A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 44
A Fúria dos Céus


Notas iniciais do capítulo

"Mas era exatamente isso que estava disposto a fazer para salvar o irmão: o impossível." Frey, o Protetor.



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Do parapeito da sacada, a criança olhava temerosa para a besta voando nos céus, que cuspia raios e trovões, a luz refletindo em suas escamas azul-escuras. E aqueles olhos, olhos vermelhos e brilhantes, carregados de ódio e trevas. A criança correu para dentro de seu quarto e se escondeu debaixo da cama. Seus pais não estavam em casa, haviam ido ver a tal “festa” que uma nobre qualquer estava promovendo em nome de alguém. Um gritinho infantil veio da porta, seguido de uma fala.

— Irmão! O que está acontecendo! — era uma menininha de uns cinco anos, segurando um ursinho de pelúcia. Ela chorava.

O garoto saiu debaixo da cama e foi abraça-la, tampando a visão que ela tinha da janela.

— Não é nada, maninha, vai ficar tudo bem. Apenas vamos brincar, tudo bem? Vamos brincar de esconde-esconde. — Ele sorriu para ela, e a levou pela mão até o andar debaixo.

Correram pela porta dos fundos, saindo numa rua deserta, castigada pela tempestade. Olhou para o céu e ele estava negro, coberto por uma tormenta que largava seus trovões sobre o mundo. Pegou irmã menor no colo e começou a correr, pisando em poças de lama, numa ele afundou o pé e quase caiu. Lá atrás, caiu mais um trovão. O monstro voador se aproximava.

Entrou num dos becos, um dos muito que conhecia. Brincava o dia todo com os amigos em dia de Sol, conhecia aquelas ruas como a palma de sua mão. Sabia que naquele beco em particular haveria de ter um caixote, e subindo nesse caixote, poderiam pular uma paliçada velha de madeira. E lá estava o caixote, e assim os dois fizeram. Deu apoio para que a irmão conseguisse pular, e então ele mesmo pulou. Segurou ela pela mão e voltou a correr, o mais rápido que conseguia. Lá atrás, caiu mais um trovão. O monstro voador se aproximava.

A rua em que deram estava deserta, assim como a anterior. Achava que estava sozinho naquela cidade, só ele e sua irmã, pois não via uma alma viva, só via a chuva. Sentiu a mão da irmã escapar e parou, quando virou para trás viu que ela havia caído, e chorava. Devia ter tropeçado numa pedra e ralado o joelho. Engoliu em seco e a agarrou no colo outra vez. Voltou a correr, enquanto olhava para os lados. Ele precisava se esconder, precisava proteger sua irmãzinha. Viu uma porta aberta em uma das casas, e um sorriso brilhante alargou-se em sua face. Correu para lá, entrando pelo meio do escuro do recinto. Lá atrás caiu mais um trovão. O monstro voador se aproximava.

Estava tudo escuro e coberto de poeira. Parecia ser um bar, uma taverna quem sabe. Não dava para ver muita coisa, mas havia um balcão que parecia o de um bar. Levou a irmã para ali, largando-a gentilmente debaixo do balcão. Ela não berrava mais, apenas fungava. Ele sorriu para ela. Pegou a pelúcia que a menina carregava e a ergueu, abrindo os bracinhos do brinquedo. Balançou ela, cantando uma musiquinha qualquer, fazendo parecer que o ursinho parecia dançar. Ela soltou uma risadinha e deu um sorriso.

— Quieta tá bom? Ou a gente vai perder o jogo. — A menina concordou com a cabeça, sorrindo. Ele entregou a pelúcia e ela abraçou o ursinho.

O rapaz apoiou as mãos no balcão e levantou a cabeça para fora do esconderijo, olhando lá para fora pela porta entreaberta. Chovia forte, cada vez mais forte. Não escutava nenhum barulho de trovão, porém. Engoliu em seco. Uma gota de suor escorrendo pela testa, enquanto seu coração batia cada vez mais rápido de medo.

Então ouviu um barulho horrendo, enorme. Uma espécie de rugido gutural, que mais se assemelhava ao som de um trovão. Viu uma luz e se jogou para baixo, abraçando a irmã, fechando os olhos, antes do som da explosão.

Foi atordoante, mais do que isso, quase desmaiou. Um zumbido forte permaneceu nos seus ouvidos, deixando-o surdo para o mundo. Tinha morrido? Não se sentia morto. Abriu os olhos e tudo estava meio branco, meio empoeirado. A irmã aninhada em seu colo, os olhos bem fechados, abraçada no ursinho. Quando olhou para o alto, viu uma pilha de escombros que devia ter caído sobre eles mas não caiu. Por que? Por que aquele amontoado de telhas e madeiras pegando fogo continuava em pé? A resposta veio junto de uma fala.

— Tudo bem criança? — era um homem, com cabelos loiros, vestido numa armadura suja e quebrada em várias partes. No peito dela, a face de um leão rugindo estava entalhada, imponente, perigosa.

Ele segurava uma espada que brilhava, com eletricidade correndo por ela. Estava em pé no balcão, sob suas costas, uma pilastra daquela construção estava apoiada, impedindo que aquela montoeira de entulhos caísse sobre ele. Tinha orelhas pontudas, algo que o garoto jamais havia visto. Ele então deu-se conta da pergunta do estranho, e confirmou vagarosamente com a cabeça. O estranho sorriu.

— Ela é sua irmã? Então vão embora daqui, a Cavaleira de Balran já deve estar evacuando todos. Corra para o portão principal e não olhe para trás. ­— A perna dele falhou por um instante, e os entulhos ameaçaram cair enquanto rangiam. O garoto soltou um gritinho. — Vá!! — gritou o estranho.

