A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 42
No Olho da Tormenta


Notas iniciais do capítulo

"— Você se superestima demais, larápio. Em fato, é apenas um humanozinho desprezível que foi escolhido para ir contra a correnteza e tentar impedir algo que não está ao seu alcance!" - Meryna En'Draco



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Mark atravessou a multidão ensandecido, os olhos focados onde anteriormente se encontrara Zen. Empurrava as pessoas para os lados, apressado, mas sem ser rude, embora recebesse olhares hostis ora ou outra. Sem olhar com atenção para a frente, encontrou um obstáculo que não pôde transpor com a mesma facilidade. Deu um passo atrás, desequilibrado, e olhou para o que tinha acabado de colidir.

Era uma mulher loira, tão alta quanto ele e definitivamente bonita. O que a diferenciava de todas as outras belas do recinto era o que carregava em seu corpo. Ao contrário das outras, que utilizavam longos e decorados vestidos, esta usava uma armadura que talvez, e apenas talvez, somente Frey conseguisse equipar.

— Ei, calma aí! — ralhou ela, irritada. — Cuidado por onde anda, elfo.

— Peço desculpas, senhora, mas não tenho tempo para isso. Estou à procura de um... amigo, e não posso perdê-lo de vista mais do que já perdi. — Suspirou, inquieto, ainda olhando para os lados.

— "Senhora"? — ela franziu o cenho, cruzando os braços enquanto seus olhos pousavam no leão esculpido no peitoral da armadura do elfo. — E esse leão... Você é um soldado do Leão Branco?!

— Sim, sim, mas que diabos isso importa agora? Já disse que tô com pressa, e aquele desgraçado do Zen me deve explicações de quase uma década atrás!

— Zen? — ela recuou um passo, espantada. — Conhece o Zen?

— Responda você! Como sabe quem ele é? — Arqueoua sobrancelha, incrédulo. Não pensava que o amigo seria inconsequente o suficiente para ainda se apresentar com o mesmo nome de quando desertou.

— Não, elfo. — Ela deu um passo adiante, com uma expressão autoritária se espalhando em seu rosto. — Responda você. Eu sou a Cavaleira de Balran e estou ordenando que me fale qual é a sua relação com o Zen.

— Pouco me interessa o que você é ou onde você atua, mulher, mas as suas ordens significam tanto para mim quanto mamilos de metal esculpidos em uma armadura. — Franziu o cenho, dando um passo adiante também. Os poucos centímetros que Mark tinha a mais que a mulher faziam pouca diferença naquele momento.

— Você está ciente de desacatar a chefe da Guarda de Balran, elfo? — O canto de sua boca se retorceu em um sorriso maldoso. — Eu não me importaria de arrancar fora essas orelhas pontudas para lembrá-lo quem é que manda por aqui.

— Conte com os braços de outras pessoas para fazê-lo, "donzela", pois estará sem os seus antes mesmo de desembainhar a espada.

Ao redor, a multidão já começava a olhar para a tensão se desenvolvendo entre Lilian e o tal elfo forasteiro. A cavaleira e o espadachim perceberam, mas não deram a mínima. Sentiam que se baixassem a guarda por um minuto que fosse, seria um erro grave. A mulher colocou a mão sobre a empunhadura da espada vagarosamente, sem tirar os olhos do elfo.

Os dois se assemelhavam a predadores prestes a se engalfinharem em uma luta mortal, e esse teria sido o acontecido se não fosse o movimento coletivo de centenas de cabeças se virando para encarar a fonte de um rangido ascendente que invadia o Grande Salão. Mesmo o elfo e a cavaleira se viraram para olhar. Detrás da enorme mesa principal, onde os Grandes Nobres do Reino do Falcão se sentavam, surgiu Meryna e o seu acompanhante inumano, caminhando naturalmente em direção de Lorde Galbrei que a esta altura, já se encontrava de pé, estendendo a mão eles.

