que não há mais tempo, não pode adiar isto mais do que já o fez.

A Loira não respondeu, permaneceu ali parada na mesma posição. A Mulher de Sariel voltou-se para Sarym, pondo-se entre ela e a Cavaleira.

— Por favor, senhora, faça silêncio, aqui é um antro de repouso.

Sarym avançou e agarrou o braço de Lilian, aproximando bem o seu rosto do da Cavaleira. Os olhos de Lilian demonstravam toda a falta de esperança que sentia naquele momento, toda a dor que seu corpo já havia aguentado, não importando a maneira como fora causada. Eles se moveram lentamente, encontrando-se com os da ruiva. O rosto abatido de Sarym não era nada comparado ao de Lilian, que carregava as marcas da perda de alguém importante.

— Eu não vou mais insistir. Você sabe o que faz, mas eu quero lhe dizer pela última vez para que saiba que eu pelo menos tentei fazer algo por vocês. O Olho Invernal é a única chance que ele tem de viver, e nós duas sabemos que ele não tem muito tempo para esperar você decidir. Nada que fizerem aqui vai curar o seu ferimento, isso não está ao alcance das mãos humanas, é um problema muito maior. — Estava falando baixo, mas seu tom era ríspido e ameaçador. — Se você quer que ele viva, terá que fazer o que eu estou dizendo. Iremos para Krun's Righ, e ele será tocado pela Senhora da Nevasca. Se sua alma merecer ser salva, assim acontecerá. Afastou-se de Lilian e virou as costas, saindo dali. A curandeira ficou olhando para a porta fechada por um momento, mas sem dizer nada, voltou a limpar os ferimentos de Zen.

Assim que largou Lillian, a mulher deixou a cabeça cair outra vez, ficando a encarar o chão. Não tinha forças para nada, queria ficar para sempre ali, se isso fosse possível. Seus olhos moveram e ela encontrou Rey, ali, encolhido, deitado ao lado dela. O menino dormia, e talvez estivesse sonhando algo feliz, ela esperava que ele estivesse tendo algum sono tranquilo onde nada daquilo havia acontecido. Voltou o olhar para o lado e viu Zen, repousando, imóvel, como se estivesse dormindo. E queria que fosse isso, desejava com todas as forças do mundo que ele estivesse apenas dormindo. Queria tanto que aquilo fosse verdade, que seu coração chegava a doer no peito, como se quisesse sair fora. Ela apertou os punhos com tanta força, que sangrou pelo meio dos dedos, enquanto lágrimas que achava que não mais existiam, rolaram pelas bochechas pálidas. Os olhos estavam inchados e vermelhos, de tanto que ela havia chorado, e mesmo assim, tinha ainda mais para chorar.

Sarym encostou-se na parede do corredor, irritada. Seus músculos estavam tensos e a cabeça doía, tanto por cansaço quanto pelos golpes sofridos na noite anterior. A movimentação quando chegaram na Casa de Sariel havia sido intensa, uma confusão sem precedentes para aquelas pobres senhoras curandeiras. Frey havia sido deixado para descansar, com as mãos enfaixadas pois aparentemente, aqueles eram os únicos danos reais em seu corpo. Anne, que já estava lá antes, dormia solenemente, repondo as energias gastas na explosão do castelo, mas Zen... Sarym sabia o que Zen tinha. A cauda da Serpente das Nuvens havia transpassado seu corpo e seu espírito, a essência de sua vida, e cauterizar suas feridas pouco ajudaria para que ele novamente recebesse o sopro da vida. Tentara fazer o pacto de sangue pela segunda vez, mas a serpente encontrara a própria cauda, o que significava que o ciclo do corpo de Zen já havia se fechado. Se havia alguém capaz de reverter aquilo, era a sua deusa, a Senhora da Nevasca, Portadora do Olho Invernal. Precisavam ir para Krun's Righ o quanto antes, ou Zen estaria perdido para sempre.