O menino foi. Correu como nunca antes, carregando a irmã pequena nos braços. Escutou outro daqueles urros demoníacos, e quando olhou para trás, o loiro estava ali e então não estava mais. Sumiu num piscar de olhos, todos os escombros sucumbindo de uma vez só sobre os restos daquele lugar. No céu, a besta voadora se contorcia, disparando seus trovões contra uma mancha negra que voava de um lado para o outro no céu. Ele acreditou se tratar de... Um Corvo? Então seus olhos foram capturados por outra imagem. Dourada e branca, voando junto do Corvo, atacando o monstro que cuspia trovões.

Era um poderoso Falcão.

***

Zen e Mark dançavam, de um lado para o outro no meio do céu, um apoiado pelo outro para se movimentar. As espadas mais parecendo chicotes de prata, disformes, mas que abriam rasgos que seriam mortais para qualquer homem, mas pareciam apenas fazer cócegas na Serpente dos Céus.

Cada movimento precisava ser preciso, e era preciso. Um passo em falso naquela luta, e estariam mortos. Aquele inimigo era poderoso demais. Seus trovões eram poderosos demais.

O Atormentado e o Elfo pararam sobre o topo de um prédio, suas espadas reduzidas a pouco mais do que aço. Eletricidade corria pela lâmina, e por consequência, para o corpo deles. Mas eles não ligavam. Zen, com seu Frio, fazia a própria chuva congelar ao redor dele. E Mark, com seu misterioso Poder Élfico, fazia com que a água nem ousasse tocá-lo. Um trovão veio certeiro atingir os dois, mas os dois não ligavam para se ele era certeiro ou não. Antes que chegassem neles, eles já haviam sumido, se tornado duas aves no céu, uma negra com olhos amarelos, e outra branca, com uma leve plumagem dourada.

As aves contornaram o Dragão algumas vezes, disformes, e então voltaram a ser humanos, pousados em construções diferentes. Sangre jorrou do Dragão, sangue negro, e ele gritou seu urro monstruoso, e cuspiu seus raios para o céu, sendo respondido com trovões que caíam por toda a cidade.

— Precisamos dar um fim nisso logo, Mark!! — gritou Zen de onde estava, brandindo a espada numa só mão.

— E o que quer que eu faça?! Estou picotando essa besta sem parar, e ainda assim ela não cai!! Se continuar assim, vamos acabar mortos! — respondeu Mark, e aquilo era verdade.

Estavam lutando há quase uma hora sem parar, cortando e picotando pelas escamas e carne do Dragão, e ainda assim, ele parecia não ligar. Magicamente, os ferimentos se fechavam, e ele voltava a disparar seus raios. Enquanto isso, os ferimentos que Zen e Mark recebiam não se regeneravam, e eles já haviam recebido vários.

Mark estava usando apenas o peitoral, o resto da armadura havia sido destruída num raio que bloqueou com a própria espada, mal se manteve em pé após fazer isso, mas ainda assim continuou.

Zen por sua vez não transparecia seus ferimentos, mas eles existiam. O manto negro e sujo, todo costurado, ocultava os cortes, rasgos e queimaduras que havia debaixo dele. Escondiam o sangue escorrendo do ferimento aberto no abdômen.

— Precisamos manter ele afastado das pessoas! Não deve faltar muito para que Lillian tire todos os cidadãos da cidade! — gritou Zen e pulou, para desviar da cauda do Dragão.

— Muito prestativa aquela sua mulher! Não me disse que havia conseguido uma nova namorada! — respondeu Mark, também pulando para escapar de um ataque da Serpente.

— Ela não é uma namorada! — gritou, descendo sua lâmina sobre o lombo do monstro. Ele urrou e tentou disparar um trovão, mas Zen já havia sumido.

— É?! É o que então?! — Mark apontou sua lâmina para a besta e então pulou, atravessando a mão dela, quase dividindo-a em duas com a lâmina.

— Ela é... É um brutamontes vestido de mulher! — o rapaz pousou num dos prédios de costas para o Dragão. Mark pousou logo em seguida em suas costas e usou-a de base, saltando de volta na direção da Serpente dos Céus.

— Você sempre gostou das com personalidade forte! — riu o Elfo, abrindo outro corte no demônio. — Aya era assim, não era?! — ele riu. Lutando contra um Dragão, o elfo ria.

Quando pousou no telhado de uma casa e olhou para trás, vendo o amigo, Zen estava com uma expressão séria, encarando-o de volta. Uma aura negra o envolvia, misturada a seu Frio. Balançou a lâmina, e o ar se moldou ao redor dela, tornando-se sólido por um momento. Sumiu, e foi aparecer em cima do Dragão, um enorme jorro de sangue escapando das costas do demônio, seguido de um urro e um raio de qual ele desviou. Voltou a surgir ao lado de Mark.

— Não fale de Aya, Mark. Eu não permito que fale dela de novo — disse ele, sério, sem tirar os olhos do Dragão.

Mas Mark não olhava mais para o Dragão, olhava aqueles olhos de Zen, carregados de frieza e um ódio tão profundo que chegava a assustá-lo. Nunca havia visto-o assim antes.

— O que — foi interrompido quando Zen o empurrou.

— Cuidado! — ele gritou, empurrando Mark para o lado enquanto saltava. Um raio irrompeu bem onde os dois estavam, por pouco não os engolindo.

A Serpente dos Céus voava em seu próprio eixo, circulando, enquanto os encarava, com curiosidade. Maligna curiosidade. Ela soltou uma risada, que pareceu vir da mais profunda escuridão.

— Eu conheço vocês, já senti cheiros iguais antes. — E riu outra vez.

Sua voz era anciã, e parecia doente, como se estivesse carregada de catarro. Era difícil ouvir ela sem sentir um frio na espinha, mas os dois não sentiam.

— Sim... Sim... Eu sei quem são vocês. Lutaram ao lado de muitos nomes grandiosos, e também do meu maldito algoz. Lembram-se deles? Dorvain, das Flechas Certeiras.Marláu, e seu Barco Voador. Ur e seus Cem Senhores da Guerra. Aruk... Ponta de Ferro. — O monstro pareceu sorrir. Um sorriso diabólico. — São tantos nomes, que nem me recordo de todos.