Uma onda de repulsa atingiu a Cavaleira e o Elfo, embrulhando seus estômagos. A simples visão de Meryna em sua frente causou arrepios, causou medo, causou raiva, como se tudo aquilo fosse um instinto natural. Estavam na presença de algo que eles nem mesmo sabiam do que se tratava, mas a essência em seus corpos sabia, e era ela quem falava mais alto naquele momento. Meryna, de cima do palanque onde estava, nem se prestava a dirigir o olhar para eles. Ela sorria para Galbrei, que beijou-lhe o dorso da mão e em seguida, virou-se para a multidão.

— Aqui, meus caros cidadãos de Balran e nobres companheiros de Adria, se encontra aquela que permitiu a realização de tamanha festividade! Mer...

— Meryna En'draco. — Anunciou ela mesma, interrompendo o lorde e dando um passo adiante. Tomara a palavra para si de forma tão autoritária e abrupta que mesmo Galbrei se limitara a baixar a cabeça. A atenção de todos foi atraída para a beleza incomparável da desconhecida, que a esta hora, exalava uma aura de poder político intransponível ao seu redor. Nenhum dos outros nobres ousariam interrompê-la, e isso bastava para que nenhum outro naquele lugar o fizesse.

"Vocês não me conhecem, basta olhar para os seus rostos para saber disso, mas que isto não sirva como um empecilho para que tenhamos um futuro brilhante, não é mesmo?!" A pergunta se espalhou pelo Grande Salão, trazendo consigo uma onda de acenos de cabeça, concordantes. "Quando Balran esteve prestes a sucumbir, vocês a seguraram. Vocês tornaram esta realidade possível, vocês impediram que esta grande e importante cidade caísse em decadência, mesmo após tantas dificuldades, e eu os parabenizo por isso. Provaram para si mesmos e para todo o continente de Adria que são mais fortes do que qualquer um, mais fortes do que aqueles que vivem confortáveis em seus belos castelos, cercados de regalias e problemas políticos que não chegam aos pés dos conflitos do dia-a-dia de quem vive aqui."

Aplausos explodiram por todos os lados. Os nobres, embora mordidos com a última crítica, também batiam suas educadas palmas.

"Hoje, vocês presenciarão um marco na história de Balran. O dia em que ela deixará de ser popularmente conhecida como "A Casa de Todos os Ladrões" e passará a ser conhecida como o "Berço de um Novo Mundo", um mundo melhor em que a esperança ocupará o lugar dos céus, estando sempre sobre nossas cabeças e não nos deixando sentir o medo que aflige os menos favorecidos nestes tempos sombrios." Ela deu uma pausa, examinando os olhares encantados das pessoas que a ouviam enquanto um sorriso de deleite brotava em seus lábios. Sua voz se tornava mais enérgica, mas sem perder a compostura. "Qualquer ser humano que se preze conhece a história de Aruk Ponta de Ferro, um dos maiores heróis da nossa história e nativo de Balran. Ele acreditava que a cidade seria indispensável no futuro, que poderia até mesmo ser a Capital do Reino algum dia, pois a capacidade de perseverar sobre as grandes catástrofes era uma característica presente no coração de todos os seus habitantes. Aruk acreditava em vocês, assim como eu acredito, e eu pretendo transformar o seu último desejo em uma inexorável realidade."

Meryna apontou para as portas duplas do Grande Salão e gritou, entusiasmada com a influência positiva de seu discurso sobre as pessoas.

— Vejam agora, com seus próprios olhos! Vejam as riquezas que transformarão Balran na cidade-modelo de Adria! Abram as portas, meus cavaleiros, mostrem a face da esperança à estas pessoas que sofreram por toda uma vida! — e assim fizeram os dois cavaleiros que acompanhavam Meryna em sua carruagem. Com suas armaduras negras e bem polidas, se adiantaram na direção das portas e agarraram suas aldrabas. Todos tinham uma expressão de puro êxtase quando as portas começaram a ser abertas, ao passo que os nobres demonstravam estar atônitos. Nenhum deles tinha a mínima ideia do que Meryna ia fazer, muito menos de como ela iria transformar Balran em algo bom. A mulher tinha os olhos arregalados e um sorriso insano nos lábios, sem palavras para expressar tamanha satisfação.

As portas se abriram e com elas, morreu a empolgação de todos que ali se estavam.

