A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 31
A Sete Palmos


Notas iniciais do capítulo

" — Por que aqui é a Gruta. Se você esquece o que quer aqui dentro, ela não te deixa mais sair. Você se torna mais um de seus moradores, mais um de seus Esquecidos. — Falou o Cavaleiro. " O Cavaleiro na Gruta



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— Comprem seus doces! Comprem seus doces! — gritava um velho, encolhido em um canto, segurando um punhado de pedras.

— Boa noite marinheiro, não quer passar a noite numa cama quente? — falava uma velha sem dentes, vestida em nada além de trapos.

— Elas estão em mim! Estão em baixo da minha pele! Elas estão em baixo da minha pele! — gritava um homem esquelético, que ficava coçando os braços. Sua pele praticamente não existia, era sujeira e sangue seco.

E tantos outros exclamavam coisas insanas e malucas, todos loucos escondidos atrás de pedras, grades ou carroças, olhando Zen enquanto ele passava. O rapaz olhava reto, sem dar atenção as figuras estranhas que se escondiam no breu. Levava uma tocha na mão esquerda, que havia encontrado um tempo atrás em seu caminho até ali, na verdade, ele a recebeu de um outro daqueles moradores da gruta. “Para iluminar seu caminho”, disse o velho sem dentes, e entregou a toxa que se acendeu sozinha, como num passe de mágica.

— Quem é esse? Quem é esse? — perguntou uma forma magra e pálida, que se agarrava no topo de uma pedra.

— É um visitante do exterior, um visitante que vem de fora! — disse uma mulher gorda com os cabelos arrepiados, que brincava com dois pedaços de pano como se fossem bonecas.

— Um visitante de Fora? E onde fica Fora? É do lado de Dentro? — um garotinho dentro de um caixote olhava Zen.

Uma mulher velha com os peitos despidos agarrou o menino e o largou sobre o seu colo, passando a mão sobre seu dorso.

— Não seu gatinho tolo, Dentro é do lado de Perto, Fora é do lado de Longe — e o jogou dentro de um cesto, onde ele ficou.

— E o que alguém de Fora faz aqui na Gruta? — perguntou outro louco, e foi correndo até Zen, parando em sua frente. — Ei, você sabe o que o alguém de Fora faz dentro da Gruta?

Zen ergueu uma sobrancelha, encarando o homem. Ele tinha uma barba cinza espessa, e um olho de vidro no lugar do original esquerdo. O Atormentado pensou rápido e disse.

— Ele vem para levar uma mensagem ao Rei da Gruta, do Rei de Fora — ele disse.

— Mas isso não faz sentido nenhum! — ele gritou e saiu pulando de volta para seu breu. — Sentido nenhum, sentido nenhum! Isso não faz sentido nenhum! — ele gritava e ria, e sua voz ia diminuindo pouco a pouco, até sumir de vez.

— Acho — ele olhou na direção para onde o louco havia fugido —, acho que ele era louco. — E seguiu caminhando.

A Gruta, um lugar realmente escuro. Até aquele momento, achava que tinha caminhado por uma meia hora, mas não tinha certeza, não sabia de nada ali dentro. Quando entrou, foi como entrar em um outro mundo, escuro e agourento, cheio de pessoas malucas, fadadas a ficar ali por uma eternidade. O caminho era estranho para ele, talvez estivesse perdido, pois sempre que iluminava a parede, parecia ter visto a mesmas formas rochosas que havia visto cinco minutos atrás.

— E eu achando que isso era algum tipo de masmorra subterrânea — ele disse, tentando iluminar mais de meio palmo a sua frente. — Se for, é uma masmorra bem grande.

E realmente não era uma masmorra, não mais. Um dia no passado pode ter sido, mas hoje era um antro de podridão. Um lugar onde as paredes têm olhos e ouvidos, e cada passo te deixa um pouco mais perto da insanidade.