— Do que raios este Dragão está falando? — perguntou Zen, aparentando não entender nada.

A própria Serpente pareceu confusa. Eles não se lembravam daqueles nomes? Então quem eram eles? Ela enfureceu-se. Farsantes. Moveu a cauda como um chicote, rápida e rasteira, pegando os dois de surpresa de uma vez só. Corvo e Falcão foram jogados para o alto. A cauda moveu-se de novo e outra chicotada os mandou voando para longe, destruindo as paredes dos edifícios.

O Corvo e o Falcão caíram.

***

— Por aqui! Por aqui! — berrava um guarda completamente equipado com sua armadura arranhada e maltrapilha. Balançava as mãos para o lado e para cima, mostrando a rota de evacuação para as pessoas. A Serpente das Nuvens voava sobre os céus de Balran, destruindo construções e causando incêndios com seus raios incessantes. O barulho era ensurdecedor, fosse pelos trovões ou pelos rugidos da criatura, que tanto se assemelhavam a eles.

Pete seguia a multidão, com medo. Já estava profundamente arrependido de ter brigado com Frey, porque agora, além de não saber o paradeiro do irmão, sequer sabia se ele estava vivo. Respirou fundo e continuou correndo. A chuva fria e constante o impedia de ver com clareza o que estava acontecendo, mas vez ou outra, brilhos intensos e dourados podiam ser vistos cruzando o ar e se juntando a outro que se assemelhava a uma nuvem negra. Circulavam o dragão, desferindo ataques que somente enfureciam a criatura, sem danos reais.

— Frey! — gritou, desesperado, perdido. Nenhuma resposta veio ao seu chamado. Olhou para os lados, procurando algo em que pudesse subir para enxergar sobre as cabeças da multidão, encontrando uma carroça que perdera uma das rodas e tinha o carregamento de frutas todo espalhado no chão. Saltou sobre suas tábuas molhadas e colocou a mão na testa, para impedir a passagem da água e enxergar um pouco melhor. — Frey! — sem resposta, mais uma vez.

Franziu o cenho, com raiva. Ajoelhou-se sobre a carroça e cerrou os punhos. Não posso continuar com isso. Seus pensamentos eram quase todos sobre fugir, mas um deles se impunha, mais forte, mais intenso, e era sobre o irmão. Eu fiz ele voltar, ele pode muito bem estar morto agora, como todo mundo, e eu aqui esperando ele. Balançou a cabeça, tentando afastar aquilo. Faça alguma coisa, Petezinho, ou vai deixar a memória do seu irmão se extinguir em vão? Você é um covarde, sabia? Não merece a familia que teve. O grande nome de seu pai, e agora o de seu irmão, que ficará marcado aos olhos daquele que ele salvou também.

Faça alguma coisa, covarde.

Covarde.

Faça alguma coisa.

COVARDE!

Gritou. Um grito de pura raiva, de pura angústia. Abriu os braços e olhou para cima, para a chuva. Ouvia os gritos ao seu redor, ouvia os trovões, ouvia os rugidos, ouvia as espadas, ouvia o medo. Ele só não ouvia uma coisa: a bravura. Baixou os olhos e encarou o enorme fluxo de pessoas que passava pelos portões de Balran. Trincou os dentes e desceu da carroça, começando a correr na direção contrária. A Serpente ainda estava lá, e se todos deixassem a cidade, quem ajudaria os poucos que se propuseram a detê-la? Alguém tinha que tentar.

Seus olhos se encheram de água, mas desta vez, não eram lágrimas. Não havia tempo para chorar.

***

Lillian gritava ordens, o cabelo solto ensopado sobre o rosto. Os soldados iam de um lado para o outro, seguindo as ordens de sua líder. Damon ao lado dela ordenava junto da mulher, como se fosse também fosse algum líder. E por incrível que pareça os soldados também o obedeciam. Frey, por sua vez, andava de um lado para o outro, com as mãos na cintura, se contendo para não sair correndo atrás de seu irmão. Anne, logo ao lado dele, era cuidada por Mulheres de Sariel.

— Eu preciso ir! Eu preciso encontrar meu irmão! Ele é um medroso, deve estar correndo perigo! — disse ele para a Cavaleira.

— Se é tão medroso como você diz, ele deve aparecer daqui a pouco junto da multidão de pessoas fugindo, então sente essa sua bunda aí e pare de tirar meu foco! — ralhou ela, sem sequer olhá-lo. Voltou então a gritar ordens, enquanto Frey continuava andando de um lado para o outro.

Damon agarrou o braço de Lilian, que se virou rapidamente para ver quem estava segurando-a. Seu cenho franzido mostrava que não tinha tempo para brincadeiras. O Mercenário apontava para o horizonte, onde um enorme risco luminoso azulado colidia contra dois pontos menores, um totalmente negro e o outro dourado. — São eles, Lilian... — estava boquiaberto com as proporções do combate, com a força dos dois. Zen e Mark ainda estavam confrontando o dragão, mesmo depois de tanto tempo ter se passado? Seriam eles tão fortes assim?

Ela olhou para o Dragão que rodopiava e dançava, impossível de se ver no meio do céu de Balran. Apertou os lábios. "Zen", ela pensou, então olhou para seus homens, que já pareciam ter tudo sob controle. A população caminhava toda para fora, atravessando os portões. Muitos levavam muita coisa, e muitos só levavam a roupa do corpo. Ela voltou a olhar para o Dragão, a tempo de ver o risco negro e dourado explodirem algumas construções, levantando uma nuvem de poeira. Soltou um gritinho. — Não!

— Que se dane! Eu vou atrás do Pete, vocês vêm ou não? — Frey estava de pé, com os punhos cerrados e o cenho franzido. O fluxo de pessoas já diminuíra bastante desde o começo da evacuação e não havia sinal de Pete no meio delas. — Eu não vou deixar meu irmão sozinho nem mais um minuto no meio desse desastre! Eu deixei ele para trás, não vou carregar mais essa culpa pelo resto da vida!

