A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 43
A Dança dos Reis


Notas iniciais do capítulo

"Os olhos dos amigos se encontraram, e com um aceno simultâneo de cabeça, eles desapareceram na tempestade." Mark e Zen, A Dança dos Reis.



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A tempestade lá fora continuava forte, e as nuvens negras que tampavam o Sol faziam o dia parecer noite. Uma multidão de pessoas agora estava correndo, tentando fugir do Castelo de Balran, enquanto parte dele desabava sendo engolido pelo fogo.

Lillian carregava Zen, o braço dele envolto no ombro dela. Pessoas passavam correndo, desviando da dupla. A Cavaleira olhou por cima do ombro e viu aquele fogo crescer enorme no céu, imune a tempestade que caia.

— Lillian! Zen! — a Loira ouviu uma voz, e quando olhou viu que aquele que gritava era Rey.

O garoto maltrapilho corria pelo meio da chuva em direção aos dois, desviando daqueles adultos que fugiam da morte. O garoto parou em frente a Lillian, assustado.

— Rey, me ajude a levar o Zen para algum lugar! — disse a Lillian.

O garoto olhou para Zen, ainda desacordado. O menino então balançou a cabeça e começou a correr. A Cavaleira seguiu atrás deles. Entraram num beco do lado de uma casa, a sobra do telhado ali criava um espaço protegido da chuva. A Loira deitou Zen no chão, ao lado de Rey.

— Ele tá morto?! — perguntou Rey, mais amedrontado que o comum. Algo nos instintos do garoto estava fazendo seus pelos se eriçarem, estava fazendo ele temer algo que não sabia o que era.

— Não foi — falou o Atormentado com dificuldade, tossindo, enquanto tentava se levantar. — Não foi dessa vez que botaram um fim em mim, moleque.

— Zen! — gritaram Lillian e Rey ao mesmo tempo, ajudando-o a sentar.

O Espadachim soltou um gemido, levando a mão à lateral do abdômen. Rey soltou um gritinho, e Lillian trato de forçar Zen a deitar no chão.

— O ferimento abriu — disse ela, antes mesmo de rasgar a vestimenta do Atormentado e ver ali o sangue escorrendo pelo ferimento que havia sido costurado.

Rey levou a mão na boca, as lágrimas escorrendo pelo rosto da criança. Zen deu um sorriso e botou a mão na cabeça dele, se levantando a contragosto da Cavaleira.

— Já estive em situações piores — ele disse, e antes que começasse a caminhar, Lillian se ergueu diante dele. — O que foi?

— Eu não sei onde arranjou essas cicatrizes, e nem quantas lutas você já lutou. — Ela falou, cruzando os braços, determinada. — Mas quer parar de se fazer de durão, seu imbecil? Você está tendo uma hemorragia! Precisamos estancar o sangue agora, ou então você — ela foi interrompida por Zen, que a abraçou.

— Perdão — falou Zen —, perdão Lillian. Quando eu voltar, eu quero te falar algo, mas agora eu preciso ir.

Lillian devolveu o abraço, afundando o rosto no ombro do homem. Talvez ela estivesse chorando, talvez não, mas isso não importava agora.

— Ir onde, Zen? Por que você sempre tem que ir sem dar explicações? Sem pensar nas consequências do que você faz? Sem pensar nas pessoas que se importam com você?

Zen afastou a Cavaleira, olhando pra ela. Então deu um daqueles sorrisos imbecis que a Loira amava odiar. Passou a mão na cabeça de Rey e seguiu caminhando para fora do beco.

— Não consegue sentir Lillian? — falou Zen, desembainhando a espada. — Aquela lá ainda não morreu.

O sorriso dele se transformou. O semblante agora era de alguém ansioso pela batalha.

— Aquele demônio continua vivo.

***

— Eu tô bem, já disse! — repetiu Frey, respondendo à quarta vez que Pete refazia a pergunta. O irmão mais velho olhou ao redor, analisando o estrago. A cidade não havia sofrido danos decorrentes da explosão, que iluminava o céu tempestuoso com grandes focos flamejantes dentro das muralhas da Fortaleza de Ferro.

Os soldados que estavam de guarda já haviam evacuado os sobreviventes e organizavam-nos do lado de fora dos grandes muros, tentando afastá-los do perigo iminente. Os homens que guardavam os portões no momento do ocorrido não faziam ideia do que havia acontecido lá dentro e mal conseguiam entender as pessoas, que desatavam a falar todas ao mesmo tempo e nenhuma tinha uma explicação detalhada o suficiente para que compreendessem.