Lillian escondeu o rosto nas mãos, engolindo o choro, mas as lágrimas ainda escapando. — Zen... Seu imbecil — conseguiu dizer, antes do choro sair por fim. Rey, que acordou, viu a Cavaleira daquele jeito, e só pode abraçá-la. Sentia-se tão culpado quanto ela. Se tivesse tido a força para erguer a lança, Zen não estaria ali, do jeito que estava. Sob o olhar condescendente da Mulher de Sariel, os dois choraram.

***

Pete era outro dos que sofria com a espera angustiante da recuperação de um ente querido. Frey, ao seu lado, permanecia deitado em uma das camas sem dar nenhum sinal de que acordaria em breve. Não havia quartos separados para todos, como era de se esperar, então Anne também estava ali. Não havia sido ferida pelo fogo, mas seu corpo estava repleto de hematomas que variavam do roxo ao azul escuro. Damon estava ao seu lado, segurando uma de suas mãos enquanto fitava seu rosto solene com uma expressão triste.

— Ele vai demorar pra acordar? — perguntou o Pete, assustado, as mãozinhas no braço do irmão. Suas bochechas estavam sujas de fuligem, e os olhos vermelhos de choro. Anne olhou para ele, abrindo um sorriso para a criança. Botou a mão sobre o ombro dele, e o menino olhou para ela.

— Ele precisa dormir Pete. Ele pode ser muito forte, o mais forte de todos, mas até mesmo ele precisa descansar algum momento. Pete olhou para ela, não entendia direito nada daquilo, mas sorriu. Balançou a cabeça e voltou a olhar para o irmão.

— Ele não é o mais forte de todos, eu que afrouxei a lança para ele tirar. — Alfinetou Damon, com o canto da boca e olhando para a parede. Suas mãos estavam completamente enfaixadas, com alguma mistura esverdeada escapando por entre as gazes, algum tipo de anestésico criado pelas Mulheres de Sariel.

A Ruiva olhou para Damon, com o cenho franzido, braba. Não disse nada, mas deixou bem claro o recado, "não teve graça". Voltou a olhar para Pete.

— Não liga para o que ele diz Pete. O Damon está bravo que seu ego não foi grande o suficiente para tirar a lança ele mesmo. — Alfinetou, um sorrisinho malicioso surgindo no canto dos lábios.

Pete por sua vez nem prestava atenção.

Damon sorriu, sem graça. Queria dizer para Anne o quanto se preocupara quando a viu naquele estado, mas não conseguia. As palavras pareciam enfraquecê-lo, como se fossem um novo ponto fraco a ser usado em algum momento. Certas coisas eram melhores quando guardadas. Levantou-se, dando um breve aperto carinhoso na mão da garota. — Há outras coisas que preciso resolver, mas eu volto daqui a pouco. Tem certeza de que se sente bem? Não quer que eu chame alguém para ficar aqui?

Ela olhou para ele por cima do ombro, e então sorriu, um sorriso tão doce quanto o que dirigia para Pete. Apenas balançou a cabeça, negando, os cabelos vermelhos caídos sobre os ombros mal se moviam. Retornou então sua atenção para Frey e Pete.

Damon saiu do quarto, fechando a porta devagar para que não fizesse barulho. Virou-se e esbarrou com alguém. Franziu o cenho e ergueu os olhos para ver quem era, irritado.

— Olha por onde anda!

Era uma mulher, mais alta que ele, com uma cara de poucos amigos. Do lado dela um menorzinho, com uma roupa nobre fuleira, e um sorriso brincalhão. Megera e Azarado.

— Que? — ela disse, olhando pro Damon, franzindo o cenho.

— Erro meu, digo. — Damon consertou, erguendo um pouco a cabeça para olhá-la nos olhos. — Os corredores desse lugar são bem apertados, não dá pra andar direito sem esbarrar em alguém.