Os indomáveis cabelos ruivos de Sarym surgiram em meio à turba, balançando de um lado para o outro. Carregava uma lança nas costas, mas não era a mesma que lançara na Serpente das Nuvens. Aquela, aparentemente, estava perdida para sempre. Suas vestes estavam coladas ao corpo, encharcadas pela incessante e incômoda chuva. Aproximou-se do grupo balançando a cabeça, piscando os olhos para se livrar da água que escorria para dentro deles. — Não encontrei o garoto. Se estava junto com os fugitivos, ou já saiu da cidade, ou se aconteceu alguma coisa no caminho.

Lillian voltou a olhar para seus soldados, apreensiva. Um dos homens se aproximou dela. Era Ringard, e ele carregava uma espada embainhada e um elmo com o visor levantado. — Minha Senhora! Por favor, vá atrás de seus amigos! Lillian olhou para ele, espantada. Ia dizer alguma coisa, mas foi interrompida pelo jovem. — Nós já temos controle pleno da situação! Vá! A Cavaleira olhou para o rapaz, seriamente por alguns segundos. Então concordou com um aceno de cabeça e um olhar firme. — Obrigada, Ringard — então ela agarrou a mão de Rey, que estava logo atrás dela. Sorriu para o pequeno e falou. — Vamos atrás do Zen. — Sua atenção se moveu para Frey, que já estava pronto para partir. — Vamos achar seu irmão.

Frey concordou com um aceno de cabeça e olhou para Sarym, que fez o mesmo para ele. A ruiva o estava ajudando incansavelmente, e o sentimento de débito em seu peito só aumentava. Tinha que pensar em uma forma de recompensá-la depois de tudo aquilo, mas primeiro, tinham que achar o Pete. Lilian já havia tomado a frente, caminhando em direção contrária ao fluxo de pessoas e se esquivando daqueles que eram cegados pela pressa. Começou a caminhar em sua direção.

***

— Z-Zen! — Mark ergueu a mão no meio dos escombros, se içando para cima e deixando algumas tábuas caírem de seu colo. — Zen! — gritou mais uma vez, esperando alguma resposta do amigo, mas além da chuva e dos raios lá fora, não havia nenhum outro som.

— Dá pra falar mais baixo?! — uma coluna de madeira caída se ergueu, e a levantando estava Zen, as roupas em trapos, coberto de poeira e sangue. — Eu não sou surdo!

— Vai se ferrar... — olhou para fora através do buraco criado pelo impacto de seu corpo com a parede. A Serpente das Nuvens já rondava os céus novamente, aparentemente assumindo que os dois estavam mortos. — O que fazemos agora? Onde estão os outros? Eles vêm?

— E você acha que eu vou esperar eles virem? — ele saiu de debaixo da coluna, e ela caiu, fazendo cair junto mais alguns entulhos. Zen mancou um passo para frente, ficando a lâmina no chão, usando ela de apoio para se manter em pé, pois até isso estava difícil agora. — Se a gente não continuar, ela vai atrás do Rey.

— Não vamos conseguir sozinhos, você sabe disso. — Os ataques anteriores mal pareciam afetar o dragão. — Tem que haver outra forma de parar essa coisa!

O Dragão olhou para o alto e então soltou um berro horrendo, e raios desceram do céu ao redor dele perante sua ordem demoníaca. Ouviram lá fora ele dizer no meio do barulho dos raios. — Onde está, filhote de Aruk?! Apareça criança desgraçada!!

Zen olhou para Mark.

— Estou aceitando ideias. Se não tiver, eu vou atacar. Se não quiser vir comigo, vou sozinho.

Mark sorriu para ele. Seu sorriso transpassava a mais pura insanidade, aquela que só vinha quando a morte batia à sua porta, ansiosa para ceifá-lo.

— Ah, eu tenho sim uma ideia. — Saltou para fora da casa onde tinha sido jogado e agarrou um pedregulho em meio aos destroços.

Esticou o braço para jogá-lo na Serpente, no intuito de chamar sua atenção, mas algo o fez parar imediatamente. Baixou os braços e semicerrou os olhos. O dragão havia mexido a cabeça diretamente para um ponto a leste de onde estavam agora. Era um lugar afastado do centro, provavelmente próximo aos portões.

— Zen... — Mark olhou para o Atormentado, com medo verdadeiro.

— Não... Ela o encontrou... Não! — ele pulou. O corpo se transformando no corvo por um segundo e logo voltando ao estado normal, quando ele caiu em cima de um telhado, as mãos tremendo. — Merda! Mark, temos que chegar nela!

— Se acalma! — Mark gritou para ele, trincando os dentes. Sua energia também não era das melhores, não teria força para incorporar o falcão por cinco minutos sequer se fosse necessário.

A Serpente das Nuvens rugiu, e sob o olhar de desespero dos dois espadachins, avançou na direção almejada.

***

— AAARUUUK!! — a Serpente berrou tão alto que devia dar para escutar fora de Balran.

Lillian, Rey e o resto do grupo taparam os ouvidos, se abaixando, enquanto o barulho se espalhava tão alto pela cidade que fazia o chão tremer. Aquele monstro estava furioso, e vinha na direção deles.

— Ela... Ela está vindo para cá?! — Rey gritou, aterrorizado. Lillian estendeu o braço na frente do garoto, a mão na empunhadura da espada.

— Se acalme Rey. Eu não vou deixar nada te ferir outra vez. — E dizia aquilo como se contestasse um fato, com a voz firme de um olhar de bravura. — Nada.

— Ela tá vindo... — Damon deu um passo atrás, atônito.

O esplendor da Serpente das Nuvens era inegável, mortal, sedutor. Mesmo com a ameaça de seus ataques, era difícil não se hipnotizar com a tonalidade azul e preta de suas escamas alternando entre si. Abriu a boca, sem palavras, e Sarym deu-lhe um puxão pelo braço que quase o desmontou.