Damon andava de um lado para o outro, esperando que Anne aparecesse por ali intacta, mas no fundo ele sabia que isso não ia acontecer, e era exatamente este fato que o angustiava. Colocou os cabelos atrás das orelha e enxugou o suor da testa. Mark estava ao seu lado, tão preocupado quanto, embora seus motivos fossem outros. Precisava encontrar Zen, os dois, juntos, talvez pudessem lidar com Meryna. Ele precisava saber se o amigo estava bem, precisava falar com ele.

— Precisamos ir embora! — Pete discutia com o irmão, em voz alta. Seus olhos lacrimejavam e o lábio inferior tremia sem parar. — Já não passamos pelo suficiente? O ataque em Aileen, a floresta e agora isso? Quantas vezes a gente já esteve cara a cara com a morte nessas duas semanas?! Que tipo de irmão você é?! Quando vamos parar? Quando morrermos? É isso o que você quer?!

A mão de Frey cruzou o ar em direção ao rosto do garoto, acertando-o com a palma. O barulho do tapa foi tão alto que todos os que estavam ao redor pararam pra olhar, pois conseguiu se fazer ouvir mesmo com a chuva forte e constante. Pete colocou a mão na bochecha atingida e começou a soluçar, enquanto o irmão mais velho agarrou-o pelo ombro e com a outra mão, virou seu queixo para encará-lo olho no olho.

— Pra começar, seu moleque idiota, eu te protejo desde que nossos pais morreram! Eu fui o seu pai a maior parte da vida, quando o nosso foi pra guerra e nunca mais voltou! Eu fui a sua mãe quando a nossa se matou por causa da solidão! Eu fui tudo o que você precisou a vida inteira, e saí de casa sozinho para que você não sofresse pelas minhas escolhas! Você me seguiu porque quis, então aguenta isso, merda! Você pode ir embora à qualquer minuto, mas eu não vou fugir! Viu com esses próprios olhos o que ameaça o nosso mundo, e mesmo assim só quer choramingar? Você é a porcaria de um bebê chorão, Pete, e nunca deveria ter saído de casa para me seguir aquele dia!

Levantou-se furioso e desatou a caminhar na direção dos portões da Fortaleza de Ferro. Mark colocou a mão em seu ombro, mas o grandalhão se desvencilhou. O elfo insistiu, caminhando atrás dele à passos largos e perguntou:

— Onde você pensa que tá indo, droga?!

— Eu vou procurar a Anne, nem que eu tenha que reconstruir aquele castelo para achar o corpo dela. — Respondeu, ríspido, sem nem mesmo olhar para o amigo.

— Ei, Damon! — Mark gritou, e o mercenário virou-se para encará-lo. — Você vem?!

— Onde esse idiota tá indo?! — Damon perguntou, aproximando-se rapidamente. Pete ainda estava de joelhos, chorando onde o irmão o deixara.

— Ele vai voltar, quer encontrar a Anne.

— Ei, Frey! — o rapaz gritou-lhe ao saber do motivo, e o outro se virou para ouvir o que ele tinha para dizer.

— Se vai tentar me impedir, pense duas vezes! — gritou, com raiva.

— Eu não vou te impedir, mas não vou deixá-lo ir sozinho. Se vai voltar pela Anne, eu vou com você. — Ele passou do lado de um guarda e agarrou-lhe o punhal preso à cintura. O guarda gritou em protesto, mas o mercenário colocou-lhe a lâmina no pescoço e disse, baixo o suficiente para que só o homem ouvisse — fique aí ajudando as pessoas, isso aqui é grande demais pra você, soldado. — Virou as costas e continuou a caminhar. Mark, que esperava que Damon ajudasse a convencer Frey a ficar, balançou a cabeça com raiva e seguiu-os.

— A tendência suicida de vocês é inexplicável. — Comentou, desgostoso.

***

— Ei, elfo! — uma voz de mulher cortou a multidão, e o trio que avançava em direção ao castelo destruído olhou para trás. Era Lilian, caminhando ao lado do moribundo Zen e de um garoto desconhecido, da idade de Pete. -- Alguém aqui quer falar com você.

— Zen! — Mark arregalou os olhos, sem ter o que falar. Analisou o amigo da cabeça aos pés e aos poucos, um sorriso se espalhou em seu rosto.

— Sem tempo, orelhudo — falou ele, passando reto pelo lado do elfo. — Eles chegaram em Balran.

— Perceptível, idiota. — Desembainhou a espada e começou a caminhar ao seu lado. Damon e Frey já iam à frente. Lilian olhou para os dois, sem saber qual era a relação que os dois tinham, mas deixou aquilo para depois. Não era o mais importante no momento.