Quatro carroças enormes que antes estavam carregadas de moedas e jóias preciosas, se encontravam agora destruídas, abertas no chão. Suas lonas estavam rasgadas e lançadas ao vento e as riquezas se espalhavam por todo o chão do pátio do castelo. Chovia forte lá fora, o que não era escutado dentro do castelo por conta da grossura das paredes e do teto. O vento trouxe os pingos d'água e o frio penetrante para dentro, afastando aqueles mais próximos da porta, mas além disso, ele trouxe consigo o desespero daquela que discursara para os habitantes de Balran.

Um raio cortou os céus em direção ao chão, trazendo consigo a visão de duas pessoas paradas na escuridão da noite, em meio à destruição dos bens da nobre. O estrondo marcou o primeiro passo dado por um deles para dentro do salão.

— Esperança, é o que ela promete a vocês. — Oculto sob um capuz totalmente encharcado, avançou o rapaz para dentro do recinto. A pessoa que o acompanhava permaneceu do lado de fora, parecendo não se importar com a chuva. — Esperança. É uma palavra engraçada vindo de alguém como você. — Levou as mãos até a cabeça e descobriu o rosto, revelando-se para Meryna, que tinha as duas mãos sobre a mesa principal e afundava suas unhas na madeira com um olhar de fúria incontrolável no rosto. — Meu irmão deveria estar aqui pra ver isso. A mulher que arrancou o seu coração e o transformou em um demônio desalmado a seu serviço. Não sei se é do seu conhecimento, e nem se eram esses os seus planos, mas eu o encontrei. Eu tive que matar o que um dia foi o meu próprio irmão pelo que você fez com ele! Ghan'raudor, reconhece este nome? Pois eu o chamava de Lars, sua vadia desgraçada!

— O que você pensa que... — começou Meryna, mas foi interrompida por Damon.

— Cala essa maldita boca! — enfiou a mão dentro das vestes e arremessou a adaga na direção da mulher. A lâmina viajou pelo ar tão rapidamente que aos olhos dos que acompanhavam a cena, parecia ser apenas um borrão escuro. E tão veloz quanto o arremesso foi a reação do acompanhante de Meryna. Enquanto a mulher ergueu os braços para se defender do projétil, seu defensor se colocou à sua frente e agarrou a adaga com a mão, ainda no ar, impedindo-a de se chocar contra sua senhora. O sangue escorreu em abundância por entre seus dedos, mas seu semblante permaneceu inalterado. Os olhos vermelhos fixaram no mercenário.

— Atrás de você! — a voz da garota que ficou do lado de fora soou atrás de Damon, com a urgência transparecendo em cada palavra. Ele mal teve tempo para se virar quando viu os dois outros cavaleiros negros golpeando com as espadas em sua direção. Tudo pareceu se mover em câmera lenta. Tentou lançar o corpo para trás, mas já era tarde demais. Fechou os olhos e esperou a morte certa enquanto caía.

O barulho de lâminas colidindo ecoou pelo Grande Salão, alto o suficiente para que todos ouvissem com clareza.

— Você não consegue ficar um minuto sem fazer alguma merda, não é?!

Damon arregalou os olhos quando ouviu a voz, e nunca se sentiu tão agradecido por ter reencontrado alguém em toda a sua vida. À sua frente, bloqueando as duas espadas vindouras, estavam Mark e Lilian. Suas respectivas lâminas formavam um X, uma sobre a outra, impedindo que os dois cavaleiros transformassem o mercenário em uma pilha de carne mutilada.

— Mark! Você chegou na melhor hora possível, se é que posso dizer isso! — ele bradou, ainda no chão.

Mark, sem tirar os olhos dos inimigos à sua frente, respondeu-o com amargura.

— Não posso dizer que estou feliz em te ver, mas parece que não temos muita escolha agora! — suas mãos e as da cavaleira tremiam enquanto seguravam as espadas dos inimigos em uma disputa de força que não duraria por muito tempo. — Se levanta logo, idiota!