A besta abriu a bocarra enorme com suas centenas de dentes pontiagudos, e lançou um trovão, que cortou o ar e bateu no chão, iluminando tudo por um momento. Quando a luz se desfez, ainda ficou um zumbido no ouvido de todos. Lillian estava abaixada num canto diferente, se moveu tão rápida que nem os olhos de Damon conseguiram acompanhar. Nos braços dela estava Rey, assustado, abraçado nela. Damon estava caído no chão, Sarym ajoelhada ao lado dele, já segurando a lança na mão livre. Frey mal havia se movido, e ainda assim parecia intacto. Ele cerrava os punhos, e veias saltavam nos músculos do braço e na testa.

— Olha... Eu não sou nenhum especialista, mas acredito que o motivo de você ter errado foi... Uma pitada de azar. — A Serpente das Nuvens se empertigou toda quando reparou a presença de uma nova figura entre aquelas que atacara.

Lá estava ele, o Azarado, com suas roupas sujas e malcuidadas de falso nobre. Ao seu lado, a controversa Megera de Ferro empunhava sua gigantesca espada, sem medo daquilo que estava para enfrentar.

— Damon, o Sepulcro da Serpente, seu idiota! Corra! — gritou o Azarado, sem tirar os olhos do Dragão.

Damon arregalou os olhos, surpreso. Como não havia se lembrado daquilo? Apoiou as mãos no chão e já se levantou em uma corrida desenfreada. A lança! A lança de Aruk era a chave para derrotar o dragão! Aumentou a velocidade de sua corrida, revigorado pela esperança.

— Onde está indo?! — Lillian gritou.

— A Lança de Aruk! — o Mercenário gritou, olhando para trás por um breve momento.

A Serpente das Nuvens, em um momento de confusão, olhou para a dupla de recém-chegados e para o larápio que corria desenfreado em direção à Baixada dos Miseráveis.

— A Lança de Aruk? — Lillian ficou desorientada por alguns segundos, e então seu rosto se iluminou. — A Lança de Aruk! — ela gritou. Levantou com Rey em seus braços e seguiu em disparada atrás de Damon.

Frey e Sarym olharam um para o outro, sem entender nada. A ruiva foi a primeira a correr atrás dos outros, pois se havia algum plano para derrotar a criatura, que fosse executado imediatamente. Frey ainda permaneceu parado por mais um segundo antes de lembrar que também deveria ajudar.

O Dragão rugiu novamente, disparando outro trovão que consumiu uma casa inteira. Então voltou a dançar pelo meio do céu, voando atrás do grupo, derrubando as casas e prédios por onde passava.

— Era pra ela atacar a gente! — A Megera gritou, frustrada, enquanto desatava a correr atrás do grupo também. O Azarado acompanhava, irritado. — Você não serve nem pra ser uma distração, hein?!

Damon, que seguia à frente, jogou-se para o chão e deslizou no exato momento em que uma parede desabava sobre onde estaria sua cabeça anteriormente. Levantou-se com agilidade felina e saltou por alguns destroços, provavelmente mobílias. Já estavam na Baixada, percebeu. O cheiro era inconfundível, e as construções extremamente malfeitas também. Se continuasse nesse ritmo, não demoraria a chegar no Sepulcro da Serpente e aí, tudo estaria acabado. Balran seria salva.

— Bandido! Bandido! — Lillian gritava atrás dele. —Espere! Quem irá erguer a lança?! — por incrível que parecesse, mesmo com sua armadura pesada, Lillian se movia com grande agilidade, desviando de última hora das barreira que apareciam.

Damon sorriu, embora não tivesse olhado para trás para que Lilian visse aquilo. Tudo fazia sentido agora. O rapto das crianças, o sangue de Rey sendo usado para invocar o Dragão.E a própria caçada que a Serpente das Nuvens executava neste exato momento contra eles. Rey era a chave de tudo, o legítimo descendente de Aruk que ergueria a lança e novamente enterraria a ameaça que pairava agora sobre sua cidade.

— O garoto! Ele é a chave, Cavaleira! Ele é o nosso trunfo! — gritou animado.

— O que?! — ela olhou para Rey, assustado em seus braços.

Ele era a chave de tudo? Não fazia tanto sentido para ela quanto fazia para Damon. Mas ainda assim continuou correndo. Pois de qualquer forma, se não o fizesse, o Dragão os pegaria.

E lá atrás ele veio, lançando seus raios, destruindo tudo no caminho, em sua caçada irrefreável.

Frey era o que tinha mais dificuldade para acompanhá-los naquela corrida interminável. Seu excesso de músculos tornava o corpo pesado, e sem o mesmo treinamento militar que Lilian, as coisas ficavam mais difíceis. Enxergou Damon e Lilian virando em uma esquina e quando conseguiu fazer o mesmo, deparou-se com um enorme espaço aberto. Pedras rachadas ocupavam todo o espaço circular, semelhante a uma praça, e uma única peça se encontrava ali, em seu centro. Uma belíssima lança estava cravada no chão, imponente. Tinha adornos belíssimos em prata e ouro, mas o que impressionava era a simplicidade e o poder emanado por sua característica principal. A famosa e destrutiva lança de Aruk Ponta de Ferro.

Lillian parou diante da lança, arfando, sem largar Rey. Lá atrás a besta continuava soltando seus raios, como se houvesse compreendido o que estava acontecendo, e realmente havia. Sentia a presença da lança como se fosse uma parte dela ali. A arma que a matou uma vez ainda existia.

— AAAAAAAAARUUUUUUUK!! — ela urrou. — Não me matarás outra vez, Aruk!

— Pegue a lança, garoto! — Damon gritou, desesperado. A arma estava ali, à frente deles, e o dragão vinha furioso em sua direção. Tudo que precisava fazer era arremessar. — Rey! — berrou, com mais urgência.