— Foi bem isso que eu entendi — falou ela, olhando para a porta. Pareceu prestes a perguntar algo, mas foi o Azarado quem fez a pergunta.

— O grandalhão tá bem? — perguntou, as mãos escondidas nos bolsos da calça.

— Não sei. O irmão disse que ele já fez algo parecido antes de chegar em Balran, derrotou um mago depois de arrancar uma árvore do chão, mas são duas coisas bem distintintas, né... não dá pra comparar uma árvore com a Lança de Aruk. — Suspirou, esfregando um dos olhos. — Não durmo há mais de um dia, meu corpo fica mais pesado a cada minuto que passa.

— Não sei. O irmão disse que ele já fez algo parecido antes de chegar em Balran, derrotou um mago depois de arrancar uma árvore do chão, mas são duas coisas bem distintintas... não dá pra comparar uma árvore com a Lança de Aruk. — Suspirou, esfregando um dos olhos. — Não durmo há mais de um dia, meu corpo fica mais pesado a cada minuto que passa.

— O Dragão morreu mesmo? — a Megera olhou para o Larápio.

— Não acredito que seja possível uma terceira ressureição. Quando a lança atravessou o corpo da Serpente das Nuvens, eu senti como se aquele fosse o ponto final deste capítulo da história.

Ela fechou os olhos, concordando com a cabeça, suspirando. Sua expressão pareceu aliviar-se, como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros. — Bom, bom — ela concordou com a cabeça. O Azarado olhou para ela, com uma sobrancelha erguida.

— A Megera de Ferro tá com medo? — ele disse, dando uma risada. E ela virou para ele já com o diabo encarnado no corpo.

— Eu vou te mostrar quem é que ta com medo seu franguinho! — foi para puxar a espada, mas não a tinha mais. Armas não eram permitidas na Casa de Sariel se você não fosse um soldado de Balran.

— Vocês dois... — Damon começou, e percebendo a mudança de tom na voz do rapaz, os dois viraram-se para olhá-lo, esquecendo a própria desavença. — Eu preciso agradecê-los por toda a ajuda que me deram. Vocês arriscaram a vida junto comigo, lutaram contra Zael, me tiraram da prisão, entraram comigo na Gruta... Tudo isso sem hesitar, sem me perguntar o porquê, vocês apenas me seguiram. — Parou um pouco, olhando nos olhos da Megera, e depois do Azarado. — Não tenho nada para lhes oferecer como recompensa. Eu não posso te dar a luta que você tanto esperou com a Lilian, Megera, e nem o lucro colossal que usei para te convencer a vir comigo, Azarado, mas eu gostaria que ambos soubessem que em qualquer lugar do mundo, seja em Ádria, seja em Sarkon, eu estarei lá quando precisarem de mim.

Eles ergueram as sobrancelhas, espantados com a demonstração de afeto de Damon. Se entreolharam por um segundo, e então deram uma risada. O Azarado olhou para o Larápio, pondo a mão no ombro dele.

— Não ache que vou esquecer o ouro que me deve. Quando enriquecer vou estar lá para receber minha parte. — Falou, sorrindo.

A Megera deu de ombros, olhando na direção da porta onde estava Lillian. Sabia que ela estava ali, mas não ousou nem chegar perto.

— Não vou lutar com a Loira como ela está agora, eu a derrotaria muito facilmente — disse, mas não estava alegre com aquilo.

— Então seria mais interessante se eu colocasse o Azarado em coma também, aí você ficaria tão motivada quanto ela e a luta seria realmente de igual para igual, não? — Damon comentou, mantendo a expressão de seriedade com muito esforço.

Ela olhou para o Damon, os olhos arregalados. O Azarado fez uma expressão se não igual, muito parecida, dando uma risada seca em seguida.

— O QUE TU QUER DIZER COM ISSO? — ela berrou, procurando a espada mais uma vez, não a encontrado é claro.