Damon rolou para trás, e novamente as lâminas colidiram. A dança das espadas teve início enquanto o mercenário voltava sua atenção para Meryna, que não se encontrava mais lá. Parecia que as pessoas lá dentro estavam imobilizadas, tamanho era o choque que as impedia de ter alguma reação. Olhou ao seu redor, mas não conseguia encontrá-la. Virou-se na direção das portas principais do Grande Salão e sua respiração cessou de imediato.

Ela caminhava na direção de Anne, que ficara de fora quando o rapaz interrompeu o discurso de Meryna. Tinha os braços abertos, convidativos, como se esperasse um abraço da ruiva.

— Eu disse que nos veríamos novamente, não disse?! — seu sorriso era amplo, satisfeito com tamanha sorte.

— Ainda bem! Agora que eu sei quem você é, seria uma pena não poder acabar com você! — a voz da ruiva vacilava um pouco e suas mãos tremiam o suficiente para que a outra percebesse, mas logo cerrou os punhos e franziu ainda mais o cenho.

A tempestade do lado de fora era algo estrondoso. As gotas d'água caíam como pedras, fazendo um barulho ensurdecedor para os espectadores da luta que se seguia.

Damon correu em direção às costas de Meryna, tateando o cinto em busca da adaga que já não estava mais lá. Fez uma careta de raiva, lembrando-se de forma tardia que arremessara-a na mulher anteriormente. Continuou avançando, mesmo desarmado. Não podia deixar que ela machucasse Anne de forma alguma.

***

— São eles, Frey! — Pete gritou, puxando o braço do irmão. Frey ficara paralisado, assim como todos os outros, mas não demorara a tombar uma das mesas em que se realizava o banquete para a frente e se proteger atrás dela com o irmão. — O Damon e a Anne!

Frey ergueu a cabeça para olhar. A coisa estava feia, e só piorava a cada segundo. Mark lutava ao lado da mulher com quem discutira anteriormente e seus adversários não pareciam ser nem um pouco normais. Eram dois cavaleiros de mesmo porte, altos e fortes, com armaduras majoritariamente negras. Suas espadas eram prateadas, reluzentes, mas seus ataques não carregavam nenhuma destas duas características. Eram brutais, precisos e carregavam a essência da morte em cada arco traçado no ar. Suas lâminas pareciam estar impregnadas por algum tipo de sombra, pois deixavam um rastro negro para trás quando dançavam pelo ar.

— Você precisa ajudar eles, mano! — Pete implorava, puxando mais forte o braço de Frey. — Você me salvou uma vez, destruiu aquele cara como se fosse um boneco de madeira, faz aquilo de novo, por favor! Eles precisam da gente! Eles precisam de você!

— Eu... eu não posso! — levou a mão até o pescoço, sem sentir o colar se aquecer. Da última vez a jóia queimara seu pescoço de forma excruciante, mas agora encontrava-se fria como sempre havia sido.

— Eu não sei como você fez aquilo, mas você precisa fazer de novo! Eles correm perigo, Frey! — lágrimas brotavam dos olhos do pequenino, que agora temia pela vida daqueles que em tão pouco tempo haviam se tornado a sua família. — Por favor!

Frey se levantou, a tempo de ver Meryna caminhando na direção de Anne e Damon tentando alcançá-la. Olhou paraà a mesa principal e percebeu que o homem que agarrara a lâmina do mercenário em pleno ar se locomovia para impedí-lo de chegar até ela, e foi nesse momento que seu corpo parou de agir conforme seus pensamentos.

***

Damon escutou um estrondo atrás de si enquanto corria. Olhou de relance e viu uma parede desabar enquanto uma nuvem de poeira se alastrava. Alguém é lançado de dentro dela e colide contra um par de mesas repletas de pratos, talheres e bebidas, espatifando tudo com o impacto. O acompanhante de Meryna sai caminhando na direção do homem arremessado que ainda tentava se erguer, zonzo pelo impacto. Ele desembainhou a espada, tão bela quanto a dos outros dois que lutavam com Lilian e Mark, e jogou-a no chão.

— Meus punhos serão o suficiente para dizimar-te, mortal. — Abriu e fechou as mãos uma ou duas vezes, cerrando-as em seguida. — Se é assim que lutas, é assim que lutarei.

Arregalou os olhos quando conseguiu reconhecer o homem que levara o golpe do cavaleiro.