A criança trêmula olhou para Damon, e então para a lança e por fim para Lillian. A Cavaleira estava com um rosto de desespero, olhando na direção do Dragão, que estava cada vez mais perto. Ele escapou dos braços dela, caindo no chão e correndo até a lança.

A Loira olhou para ele, mais desesperada ainda.

— Rey! O que vai fazer?! — gritou ela.

O garoto parou diante da arma, o rosto era uma máscara de medo. Damon estava ali ao lado dele, olhando na direção da Serpente dos Céus. Rey estendeu as mãozinhas e agarrou a lança.

Fria. Era um metal frio e duro, mas não era ferro ou aço, ele sabia daquilo. Sabia, pois aquela arma lhe era familiar. Parecia-o certo que ele segurasse aquela arma, que a brandisse contra aqueles que o aterrorizassem. Engoliu em seco, e então puxou a arma.

Imóvel.

Não saiu, permaneceu do jeito que estava, não chegando nem a tremer. Rey soltou um choro de terror, e puxou de novo. A Lança continuou no lugar.

— Não! Não quer sair! Ela não quer sair! — disse ele, amedrontado.

Damon empurrou Rey para o lado, com as mãos trêmulas. O suor escorria de sua testa aos montes, e aquela seria a última chance de se salvarem. Se desse errado, a esperança morria ali, e eles também. Lançou as duas mãos até a lança, agarrando-a com toda a sua força e puxando-a para cima. Fumaça subiu por entre seus dedos e a pele se avermelhou, e mesmo sob estas circunstâncias, continuou tentando por mais alguns segundos, até que um grito escapou de sua garganta e afastou-se da arma. Suas mãos estavam completamente vermelhas, com grande parte da pele queimada e bolhas surgindo imediatamente. Ele não era um descendente de Aruk. A lança não aceitava-o.

Lillian olhou para o Dragão, então olhou para Rey. O garoto estava caído no chão, olhando para a lança. Ela se jogou na direção dele, o abraçando, cobrindo-o, como uma barreira. Se fosse para morrer, que ela fosse antes dele. Lágrimas escorreram dos olhos dela, enquanto ela dizia para o pequeno.

— Feche os olhos, tá bom? — e Rey o fez, chorando.

A Serpente parou, flutuando no meio do céu, sobre eles. Era grandiosa, ainda maior agora que estava em sua magnitude diante deles. Soltou uma risada. Parecia um rugido, mas tinham certeza que era uma risada. Ela abriu a boca, a eletricidade estralando ao redor dela.

— Tá rindo do que, desgraçada? — disse uma voz familiar para ela, e uma mancha negra e outra branca com dourado voaram pelo céu, direto nela. A Serpente mal viu as lâminas prateadas rasgarem sua carne, mas sentiu a dor, arqueando o corpo para o alto. O trovão voou para a tormenta sobre eles.

Lillian e Rey olharam para quem era o dono daquela voz, e já sabiam quem era. A mulher agora chorava de alegria, assim como o pequeno. Zen estava parado num dos telhados, seu manto negro balançando ao vento, a espada na mão. Ao lado dele Mark, a armadura toda acaba e os cabelos dourados cobrindo parte do rosto.

A Serpente das Nuvens avançou contra os dois espadachins com toda a sua fúria, colidindo contra o enorme armazém sob eles e destruindo todas as paredes no caminho. Poeira e escombros voaram para todos os lados, mas Mark e Zen não tardaram a aparecer perto dos amigos, são e salvos. O dragão não desistiu, e mais uma vez, lançou-se ao ar, pronto para destruí-los.

Zen e Mark ergueram suas lâminas, prontos para proteger os companheiros. A Serpente já estava próxima o suficiente, teriam que pará-la, não havia condições de desviar seu corpo. O elfo apertou os dedos ao redor do punho da espada. Lilian, percebendo o perigo, começou a se levantar, colocando-se em guarda durante o ato, mas já era tarde demais. Se os dois não conseguissem parar a criatura, ela não conseguiria.

Quando os dentes do dragão já estavam prestes a tocar as lâminas dos Reis, seu corpo foi lançado dezenas de metros para fora do curso, destruindo boa parte do chão já depredado do Sepulcro da Serpente. Frey caiu no chão, balançando o punho.

A Serpente permaneceu parada, tentando compreender o que havia acabado de ocorrer. Quem havia a atingido? Ela levantou, voltando a flutuar no ar, enquanto olhava os sete lá embaixo.

— Humanos... Quando arranjaram tanto poder? — ela rosnou. — De onde tiram tanta força? Por que não caem e morrem como sempre fazem?!

— Porque agora nós temos algo em que persistir. — Frey respondeu, cerrando os punhos para golpear novamente o dragão quando avançasse sobre eles mais uma vez.

Sarym se prostrou ao seu lado, retirando a lança das costas e girando-a nas mãos. — Você não vai pegar o garoto, isso eu asseguro — disse ela.

Zen olhou os dois ali, e então olhou aqueles ao redor. Lillian, Damon, Mark, até mesmo o pequeno Rey. Todos tinham uma expressão de desafio e bravura, prontos para lutar por suas vidas. Abriu um sorriso, olhando para o Dragão.

— Isso não te lembra dos velhos tempos, Mark?— perguntou ao Elfo.

Mark, sem responder, apenas sorriu e avançou contra o dragão. Deslizou a espada no chão, criando um rastro de faíscas atrás da lâmina. E quando a criatura ergueu a pata para destroçá-lo com as garras, levantou a espada e bloqueou-a. Olhou para trás, e sem precisar de palavra alguma, Zen se moveu para complementar o ataque.

O Corvo voou, e a lâmina sangrou a besta. Um golpe direto contra o olho direito do Dragão. Zen pouso sobre a cabeça da fera com a espada estocada nos olho vermelho da criatura.