Zen então sorriu, dando uma risada. — Ainda assim é bom ter você ao meu lado dessa vez. — Rey apressou o passo, ficando do lado de Zen, agarrado as vestes do Atormentado. O homem sorriu pra criança, esfregando o cabelo ensopado da criança.

— Não tem nada aqui. — Damon falou primeiro, quando já estavam no pátio repleto de ruínas e fogo. — Não consigo ver ela.

— Zen, consegue sentí-la? — perguntou Lillian, pondo-se ao lado do Atormentado, com a mão na empunhadura da arma.

Zen não respondeu, apenas baixou a cabeça, brandindo a arma com as duas mãos, curvando levemente o corpo.

— Mark.

— Seria esperar muito que ela tivesse morrido nessa explosão? — O barulho do metal raspando contra a bainha foi belo, suave, ameaçador. Mark girou a espada élfica um par de vezes, fazendo-a reluzir à luz dos relâmpagos.

O Atormentodo riu. Lillian olhou para os dois, receosa. Segurou Rey pelo ombro e o puxou para trás dela. Então teve início. Primeiro foi uma pequena pedra que caiu da pilha de escombros, e então uma explosão, criando uma nuvem de poeira. O fogo já estava praticamente extinto quando eles chegaram lá, e agora só haviam cinzas. No topo daquele monte de entulho, Meryna, suja, com as vestimentas rasgadas e com marcas de ferimento no rosto se erguia imponente. E ao seu lado, Anne estava caída, em condições tão piores que a mulher de cabelos negros.

— Ela está enfraquecida. — Mark disse para Zen, com os olhos mudados. Ele estava enxergando em um plano além do que estavam agora, vendo o espírito de Meryna e a energia escura que ela exalava, muito maior do que seu corpo físico.

Zen acenou com a cabeça, tomado pelo Frio. O ferimento que antes sangrava agora havia estancado sozinho. O Atormentado curvou mais o corpo pronto para avançar.

— Vocês não desistem... — Os cabelos negros de Meryna esvoaçavam com o vento forte, inafetados pela chuva. Seus olhos eram agora dois pontos rubros no meio do escuro impenetrável e seu vestido deixara de ser feito de tecido. As sombras cercavam seu corpo como se fossem palpáveis, balançando como lençóis ao vento. — É aqui que tudo acaba. Balran será a tumba de todos vocês! — gritou, furiosa. Juntou as mãos, entrelaçando os dedos por um momento. Separou-as, revelando a criação de um pequeno orbe de luz vermelho. Ergueu-o acima da cabeça e lançou-o ao chão. Um vórtice negro surgiu à frente dos seis que encaravam a mulher e os fez cobrir os olhos quando o vento forte trouxe consigo grande quantidade de poeira e cinzas. Zen ergueu o braço cobrindo os olhos, e assim fez Lillian e Rey.

O lacaio de Meryna estava novamente entre eles, e assim como o vestido de sua mestra, sua armadura também era composta agora pelas tais sombras que evaporavam no ar e voltavam a se formar. Os cabelos brancos e molhados ocultavam seu rosto, mas o sorriso insano era mais do que visível em seus lábios, e assim eram suas presas enormes. A espada de prata já se encontrava em sua mão, com a ponta encostada no chão.

— Quando será que eles vão cansar de voltar a vida? — falou Zen, retornando a mão a empunhadura da espada, apertando ambas ao redor dela.

— Talvez quando estiver se engasgando no próprio sangue, Mestiço. — O vampiro respondeu, abrindo a boca para exibir os caninos. Avançou na direção de Zen, arrastando a espada no chão.

Zen avançou junto do Vampiro, a espada se movendo a medida que os dois se aproximavam um do outro. O barulho de metal contra metal ecoou, quando lâmina se chocou contra lâmina. Então no rosto de Zen um sorriso zombeteiro surgiu. — Você ficou mais lento, Orelhudo.

— É que os seus olhos não conseguem acompanhar. — Apenas a voz de Mark foi ouvida por Zen. Parecia que seu corpo se tornara o próprio vento, pois em um piscar de olhos, Mark já estava à frente de Meryna, com a lâmina enterrada em seu ombro direito.

O Vampiro olhou na direção de Meryna, aterrorizado, vendo sua senhora ferida. E então percebeu o erro que cometeu, quando voltou a olhar para Zen, o atormentado já não estava mais ali. Só ouviu sua voz. — Fique morto dessa vez — ele disse, balançando a espada para o lado, fazendo sangue voar de sua lâmina para o chão. Lillian tampou os olhos de Rey, para o garoto não ver a cabeça do Vampiro cair e rolar pelo chão.