— Só pode ser brincadeira... — balbuciou enquanto Frey se levantava, cuspindo o sangue da boca no chão. Não imaginava como o rapaz podia ter sobrevivido àquilo. Virou-se novamente para Meryna, que chegava cada vez mais perto de Anne.

Acelerou a corrida e a ruiva sorriu. Meryna notou a mudança no semblante da garota e virou-se para encontrar o motivo da satisfação súbita, encontrando apenas uma joelhada no peito que a empurrou para trás, desequilibrada. Damon caiu de pé e já lançou o punho direito contra a membro do Flagelo, que se esquivou e agarrou seu braço, puxando-o contra si e dando-lhe uma cabeçada tão forte que o obrigou a ficar de joelhos.

— Eu sou mais rápida... — moveu-se em um piscar de olhos, chutando-o no peito e jogando-o para trás, de costas no chão. — Eu sou mais forte... — agarrou-o pelos cabelos enquanto ele tentava se levantar, batendo sua cabeça contra o chão. O segurou pelo colarinho e arremessou seu corpo contra um pilar próximo. — Você se superestima demais, larápio. Em fato, é apenas um humanozinho desprezível que foi escolhido para ir contra a correnteza e tentar impedir algo que não está ao seu alcance!

— É aí que você se engana, demônio. — Meryna virou-se para olhar o portador da voz, encontrando ali um rapaz de cabelos pretos e rebeldes, portando uma espada tão maltrapilha quanto suas roupas. — O Damon aí não é um humanozinho desprezível. A motivação dele é nobre, ele luta para acabar com aquela que ceifou a vida de seu irmão, e eu não vou deixá-la profanar isso. Se você é a correnteza, eu estou aqui para quebrá-la. — E antes que a mulher pudesse replicar, Zen avançou em sua direção.

A lâmina cortou o ar em direção a mulher, e antes que encostasse na pele pálida dela, ela havia sumido. Apareceu logo atrás de Zen, com um sorriso malicioso no rosto, certa de sua vitória fácil. O Atormentado riu, olhando-a por cima do ombro, como se soubesse que ela estava ali, como se seus olhos amarelos tivessem acompanhado toda a movimentação dela.

Meryna ergueu a mão e golpeou contra o rapaz, e assim como ela, ele sumiu antes do golpe conectar. Surgiu atrás dela, brandindo a espada em cima da cabeça. O sorriso que tomava seu rosto agora era de puro prazer, prazer pela batalha. A arma baixou mas foi interceptada. Uma lâmina negra se mantinha impassível diante da de Zen. O rapaz tirou os olhos de Meryna e passou para o dono daquela espada. Era o homem com quem Frey lutava segundos atrás. Ele por sua vez estava caído no chão, os olhos fechados, numa pequena cratera.

— Como ousa atacar minha bela Meryna? Como ousa por em risco sua imensurável beleza? ­— ele girou a espada, e moveu-a em direção a Zen. O Atormentado segurou a lâmina inimiga com a guarda de sua espada. — Você deve morrer.

— Não, é você que morre hoje, aberração — disse Damon, enfiando uma adaga que havia recolhido do chão nas costas do homem.

Ele apenas virou a cabeça, olhando na direção de Damon. Moveu a mão esquerda mais rápida do que o Larápio poderia desviar, agarrando ele pelo pescoço. O Atormentado se aproveitou da brecha cedida por Damon e moveu a lâmina, atravessando o oponente no peito, na altura do coração.

O homem tremeu, as pernas falhando por um instante. Ele então olhou para Zen, e bateu com o pomo da espada contra a boca do estômago do Espadachim, arremessando ele metros para trás, até bater numa parede, onde ficou caído, sentado no chão.

Damon por sua vez, se debatia, tentando se livrar da mão de seu captor. Foi então que notou algo. Onde estava Meryna? Encheu-se de medo, e logo pôs seus olhos a vasculhar em busca da mulher, e pelos deuses, encontrou ela diante de Anne, que se encontrava contra a parede e a encarava com uma falsa bravura.