— Agora! — Frey gritou para Sarym, que lançou a perna direita para trás e o corpo para frente, arremessando a lança contra o outro olho da criatura, mas um movimento brusco e surpreendentemente rápido do Dragão fez com que errasse. A arma caiu no chão, rolando para longe, enquanto a Serpente das Nuvens se lançava para o ar e girava em seu próprio eixo, na tentativa de derrubar Zen.

— Eia! Calma cavalinho! — gritava Zen, enquanto tentava se manter firme em cima do Dragão, quase sendo jogado.

Um vulto loiro voou pelo meio de Frey e Sarym, mas não era Mark. Era Lillian. Ela avançou como um gato, agarrando a lança do chão, já se virando para a besta, dando um pulo. No meio do ar, encontrou a mira que precisava, e disparou a lança.

A arma penetrou fundo no outro olho da Serpente.

— Sarym, não deixe este monstro chegar nos dois! — Frey apontou para Damon e Rey, e então correu na direção do seu oponente, que agora agonizava cego, se debatendo de um lado para o outro e emitindo um som extremamente agudo, que se assemelhava a um grito histérico. O rapaz saltou e ergueu os dois punhos sobre a cabeça, soltando um grito de fúria.

Zen saltou de cima da cabeça do Dragão no exato momento em que a cólera de Frey caiu sobre seu corpo frenético. A cabeça da criatura afundou no solo, seus gritos cessaram imediatamente quando a boca se fechou e a mandíbula se rompeu, com um fortíssimo estalo. As pedras que compunham o chão do Sepulcro, já em péssimo estado, agora se tornavam migalhas sob o corpo da criatura. A onda de choque que se espalhou após o ataque fez os cabelos e roupas de todos os presentes esvoaçarem violentamente.

Zen avançou erguendo a espada, atravessando as escamas da besta e a carne do monstro. Lillian não perdeu tempo e também já avançou, desembainhando a própria arma e estocando no Dragão.

— Morra criatura! — gritou Mark, reunindo todas as suas forças no último ataque que ceifaria a vida do dragão ancestral. Ergueu a lâmina sobre a cabeça, pronto para destruí-lo, mas seus olhos enxergaram algo que os outros não conseguiam ver. Um brilho intenso sobre suas cabeças, um brilho de pura energia, que ainda não manifestara sua forma física. Algo muito maior do que haviam recebido até então. Abriu a boca para avisar aos outros, mas quando encheu os pulmões para fazê-lo, sentiu o fortíssimo cheiro metálico no ar e todos os fios de cabelo de seu corpo se arrepiando. Um zunido intenso em seus ouvidos previu o que viria a seguir.

Tudo brilhou de uma vez só.

A Serpente dos Céus era a Senhora das Tempestades, a Rainha de Todos os Trovões. E sob sua ordem, juntaram-se sobre ela todos os trovões do mundo, e rugiram sua destruição contra o chão de uma vez só.

O resultado foi uma massa de energia branca, que causou uma explosão tão grandiosa que o chão tremeu como um terremoto, e uma luz brilhou tão intensa, que até do outro lado do continente era possível de se ver. Quando a poeira abaixou, viu-se apenas Mark, ajoelhado, com a espada erguida. Não tinha mais armadura na parte de cima, as mãos tremiam e mal conseguiam segurar a arma.

Um brilho tênue e dourado envolvia-o, assim como os outros ali. Sarym, Lillian, Zen, Frey, até mesmo Damon e o pequeno Rey estavam caídos no chão, com a aura dourada os envolvendo. Era magia, muito antiga e poderosa, vinda desde eras ancestrais do Mundo dos Elfos e Criaturas Místicas, quando o Universo não era Um, e sim Dois. O Elfo por sua vez deixou a espada cair, e ele mesmo desabou no chão, desmaiado, tal quais todos os outros. E a Serpente dos Céus se ergueu, rugindo sua fúria de uma vez só. Era a manifestação pura de toda a sua cólera anciã, de mil eras de batalha.

Rey, o garoto, abriu os olhinhos, trêmulo e com frio. A aura já havia ido embora. Sentia-se fraco, mais fraco que sempre foi. Olhou para o lado e viu Lillian, caída e desmaiada. Arrastou-se até ela do jeito que pode, encostando a mão no braço dela, a sacudindo levemente.

— Li-Lillian.... Lillian.... — as palavras se quebravam em sua voz fraca e chorosa.

A Cavaleira abriu os olhos devagar, vendo o pequeno Rey ali, diante dela. E a Serpente, logo atrás, flutuando, olhando na direção dos dois sem ver. Mas o demônio sabia que estavam ali, Lillian tinha certeza. Ela estendeu os dois braços e abraçou o garoto, escondendo o rosto na cabeça do menino.

— Não olhe para trás... — ela sussurrou, e então tampou os ouvidos de Rey.

O Dragão então moveu a cauda e uma lâmina retrátil, mais similar a um espinho, saltou da ponta. Olhou para o descendente de Aruk, com seriedade. Não havia desdém, não havia nada além de desinteresse em sua expressão.

— Morra, herdeiro de Aruk — e ela moveu a cauda, em direção aos dois, pronto para transpassá-los.

Lillian fechou os olhos. Esperou. Um, dois, três segundos, mas não sentiu dor alguma. Ouviu um gemido, e temendo que apenas Rey tivesse sido atravessado abriu os olhos.

E como ela desejou não ter feito isso.

O Dragão havia atacado, mas sua cauda nunca chegaria a atingi-los. No meio do ar, atravessado pela besta, estava Zen, olhando para a Cavaleira. E ele sorria. Havia se jogado na frente do ataque no último momento.

A Serpente dos Céus retraiu a lâmina, e o tempo pareceu correr mais devagar, enquanto o Atormenado caía em direção ao chão. Olhando para Lillian, que chorava e gritava, ele praguejou em seus pensamentos. "Parece... Que eu não vou ter tempo para te contar o que eu queria dizer, Lillian." ele pensou, e então fechou os olhos.