Meryna olhou para a lâmina de Mark com os olhos arregalados. Um grito de fúria subiu por sua garganta, aterrorizante. Agarrou a cabeça de Mark com uma das mãos e jogou-o para longe, fazendo-o colidir com uma pilha de escudos e bonecos de treinamento desmontados. As peças se estilhaçaram com a colisão com o corpo do elfo, que não se moveu. A mulher arrancou a espada do ombro e jogou-a no chão, sem uma gota de sangue. O ferimento se fechou, coberto pelas sombras que aderiam ao seu corpo. Damon franziu o cenho e olhou ao redor, procurando algo que pudesse usar para chegar até Meryna sem ser visto, mas nada parecia bom o suficiente. Balançou a cabeça, com raiva. A água ensopava seu cabelo e suas roupas.

Zen avançou contra a mulher, tão rápido quanto Mark fora. Sua espada cortou o ar como um risco de luz prateada, que foi parada por Meryna, com mãos nuas.

A mulher segurou a lâmina e puxou-a contra si, atingindo o rosto do espadachim com um soco fortíssimo. Ele não largou a espada, e isso levou-a a dar outro, e mais outro, até que o rosto de Zen estivesse cheio de sangue, mas algo incomum se encontrava ali. Mesmo com a força e a quantidade dos golpes, havia uma coisa que assombrava até mesmo Meryna: o sorriso em seus lábios.

— Sou sempre eu que tenho que segurar eles pra você, não é, seu Orelhudo desgraçado? — Meryna nem mesmo percebeu quando um enorme talho se abriu em seu flanco direito. Seus olhos foram para lá imediatamente, mas nesse meio tempo, outro corte profundo foi desferido em seu antebraço oposto. Ela largou Zen, recuando vários passos para trás, furiosa e desconcertada. Mark surgiu ao lado do amigo, ofegante, com a lâmina ainda limpa.

— Cala essa boca, droga.

Zen limpou o rosto na manga da roupa, o sangue estancava imediatamente. Ele girou a espada na mão, o sorriso se alargando ainda mais. — Ainda lembra daquela técnica que inventamos? Como era mesmo o nome? A Dança dos Reis...?

— Não tem como esquecer. — Mark brandiu a espada à frente novamente, pronto para mais uma investida. Lilian e Rey observavam os dois lá atrás, abismados. "Eles nem mesmo parecem humanos", pensou a mulher.

— Eu faço o Corvo, você faz o Falcão. — Zen brandiu a lâmina ao contrário, em horizontal na frente do rosto, mas um grito chamou sua atenção, o grito do Rey.

O Atormentado olhou para trás, mas já era tarde. O vampiro que antes estava morto no chão agora estava atrás de Rey, segurando-o. Lillian virou, desembainhando a espada, mas não foi rápida o suficiente. O golpe da Cavaleira acertou o ar enquanto o vampiro afundava na própria silhueta, junto de Rey. Surgiu ao lado de Meryna, segurando o garoto que se agitava, tentando fugir de seu captor.

Zen avançou no mesmo instante, seu olhar era de um assassino pronto para matar sua vítima. Foi mais rápido que Mark ou qualquer um ali pode acompanhar, menos Meryna. A mulher apenas moveu a mão e algo invisível atingiu Zen jogando-o contra uma parede. Ele bateu na parede, pousou em pé no chão e avançou outra vez gritando em fúria. Mas com outro movimento as mãos da mulher, uma corrente e materializou e prendeu o Atormentado na parede de vez.

— Eu não tenho como descrever o quanto vocês passaram dos limites... — Meryna começou, agarrando o garoto pelo braço e puxando-o para a sua frente. — Mas dou-lhes o crédito: vocês lutaram bem. Seriam peões valiosos ao lado do Flagelo, caso não tivessem sido escolhidos pelo outro lado. Infelizmente, a jornada de vocês acaba aqui. — Cinzas se juntaram na palma de sua mão, dando forma a um pequeno, mas belíssimo punhal. A mulher girou-o para segurá-lo adequadamente e transpassou o ventre do pequeno Rey. O garoto caiu, de joelhos, enquanto Zen ficava imóvel. Seu corpo estava sem reação, tamanho era o choque de ver o garoto sendo apunhalado. O sangue se espalhou em uma poça, parecendo seguir linhas traçadas magicamente. — Que teu sangue ancestral sirva para tornar possível o retorno da Matriarca dos Céus, descendente de Aruk. Erga-te, Serpente!