Meryna apontou-lhe o dedo em riste e a ruiva estacou, baixando os braços e moldando a expressão do verdadeiro pavor no rosto. Seus olhos se arregalaram e sua boca se abriu totalmente, como se estivesse sendo controlada pela mulher. Meryna, ainda apontando para ela, levou a outra mão para a frente do corpo e fez um gesto, como se agarrasse algo e puxasse.

— Liberta-te, herdeira de Sarkon. — Disse a mais velha, em voz solene.

E neste momento, para o terror daqueles que olhavam a cena, Anne entrou em combustão.

***

O fogo cresceu num pilar e varou o teto do grande salão, brilhante e vermelho, belo e mortal. E à frente daquela pilastra incandescente estava Meryna, rindo, intacta mesmo rodeada pelo fogo, e paralisada diante dela estava Anne, com as mãos caídas e o cabelo em pé, balançando à medida que a chama dançava. Ela não reagia, parecia não escutar ninguém, nenhum dos gritos de Damon, que por pouco havia escapado daquelas chamas. Mark e Lillian estavam no mesmo estado, assustados com o pilar repentino de fogo que emergira da Ruiva.

E em silêncio sepulcral, a Ruiva sonhava.

Enquanto tudo passava como um piscar de olhos lá fora, Anne estava sentada num banco, no topo de uma colina. Lá adiante dela, ela encarava uma figura distinta, que tocava uma flauta. Não sabia onde era aquele lugar, nem como havia vindo parar ali. Na verdade, não lembrava onde estava antes de vir parar ali, e nem o que fazia. Mas ela não ligava para isso, aquela música de flauta era tão bonita, que ela não ligava.

Foi só quando percebeu a beleza daquela música, que finalmente viu o céu. E aquele céu não era qualquer um, naquele céu dançavam infinitas cores, que se mesclavam, sendo guiadas pela flauta daquela figura.

— É tão lindo — ela disse, quando lembrou que podia falar, pois naquele momento, ela não lembrava nada.

A música parou, assim como a dança no céu. A figura baixou a flauta, virando o rosto para Anne, mas a Ruiva não podia distinguir a feição daquele ser. Era como se estivesse borrado, como se houvesse e não houvesse um rosto ali, ao mesmo tempo. Mas ela viu que ele sorriu, sentiu que ele sorria.

— Você chegou até aqui, finalmente — disse o flautista.

— Eu cheguei? — ela perguntou — aqui onde?

Aun’renlan, a... — e as palavras que ele disse em seguida pareceram não sair, ou talvez ela que não tivesse as ouvido.

— O que?— ele repetiu, e outra vez ela não conseguiu ouvir o que ele falava. — Não consigo te ouvir.

O sorriso se desfez, ela sabia que havia acontecido.

— Ainda está muito cedo para você, não sabe nem mesmo ouvir — virou o rosto, voltando-se para seu céu multicolor. — Vá embora, volte para seu mundo.

— Para onde? Onde é que eu estou? Onde é que eu estava? — ela se levantou, e sentiu suas pernas fraquejarem, e por consequência caiu de joelhos no chão.

— Balran, Anne. Você já se esqueceu? — ele sorriu, como ela sabia que ele fazia, e então voltou a tocar sua flauta.

Balran?, ela pensou. Balran, eu conheço esse nome, Balran. Tudo ao redor da Ruiva agora era negro e silencioso, apenas uma luz vinha do alto iluminando um pequeno círculo ao redor dela. Uma voz veio de longe, baixinha.

— Anne — a voz chamava seu nome, mas a garota perdida em seus pensamentos não deu atenção.

Balran... Balran, era uma cidade não é?

— Anne — a voz veio mais alta.

Balran, era uma cidade, onde estava Damon, Frey, Pete, Mark.

— Anne — a voz era mais forte agora.

Damon, Frey, Pete, Mark... Os olhos dela se arregalaram, e então veio um grito.

— Anne! — e a voz não era apenas uma e sim quatro.

Atrás de uma parede de fogo, viu ali todos eles gritando seu nome. Mark e Pete seguravam Frey do jeito que podiam, tentando conter o brutamontes de pular no meio do fogo e tirá-la de lá. Damon era segurado por Lillian, que olhava assustada para a garota intocada no meio das chamas. Cavaleiros Negros estavam logo atrás desse grupo, ainda brandindo suas espadas, mas imóveis diante do pilar de chamas que havia surgido.