— Façam silêncio! — uma voz áspera e rígida veio do corredor. Era uma velha alta e esguia, de óculos. Vestia o tecido branco de Sariel, e carregava nos braços uma bacia com panos e outros produtos que muitos consideravam bruxaria, pelas capacidades de cura deles. A Megera baixou a cabeça, murmurando um pedido de desculpas qualquer, e assim também fez o Azarado. Ela reprimiu o trio com o olhar bravo e então entrou pela porta do quarto de Zen.

— Brincadeiras à parte, há outra coisa séria que preciso discutir com vocês. — Damon novamente atraiu a atenção de ambos, embora eles ainda estivessem corados e evitando olhar um para o outro. — O que farão agora que tudo acabou? Não podemos esquecer que você matou guardas para me tirar da prisão — olhou para Megera, e depois voltou-se para o Azarado — e sua participação o enquadra como cúmplice. Eu não vou ficar em Balran, é óbvio, tenho um longo caminho pela frente, e vocês também não podem ficar pelos motivos que acabei de citar, então... Não seria justo se viessem conosco? Eu não sei exatamente para onde vamos agora, mas se é que a Meryna morreu, ainda restam seis membros do Flagelo...

— Nossos caminhos podem ter se encontrado, Damon, mas não acho que o destino queira nos manter caminhando pela mesma estrada. — O Azarado respondeu, olhando-o no fundo dos olhos. — Faça o que tiver que fazer. Se eu tiver sorte, e sei que não terei, nunca mais nos veremos. Você é um imã de problemas, Larápio. — Sorriu, zombeteiro.

— Até a próxima, então. — Damon sorriu, fazendo um aceno com a cabeça. O Azarado retirou a cartola maltrapilha e fez uma breve mesura, virando as costas e caminhando pelo corredor, despreocupado. A Megera deu de ombros e foi atrás dele. Quando sumiram de sua vista, fora da Casa de Sariel, Damon realmente esperou que aquele não fosse o último encontro do trio.

— Seus amigos já estão indo embora? — perguntou um par de orelhas élficas que surgia ali no corredor, de braços cruzados, vestido num robe simples demais para alguém como ele. O cabelo loiro despenteado ainda estava sujo de fuligem, e o corpo estava grande parte enfaixado.

— Sim... Pelo visto nossa tarefa é arriscada demais para que alguém queira nos acompanhar. — Respondeu para Mark com simplicidade, embora as palavras ainda lhe pesassem um pouco. Era irônico que fosse sentir falta de duas pessoas tão controversas quanto eles.

— Eles tem escolha, nós não. — Encostou-se à parede, ao lado de Damon. — Frey não acordou ainda?

— Não. Continua inerte como uma pedra naquela cama. — Encostou-se na parede do corredor, suspirando. — Queria eu descansar assim por algumas horas, não aguento mais ficar acordado.

— E por que não vai?

— Algo me preocupa, Mark. — O tom de Damon não parecia demonstrar nada além da mais pura seriedade e nervosismo. — Meryna.

O Elfo franziu o cenho, baixando levemente a cabeça. Os olhos encararam o nada por um momento, tão sério quanto o Larápio ao seu lado, mas não tinha nervosismo. Elfos raramente sentem nervosismo.

— O que acha?

— Eu não sei o que dizer. Se fosse um humano normal, ela teria morrido ali mesmo com aqueles ferimentos, mas ela não é humana e nem mesmo normal. Não sei nem dizer o que ela é, eu só sei que se de alguma forma ela conseguiu ficar viva, nós corremos um risco inimaginável. O ódio é o maior e mais forte combustível para a alma.

— Parece até um Elfo falando. — Riu, tirando um fio de cabelo seu da frente do olho. Sua expressão retornou à seriedade. — Eu não conseguia ver nada ao redor dela além de escuridão. Se morreu, não consegui ver o Manto Negro da Morte a levando.

— Espero que você esteja errado, sinceramente. — O rapaz suspirou pesadamente, erguendo os olhos para o teto em seguida. — O que vai ser de nós daqui pra frente? Se a Meryna foi só o começo, como tudo termina?