O chão tremeu sobre os pés daqueles ali presentes, desequilibrando-os. Damon e Frey não conseguiram se manter de pé. Lilian ficou sobre um dos joelhos e cravou sua espada no chão para firmar-se, enquanto Mark e permaneceu de pé, praticamente inafetado. Olhava preocupado para o amigo preso à parede, mas não podia fazer nada agora. Se colocaria entre o vampiro e Meryna e isso não daria bons resultados. Além do mais, Rey precisava de sua ajuda. O círculo de sangue começou a brilhar, incandescente. A terra começou a se abrir debaixo dele e um rugido ecoou de dentro da fenda.

Com o fim do rugido, veio o fim do tremor. Havia uma fenda enorme agora no chão, e dela começou a sair um cheiro de podre, junto de uma névoa negra. Tudo ficou em absoluto silêncio por um momento, até que Mark desatou a correr na direção do corpo caído de Anne. Grito para que os outros se afastassem, mas antes que qualquer um reagisse, um cheiro metálico invadiu o ar, sobrepondo o aroma pútrido anterior. Os pelos do braço do elfo se arrepiaram, e então, uma explosão ocorreu na fenda. Uma luz cegante cortou os céus até a fenda, um raio, que atingiu em cheio o local onde o buraco começara a se abrir. Rey ainda estava ao lado de Meryna, ajoelhado, sangrando.

E então ele surgiu. Do incêndio recém criado, seu corpo esquelético ergueu-se dos mortos. Uma criatura colossal voadora, que emanava eletricidade por todas as cavidades. Quatro patas esqueléticas com garras negras como obsidiana se destacavam pela extensão de seu corpo serpentil. E onde devia estar os olhos, dois pontos avermelhados brilhavam no meio de orbes totalmente negras.

Ali estava ele, renascido de sangue e trovão.

Um dragão.

A Serpente das Nuvens.

A criatura rugiu outra vez, e seu rugido causou medo no coração de todos, enquanto o fogo cessava, deixando apenas a criatura colossal flutuando no ar. Ela não se movia, olhava para o céu escuro tempestuoso, tentando entender o que estava acontecendo, tentando compreender o porquê de não estar morta.

Então sentiu o cheiro de sangue. Não qualquer sangue, mas um familiar, um cujo cheiro provocava nela apenas o ódio. Aquele sangue maldito, o sangue de seu algoz. Seus olhos se moveram, e lá estava ele. O dono do sangue, uma criança. Seu filho? Seu descendente? Quanto tempo havia passado? Quanto tempo desde que Aruk atravessou sua lança nela e o enterrou? Ela talvez não tivesse sua vingança sobre o Cavaleiro, mas teria sobre aqueles que carregavam a sua linhagem.

O corpo da Serpente das Nuvens foi tomado por um azul ameaçador. O brilho transcendia os limites impostos por suas escamas, subindo por seu estômago até chegar na garganta. Abriu a boca e o azul iluminou tudo à frente. Rey estava caído, pálido, com uma pequena poça de sangue sob sua barriga. Sua respiração era quase inaudível. Uma pontada excruciante fez a criatura alterar o curso de sua finalização.

O dragão se virou completamente e olhou para o outro lado do pátio, onde estava uma mulher pálida com longos cabelos vermelhos que facilmente chegariam à cintura. Rugiu mais uma vez, um rugido de agonia e fúria. Em seu flanco direito, perfurando parcialmente suas escamas, se encontrava uma enorme lança toda enrolada por faixas surradas.

— Essa foi muito perto, sério! — comentou a mulher, com um sorriso amarelo no rosto. A Serpente das Nuvens se empertigou toda para encará-la com toda a superioridade de sua presença, bufando. A ruiva olhou para o lado, para onde os outros estavam reunidos, e ergueu a mão para tranquilizá-los. — Calmem-lá, meus amigos! Não fiquem abalados com a presença desta vil criatura, que nada mais é do que uma cobra crescida!

O chão ao seu lado ainda fumegava, empretejado pelo raio que ali atingira. Pequenos resquícios elétricos estalavam no ar, chiando.

— Sarym! — Frey balbuciou, surpreso. — Como diabos v-você...

— Caaaaaaale-se, homem-do-martelo! Temos um monstro para matar, não consegue ver?! — A mulher ajeitou o cinto de couro e puxou as botas para cima. Seu sorriso se ampliou quando ouviu a pesada criatura se mover e saltou para o lado no exato momento em que o pedaço da muralha atrás de onde se encontrava explodiu em estilhaços. Desatou a correr pelo pátio do castelo, tentando atrair a Serpente das Nuvens para longe daqueles que se encontravam em condições piores do que a dela.