"Perdoe-me."

E seu corpo atingiu o chão, e ficou ali caído, uma poça de sangue já se formando ao redor dele, um buraco logo abaixo do tórax. Rey e Lillian, com energias que tiraram sabe-se lá de onde, conseguiram correr até ele. A Loira e o Garoto se abaixaram ao redor do Atormentado. Com os olhos fechados, ele sorria.

O silêncio tomou conta, sendo cortado apenas pelos berros e choros de uma mulher e uma criança, e pelo barulho da chuva e dos trovões distantes nas colinas. O cheiro de cinzas só não era mais forte que o cheiro de sangue ali. O dragão, em seu resplendor absoluto, repousava em silêncio nos céus, absorto em seus pensamentos.

Ela não entendia aquilo. Humanos. Sacrificando-se uns pelos outros. Por quê? Aquele demônio dos céus não entendia. Dragões não tem esse tipo de comportamento. Eles só conhecem a guerra e a destruição. E vendo como estes vermes lutaram para sobreviver, mesmo sabendo de sua condição de presas, a fez refletir.

Eles certamente lembravam-na de Aruk.

Parando para pensar, sempre foi assim, não? Aruk lutava para proteger seus iguais, e por isso não desistia, por isso tinha que vencer. Talvez, se os Dragões houvessem lutado não por poder, e sim para preservar sua espécie, eles não teriam perdido. Talvez homens, elfos e dragões, andassem lado ao lado, compartilhando aquelas terras.

Mas não foi assim que aconteceu. Não adiantava tentar mudar o passado. Agora que era viva, e a única coisa que restava para ela era ser um Dragão.

E isso significa destruir tudo em seu caminho.

— É sua vez, filhote de Aruk — falou com frieza. — Logo encontrará este verme por quem nutre sentimentos do outro lado. E tu também mulher, será a próxima. Todos morrerão, pois esta é a punição para aqueles que se opõem a mim, a Senhora das Tempestades.— E ergueu a cauda, a lâmina surgindo outra vez na ponta, pronta para desferir o ataque final.

— Então venha me buscar, se é isso que você quer! — uma voz de criança cortou o silêncio da noite, fazendo com que o dragão virasse a cabeça para olhar na direção do som.

Pete se encontrava ali, com os braços abertos, trêmulo. Seus olhos demonstravam toda a determinação reunida para estar ali, toda a bravura, toda a vontade de ajudar os companheiros que agora se encontravam caídos no chão, imóveis, talvez mortos. Trincou os dentes e berrou mais alto.

— Vamos resolver isto de uma vez por todas! VENHA!

Frey, sem conseguir mover o corpo, apenas levou os olhos na direção da criança, e seu coração parou por um longo segundo. Era Pete. Era o seu irmão. O garoto se passava por Rey, aproveitando a cegueira da criatura, que no momento de fúria, não se recordaria de sentir os cheiros.

A convicção na voz de Pete era suficiente para que o dragão achasse que ele era o descendente de Aruk.

Tentou se levantar, com os braços tremendo violentamente ao se apoiarem no chão, mas falhou e caiu novamente, batendo o queixo contra as pedras destruídas.

— N-Não...! — o grito não saiu, a voz estava rouca, a garganta seca. O colar em seu peito queimava como brasa, fazendo-o cerrar os olhos por causa da dor, mas obrigava-se a abrir novamente para tentar salvar o irmão.

Impulsionava-separa frente, arrastando-se no chão sujo e áspero, mas era lento, não conseguiria.

A Serpente das Nuvens avançou, e a consciência de Frey se esvaiu. O colar vibrava, batendo forte contra seu peito, pulsando como um segundo coração, fornecendo a força necessária para que se levantasse. Pete olhou para ele, surpreso por ainda estar vivo, e depois para o Dragão, enquanto o medo tomava o lugar de sua coragem passageira.

Tudo parecia se mover em câmera lenta para Frey, que correu em direção à lança cravada no chão. Sabia que só um descendente de Aruk podia tirar a lança dali. Para ele, era impossível. Mas era exatamente isso que estava disposto a fazer para salvar o irmão: o impossível.

Agarrou a haste metálica do armamento, ignorando a queimadura intensa que se espalhava por suas mãos, e puxou-a. Sentiu uma dor rasgante, como se todos os músculos de seu corpo estivessem se rompendo, mas continuou, precisava continuar. A Serpente das Nuvens se virou ao sentir tamanha energia, a força ancestral de um guardião, e mesmo sem poder ver, ela sentiu medo. Aruk?, pensou, e empertigou-se, preenchida pelo brilho azulado crescente dentro de seu corpo, pronta para lançar mais um ataque devastador contra o rapaz, mas estava tudo acabado.

Frey, rugindo como uma criatura selvagem arrancou a lança de Aruk do chão e sem hesitar por um segundo sequer, fê-la viajar na direção da Serpente das Nuvens.

O ar dobrou-se perante a vontade da arma, e diferente da última vez em que fora atingida pela lança, a Serpente das Nuvens não conseguiu nem mesmo reagir. A Ponta de Ferro atravessou seu corpo, abrindo um enorme rombo em seu peito dracônico e causando uma explosão de energia tão grande quanto a anterior, que ferira todos os aventureiros, mas que agora não tinha força para machucá-los. Aquela energia, a energia de Aruk, era a mais pura já vista e só o mal havia de temê-la. Suas escamas se espalharam pelo ar, assim como seu sangue negro, enquanto o cheiro de carne queimada sobrepunha o do sangue de Zen.

Frey caiu de joelhos, atônito, e logo em seguida encontrou o chão, imóvel pelo cansaço repentino e devastador que se espalhou pelo seu corpo.

E então sentiu a fraqueza o invadir, seu olhar começou a pesar, e as pupilas vagarosamente se fecharam. A última coisa que viu foi Pete correndo em sua direção.

Então tudo ficou escuro.

A Serpente das Nuvens havia sido derrotada.


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