O Elfo deu de ombros, sem uma resposta. Seu poder ainda não o permitia ter visões do futuro, como alguns de seus iguais podiam fazer.

— Continuamos indo adiante, sobrevivendo do jeito que dá. Até agora, só eu, você, Anne e Frey tivemos o sonho. A Cavaleira se recusa a falar com quem quer que seja, e o Zen... — olhou na direção da porta que dava para o quarto do Atormentado. — Algo nele mudou, não é mais o mesmo da última vez que o vi. E acho que agora, do jeito que ele está — franziu o cenho —, não faz muita diferença se ele teve o sonho ou não.

— Há outra coisa que me intriga no meio de tudo isso. — Damon começou, mais uma vez. Abaixou os olhos para encarar Mark. — E o Pete? Você acha que...

— Não, não, impossível. É o Frey. — Disse. — Ele é o Escolhido pelo Sonho, eu vejo claramente a realidade se moldando ao redor dele. É quase como se uma aura densa se desprendesse daquele homem.

— Algo me diz que o garoto ainda vai nos surpreender. — Parecia aliviado com a resposta de Mark, mas não convencido. — Mas independente de tudo isso, como você está? Você e o Zen lutaram sozinhos contra o dragão por um bom tempo.

Olhou para suas bandagens, passando os olhos por elas com certo desdém para com os ferimentos.

— Já estive pior. Aquele Dragão era páreo duro, com umas cartas debaixo da manga. Ou melhor — olhou para Damon, com um sorriso — da escama.

O Elfo começou a rir, olhando para o alto mas de olhos fechados, uma lágrima escapando pelo canto do olho. Passou o dorso da mão e espantou essa lágrima para o nada. Depois de uns segundos rindo descontroladamente, foi silenciado por uma Mulher de Sariel que surgiu no corredor, e entrou no quarto de Frey.

— Nossa, essa foi boa — ele disse, suspirando.

— Sortudo é o Zen, que tá em coma e não pode escutar o que você diz. — Damon desencostou-se da parede e saiu porta à fora, balançando a cabeça incrédulo.

O Elfo olhou pro Damon, sem entender aquela reação. Balançou a cabeça, dando de ombros, como se aquele humano não tivesse um nível refinado de humor como o seu. Então, a porta escancarou-se, e dali saiu Anne, olhando para os lados, com um sorriso no rosto. O primeiro que viu foi Mark, e foi pra ele que ela já disse quase aos berros.

— Acordou! O Frey acordou! — e voltou para dentro, deixando a porta aberta.

Mark avançou a passos largos em direção ao quarto de Frey, com um sorriso de orelha a orelha estampado no rosto. Cruzou o portal e deparou-se com uma belíssima cena, uma que fez valer todo o sacrifício da noite anterior e apagar, mesmo que apenas momentaneamente, toda a tristeza vivida por ele. Pete estava em cima da cama, abraçado ao torço do irmão, chorando de felicidade por ele ter acordado enquanto Frey retribuía com a cabeça encostada no ombro pequenino do garoto, abrigando-o de forma paternal.

Anne parou, ao lado da porta, sorrindo, algumas lágrimas rolando pelas maçãs do rosto. Pete, abraçado, murmurava coisas entre o choro, que nem ela nem Mark entendiam, mas Frey sim, afinal, naquele momento elas eram as palavras mais puras do mundo.

— Me desculpa Frey, me desculpa — ele esfregou o rosto na veste do Guardião.

— Nunca mais faça isso, seu estúpido. — Os olhos de Frey ardiam enquanto as gotas quentes escorriam de seus olhos. — Da próxima vez que chamar a atenção de um dragão, eu jogo a lança em você e não nele.