Mark foi até onde Zen estava imediatamente quando a distração aconteceu, descrevendo um arco com sua espada élfica no ar e destruindo as correntes mágicas criadas por Meryna, que já se encontrava muito enfraquecida devido a invocação da Serpente da Nuvens.

— Tá tudo bem? As correntes te machucaram? — perguntou o elfo, com urgência.

— Eu tô bem. A gente precisa tirar o Rey de lá agora! — abaixou-se e apanhou a espada no chão, virando-a de cabeça para baixo. — Não temos mais tempo, Mark. A Dança dos Reis tem que ser agora.

— Que seja, eu acho que ainda consigo manter a velocidade de antigamente. — Deixou a espada virada para cima, inclinada levemente para a esquerda.

Os olhos dos amigos se encontraram, e com um aceno simultâneo de cabeça, eles desapareceram na tempestade. Meryna notou a mudança de energia ao redor dos dois e virou-se imediatamente para onde eles estavam anteriormente. Abriu a mão direita e apontou naquela direção, acendendo uma circunferência dourada com três riscos verticais idênticos em sua palma. A Serpente das Nuvens parou de perseguir Sarym e, visivelmente contrariada, se lançou para a frente da mulher para protegê-la. O que antes era um brilho azulado dentro de seu corpo, agora era um vermelho intenso e o vapor escapava por entre seus dentes.

Quando o primeiro relâmpago desceu dos céus iluminando o pátio da Fortaleza de Ferro, dois vultos se fizeram visíveis no ar. O Corvo e o Falcão. Suas lâminas reluziram de modo ameaçador, e aquele reflexo foi a única coisa que o dragão enxergou à sua frente, mas era o que precisava. Abriu a boca e uma cortina de chamas dançou pelo chão, erguendo-se imponente, mas aquilo não era suficiente para impedir os Reis. O fogo se dividiu em dois e uma mistura de sangue e escamas encheu o chão de pedra do local dos dois lados do corpo da criatura. Os esguichos não pararam, acontecendo mais cinco ou seis vezes antes da Serpente das Nuvens se dar por conta que estava sendo gravemente ferida e lançar-se aos céus, agonizando. Meryna, com sua posição ameaçada pelos dois espadachins invisíveis, deu impulso com os pés para trás e se jogou para longe, vários metros de onde Rey se encontrava, desmaiado, mas imediatamente sentiu as vibrações no ar em ambos os lados de seu corpo mudarem.

Abriu os braços, expandindo suas garras em vários centímetros e bloqueando as lâminas de Mark e Zen, que sorriu para o elfo e guiou seu corpo para baixo, planando suavemente. Também no ar, Mark girou seu corpo e desferiu um chute fortíssimo no peito de Meryna, lançando-a de costas contra o chão e estilhaçando as pedras mal assentadas. A onda de choque que se propagou de seu corpo após a colisão foi forte o suficiente para que uma pequena cratera se abrisse ao seu redor, e então, algo que impressionou até mesmo uma dos sete membros do Flagelo aconteceu.

A energia e a sincronia que Mark e Zen apresentavam em seus ataques excedeu todos os limites quando suas formas já apresentavam mudanças aos olhos alheios. Com as vestes negras esvoaçando, o Corvo traçou um arco com sua lâmina na direção da mulher atordoada no chão, expandindo sua energia para além do alcance da espada e decepando de forma absoluta o braço direito de Meryna. A marca usada para controlar a Serpente das Nuvens em sua mão mutilada foi se apagando gradativamente até desaparecer.

O Falcão, utilizando as costas do Corvo como apoio, elevou sua posição com um salto e girou a espada élfica no ar. Seus olhos miravam o ponto vital que definiria a luta e eliminaria a primeira verdadeira ameaça de sua jornada. Os raios que desciam dos céus realçavam o dourado de seus cabelos e da armadura leonina que utilizava, confundindo os espectadores sobre sua integridade física. Desceu com os pés sobre o peito do demônio, e abaixando-se sobre um joelho, cravou-lhe a lâmina no coração.

Seu corpo se empertigou todo. Os olhos arregalados denunciavam o terror que sentia naquele momento, o medo da verdadeira morte. Aquela que antes havia sido considerada uma deusa por seus seguidores, agora se encontrava caída no chão, com uma lâmina atravessada no peito. Trincou os dentes, furiosa, mas isso não impediu que o sangue escapasse aos montes de sua boca. O ferimento era real. O ferimento era real! Seu cérebro a lembrou disso um par de vezes mais, e ensandecida, desmaterializou seu corpo nas sombras.