A Ruiva olhou as próprias mãos e percebeu este fato, as chamas não a feriam, era quente mas não o suficiente para queimar. Era um calor reconfortante, um calor bom. Ela sentia-se bem, sentia-se confiante, sem medo. Estava segura pela primeira vez em muito tempo.

Apertou as mãos, guardando aquele sentimento, e então lembrou-se do que havia acontecido. E lembrou daquela mulher, da voz dela chamando, lembrou o nome dela.

Meryna, ela ergueu o olhar e lá estava a tal, logo diante dela, intocável no meio das chamas, encarando-a com um sorriso malicioso e demoníaco. Anne sentiu raiva, sentiu ódio daquele sorriso, sentiu ódio daquela que havia sido sua salvadora.

Ela sentia ódio, e esse ódio cresceu dentro dela. A Ruiva cerrou os dentes e se levantou no meio do fogo, ficando frente a frente com Meryna, cujo sorriso no rosto desapareceu, substituído por um olhar intrigado.

—Você...— ela disse, a voz carregada de poder, um poder ancestral que fez suas palavras ecoarem por todo o salão. — Você irá queimar.

E estendeu as duas mãos para frente. De seus palmos explodiu uma luz dourada e quente, mais quente que o próprio fogo, que por um momento cegou todos no salão. As paredes do salão tremeram e poeira desceu aos montes do teto vacilante. Algumas pessoas começaram a correr para as portas escancaradas, mesmo com a tempestade lá fora, pois era preferível se molhar a morrer soterrado. Foi o estopim para a enorme correria que se seguiu.

Até mesmo o homem que segurava Damon vacilou, e este foi o momento que encontrou para se livrar dele. Desvencilhou-se de sua mão e desatou a correr na direção de Anne, para ajudá-la com Meryna, mas parte do fogo que compunha o pilar de chamas se soltou e saltou à sua frente, formando uma parede ígnea que impediu sua passagem.

— Não! Eu seguro ela, tire os outros daqui! — Anne bradou, sem tirar os olhos da mulher que agora se encontrava a vários metros de distância. Seu vestido estava rasgado e chamuscado em vários pontos, demonstrando ter sido, de fato, atingida pelo ataque da ruiva.

Damon olhou ao seu redor. Frey estava parado, olhando em choque para Anne. Mark compartilhava do mesmo sentimento que o amigo, pois lembrava-se da ocasião no acampamento onde Anne havia sido atacada pelos homens que a taxaram de bruxa. Pete tinha os olhos arregalados e o coração à mil, agarrado à cintura do irmão mais velho. Lilian, por sua vez, se encontrava ao lado de Zen, colocando-o nos ombros para tirá-lo dali antes que tudo fosse abaixo.

— Frey! Precisamos sair agora! — gritou Damon em sua direção, mas ele balançou a cabeça, negando.

— Não podemos deixar a Anne aqui, idiota! Você já fez isso uma vez, lembra?! — o rancor era perceptível em sua voz.

— Não é hora pra isso, seu estúpido! Olhe ao seu redor, isso aqui vai desabar e você vai botar a sua vida e a do seu irmão fora! A Anne não precisa da nossa ajuda, olha bem pra ela! Se tem alguém com o poder para deter a Meryna agora, é ela!

Frey vacilou por um momento, mas agarrou o irmão e olhou para Mark, que acenou positivamente com a cabeça. Eles começaram a sair, e Damon foi atrás. Mais poeira descia do teto, agora acompanhada de pedaços de madeira em chamas. A tapeçaria já estava toda envolta pelo fogo que se desprendia do enorme pilar flamejante. Ele deu um último olhar para trás antes de cruzar as portas do Salão Principal, e a última coisa que viu foi Anne abrindo os braços e dividindo o fogo em dois focos.

Tudo que estava lá dentro foi engolido pelo alaranjado das chamas e seu corpo sentiu a onda de choque antes de ouvir o barulho da explosão.


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