Ele riu, abrindo um sorriso, balançando a cabeça veementemente. E então ficou ali em silêncio, abraçado no irmão mais velho. Quando perceberam, ele já estava dormindo. Finalmente podia dormir, agora que sabia que seu irmão estava bem. Que estava vivo.

— E vocês, como vocês estão? — Frey olhou para eles, ajeitando o irmão para que cochilasse mais confortavelmente. — O que aconteceu depois que o dragão caiu?

A Ruiva não deu tempo para que Mark desse qualquer resposta. Correu na direção do grandalhão e o abraçou, afundando o rosto em seu ombro, tendo cuidado para não acordar o pequeno Pete.

— Eu pensei que você tinha morrido — murmurou, com a voz embargada.

— Coincidência, eu pensei o mesmo quando algumas toneladas de pedras e tábuas caíram em cima de você, sem citar, é claro, a enorme explosão que causou tudo isso. — Comentou baixinho, feliz por ela estar bem.

Ela riu, murmurando um "bobo", antes de se afastar, pigarreando. Parou ao lado de Mark, esfregando o rosto com a manga do vestido, limpando as lágrimas. Adotou uma feição serene, digna de uma nobre, com tanta rapidez, que fez até o Elfo a encarar por um segundo. Mark por sua vez puxou a gargante, olhando pro Frey com um sorriso.

— Bom te ver falando grandalhão.

— Também fico feliz por ver você de pé, orelhudo. — Sorriu para Mark, satisfeito por ele não ter se ferido tanto, mesmo depois de dar tanto de si para proteger o grupo. — Enfrentar um dragão deve estar dentro do seu cotidiano, já que fez isso com tanta facilidade...

— Erguer uma arma lendária destinada a uma só pessoa deve estar dentro do seu, então. — Disse, cruzando os braços, assumindo uma postura séria. — Como fez aquilo?

— Do mesmo jeito que ergui a árvore, eu acho. — Levou a mão até onde se encontrava o colar, pensativo. — O colar do meu pai esquentou, eu parei de pensar como eu mesmo e quando me dei por conta, já estava com a lança na mão. — Deu de ombros, sem saber explicar direito o que havia acontecido.

O Elfo pôs os olhos sobre a peça prateada, intrigado. Se aproximou, tomando-a entre os dedos, mas sem retirá-la do pescoço de Frey. Normal, levemente aquecido pelo contato à pele de Frey. Mas fora isso, estava normal. Nenhum fluxo de poder. Nenhuma aura visível. Seus olhos se puseram no Guardião. — Quem era seu pai?

— Ninguém em especial, eu acho. Ele era um velho cavaleiro, já tinha saído de seu tempo de glória, mas quando começou a Guerra de Sarkon, ele foi convocado para servir e depois... Nunca mais voltou. — Olhou para o colar, a única lembrança que tinha de seu pai.

Ele permaneceu com os olhos fixos sobre o Frey, e então suspirou, dando de ombros. Largou o colar e recuou para seu canto, encostado na parede. — Não tenho ideia do que pode ter sido. Esse colar não tem magia alguma, e muito menos você. Um milagre dos céus talvez, não sei.

— Eu acho que é exatamente isso que nós precisamos agora... Um milagre. — Comentou Frey, suspirando e se encostando nos travesseiros. — Se não se importarem, vocês poderiam voltar depois? Ainda sinto como se tivesse erguido uma tonelada...

— É claro. — Disse o elfo, já se dirigindo na direção da porta. Anne ficou ainda uns instantes olhando para Frey e Pete, antes de se tocar, e sair atrapalhada. Ficaram ali sozinhos os irmãos.

Frey pousou os olhos sobre Pete demoradamente, pensando em tudo o que o irmão estava passando simplesmente por ter decidido seguí-lo, por não querer se separar do único que sempre iria poder chamar de familia. Afagou seus cabelos, perdido nos pensamentos. Não tinha ideia do que o destino lhes reservava, mas de uma coisa sabia:

Nada iria separá-los de agora em diante.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lenda dos Sete" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.