Apareceu longe dos dois, encarando-os com a mais absoluta fúria. O braço mutilado esguichava sangue aos montes, incessantemente. Com a mão esquerda, ela apontou para aqueles que haviam desafiado sua soberania.

— Vocês... vocês acham que podem conosco?! — berrou, rouca, engasgada. — Ragnar dará cabo de todos vocês, não conseguirão nem mesmo dar uma olhadela naquele que comandará o Novo Mundo! Sekh construirá o futuro sobre suas tumbas, vermes! Eu... — sentiu o impacto perfurante de uma pequena lâmina em suas costas e pausadamente, virou-se para olhar, incrédula.

— Você fala demais. —Damon estava lá, parado na chuva e com um sorriso de puro prazer estampado no rosto. Meryna caiu de joelhos, e vomitando sangue mais uma vez, desapareceu do local. O mercenário olhou para onde Rey estava e viu o vampiro ao seu lado, sem ação. O fato de sua mestra ter sido derrotada tão rapidamente era o suficiente para que seu coração desprovido de vida se enchesse de pavor e assim como a mulher, também desapareceu nas sombras.

Uma risada grave ecoou pelo pátio devastado. A Serpente das Nuvens ainda estava lá sobre suas cabeças. Com tantos acontecimentos simultâneos, sua presença já estava praticamente esquecida. O céu ficava cada vez mais escuro e carregado, enquanto a chuva caía mais pesada.

— Vocês são tão pequenos, e mesmo assim, tão audaciosos... Aquela lá, controlando o meu corpo através da vil necromancia! Eu! Mas agora ela se foi...— bufou e se contorceu no ar. Seu corpo se recuperava dos ataques causados por Mark e Zen, retornando ao seu aspecto original, o de quando foi criada para manter a ordem na Criação. — Este lugar... Ele não mudou nada desde que eu caí perante aquele verme... Aruk! — gritou, furiosa, e o vento forte varreu o local, levantando poeira e alterando o curso da chuva por um breve momento. — Agora, bem... eu não o vejo em lugar algum! É uma pena, não é, Ponta-de-Ferro?! Tua cidade, agora tão indefesa sem a tua presença!

Deu uma guinada para cima, atravessando as nuvens com todo o esplendor azul e negro de seu corpo. Os céus brilharam mais uma vez e os estrondos foram gerais. Raios caíram ao redor de Balran, ameaçadores.

As passadas metálicas e apressadas denunciaram a aproximação de Lilian. Ela correu até o corpo do garoto caído, tomando-o nos braços com o pesar de uma mãe.

— Rey... — os cabelos do garoto estavam ensopados de suor, e seu corpo magro e pálido tremia sobre as mãos vacilantes da mulher. — Por favor... não...

Zen e Mark já não estavam mais no pátio.Haviam partido em busca do dragão para evitar que pessoas inocentes sofressem com seus ataques malignos e devastadores. A Serpente das Nuvens buscava destruir o patrimônio que Aruk preservara no passado, e para isso, milhares de cidadãos teriam que pagar.

Damon, que estava mais perto, se aproximou correndo de Lilian para analisar o estado de Rey, mas não precisou nem chegar perto para saber o quão ruim era. A Cavaleira de Balran estava abraçada ao corpo imóvel do garoto, com a cabeça enterrada entre seu ombro direito e seu pescoço.

— Afastem-se, vocês. — A voz decidida de outra mulher chamou a atenção de Damon e de Lilian, que apenas virou a cabeça de leve para escutar, sem tirar os olhos de Rey. Era Sarym, com suor escorrendo pelo corpo após ter distraído o dragão por tempo o suficiente para que Meryna fosse finalizada — Eu posso ajudar, mas vou precisar que solte ele, cavaleira.

— Como você poderia ajudar...? Ele tá morto, não consegue ver...? — retrucou Lilian, com a voz embargada.

— Ele não morreu ainda, mas vai se você não tirar as mãos dele e me deixar trabalhar. — A ruiva disse, com rispidez. Aproximou-se de Rey e Lilian deu-lhe o espaço que precisava, ficando de joelhos ali do lado. Entrelaçou os dedos aos do garoto, protetora.

Sarym mordeu o próprio polegar com os caninos até que a carne rasgasse. Sangue escorreu aos montes do dedo, e aproveitando a abundância, ela deslizou-o sobre o ventre ferido da criança. Levou as duas mãos até o corte, apertando-o com as palmas em conjunto. O sangue expelido de seu polegar começou a se mover pela barriga do garoto, delineando o ferimento. Pequenos filetes rubros desprenderam-se do fluxo principal do sangue, trançando-se como se estivessem costurando a abertura feita pelo punhal. A pele se unia pouco a pouco, e à medida em que terminava de fechar a ferida, o sangue subia para o peito, onde se espalhou e começou a formar algo que parecia ser um símbolo.

— O que você... — Lilian começou, incrédula com o que a ruiva fazia com o garoto, mas Damon colocou a mão em seu ombro e fez sinal para que a deixasse se concentrar. Franziu o cenho e observou, silenciosa.

O sangue formou um círculo, e em uma das pontas, a cabeça do que parecia ser um animal, tentando engolir a outra parte. Sarym, com o indicador, desviou a outra ponta da figura como se estivesse impedindo-a de ser engolida pela cabeça animalesca. Murmurou, com uma expressão de determinação concreta no rosto.

— Teu ciclo ainda não se fechou, ò doce e inocente criança...

E ao passo que suas palavras iam, Rey voltava. Inspirou profundamente, fazendo um barulho rouco enquanto erguia o corpo, assustado. Sentado e sem entender nada, com o peito subindo e descendo freneticamente, o garoto ficou.

Lilian avançou contra ele com tanta ferocidade que instintivamente ergueu os braços para se proteger. Os braços da mulher o envolveram em um abraço enquanto seus lábios se moviam em um agradecimento silencioso para a mulher que proporcionara uma segunda chance para o garoto.

— E-Ei... a gente não deveria ir para um lugar mais seco? — perguntou Rey, constrangido e molhado. O símbolo em seu peito já havia se desfeito com a água da chuva.

— Idiota... da próxima vez que morrer sem eu deixar, farei questão de matá-lo de novo. — Lilian murmurou ao seu ouvido, irritada. Deu-lhe um cascudo na cabeça e levantou-se, olhando para os companheiros ao redor. Frey, se encontrava ao lado de Anne, que ainda não acordara. A garota não tinha ferimentos graves, mas vários hematomas tomavam conta de seu corpo. Damon e Sarym olhavam para a Cavaleira, esperando que ela dissesse qual seria o próximo passo deles.

— Precisamos ajudar o elfo e o Zen. Eles estão lá fora lutando contra aquela criatura e não acho que conseguirão contê-la por muito tempo. Por mais fortes que sejam, seus recursos não são inesgotáveis e eu não quero deixar tudo para eles fazerem. — Agachou-se e pegou a espada do chão, embainhando-a lentamente enquanto refletia sobre o destino de todos eles. — Se for para morrer hoje, que seja defendendo Balran.

— Se eu morrer por causa de uma pocilga como essa, eu não quero nem mesmo um enterro, podem me jogar no mar. — Damon comentou baixinho, desdenhoso.

— Estarei ao teu lado, cavaleira. — A ruiva tocou-lhe o ombro, fazendo um aceno firme com a cabeça. A considerava como uma igual, uma guerreira digna de seu título. — Em Krun's Righ, eu jamais te chamaria de cavaleira, mulher. — Encarou-a nos olhos. — Eu te chamaria de irmã.

— Agradeço pela consideração, ruiva. Que eu possa retribuir teus favores em batalha. — Lilian também pôs a mão em seu ombro por um momento, e então, virou-se para encarar os portões principais. Conseguia ver inúmeras faixas de fumaça escura subindo para os céus, indicando incêndios por toda a cidade. Raios caíam de forma contínua e os rugidos podiam ser ouvidos dali, carregados pelo vento. Seus cabelos esvoaçaram violentamente enquanto ela ajeitava as manoplas.

Começou a caminhar para fora do pátio com uma das mãos na empunhadura da espada. Damon e Sarym foram atrás. A chuva vinha contra suas costas, entrando pelas frestas da armadura e incomodando-a, mas aquilo não seria um empecilho, pois havia treinado em condições tão ruins quanto esta.

— Você vem? — parou ao lado de Frey, encarando-o com firmeza.

— Não posso deixá-la aqui... — o rapaz respondeu, erguendo os olhos para encará-la.

— Mas eu sei. Pegue-a nos braços, temos que nos apressar. Nosso tempo está se esgotando e se não acabarmos logo com este monstro, temo imaginar o que será de nós.

Ela tornou a olhar para a cidade, e com um último pensamento, partiu para cumprir seu dever.

"Se algum dia Balran cair, este dia não será hoje. Não sob minha proteção."


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