Zen atravessou um caminho estreito, tão estreito que teve que andar de lado, roçando na parede. Do outro lado, um breu denso, com exceção de um ponto brilhante. Não, não era uma bola de luz como a da floresta onde Pete se enfiou. Era como se houvesse uma fogueira distante. O Recruta de Balran decidiu seguir até essa suposta fogueira, sua tocha se enfraquecendo a medida que se aproximava. Mesmo a dez metros da luz, não conseguia ver o que era. Não sabia se era mesmo uma fogueira, e até acreditava que não era. A luz não era de fogo, era um tanto esverdeada, e ao mesmo tempo amarelada. Finalmente alcançou a luz, e se surpreendeu por um momento.

Encostado numa parede, um Cavaleiro vestido em armadura completa, o rosto escondido pelo elmo. Usava uma capa intocada pelo tempo, com um brasão que Zen desconhecia. Tinha os braços cruzados, e pela posição da cabeça, devia estar olhando para baixo pela viseira de seu elmo. Quando Zen se aproximou, ele não reagiu, permaneceu olhando para baixo. O Atormentado virou a cabeça na direção daquilo que ele olhava, e viu apenas a pedra nua. E a luz misteriosa parecia emanar daquele homem.

— Perdido? — o Cavaleiro perguntou, sem mover a cabeça. Sua voz era grave e forte, de um homem no auge de sua saúde.

Zen levantou a cabeça, encarando o estranho. Ele está falando comigo? Olhou para os lados, e só viu o escuro. Só pode estar falando comigo.

— Não devia estar, mas estou — respondeu. — O que é esse lugar?

O Cavaleiro ergueu a cabeça, parecendo olhar na direção de Zen.

— O que mais poderia ser? Uma Gruta — e Zen pôde sentir que o estranho sorria.

— Grutas não são tão profundas como essa é, isso não pode ser uma gruta.

O Cavaleiro voltou a baixar a cabeça, olhando para o chão novamente.

— Você não está errado, mas também não está certo — ele riu. — O que você veio fazer aqui?

Zen ia dar a resposta, mas percebeu que não tinha nenhuma resposta para dar. O que eu vim fazer aqui dentro? ele se perguntou, olhando para o chão. Eu não estive sempre aqui? Ele voltou a olhar para o Cavaleiro.

— Eu... Não lembro — ele disse —, eu não lembro o que vim fazer aqui.

— Isso é um problema — disse o outro —, se você não lembrar o que veio fazer aqui, não vai conseguir sair.

— O que? Por que?

— Por que aqui é a Gruta. Se você esquece o que quer aqui dentro, ela não te deixa mais sair. Você se torna mais um de seus moradores, mais um de seus Esquecidos. — Falou o Cavaleiro.

— E você? Também se esqueceu o que veio fazer aqui? — o estranho levantou a cabeça, olhando para Zen.

— Eu? Eu nem estou aqui — e deu uma risada, e quando o Atormentado piscou, ele realmente não estava mais ali.

No lugar, no ponto onde a assombração ou alucinação olhava, havia um lampião. Dentro brilhava flutuando uma chama verde amarelada. O Recruta de Balran soltou a tocha, apagada e inútil, e agarrou o objeto.

— O que eu vim fazer aqui dentro? — ele perguntou, e a chama pareceu entender.

O pequeno fogo flutuante agitou-se, e como uma bússola, apontou numa direção. Zen não tinha o que fazer além de seguir o guia estranho. E o fez.

***

O rapaz já seguia o pequeno fogo há um longo tempo, ou ele apenas imaginava que havia sido um longo tempo e talvez não fosse. Desde que encontrou aquele estranho Cavaleiro, ele não sabia quanto tempo tinha se passado, mas sabia que estava caminhando seguindo a pequena chama. Por que mesmo que eu estou aqui? ele se perguntava a cada cinco passos que dava, tentando encontrar uma resposta em seus pensamentos, mas não havia nenhuma. Olhava para as paredes, e via formas se movendo no meio do escuro, criaturas ou homens, que estavam tão perdidas quanto ele. Atravessou algo que entendeu ser uma pequena ponte de pedra, e quando olhou para baixo no meio dela, jurou ter visto um rio de água cristalina, mas aquilo não lhe importava.

Por que mesmo eu estou aqui? se perguntou, cinco passos depois da ponte de pedra. A chama continuava brilhando forte, apontando para uma direção no meio do escuro. O Recruta de Balran continuou seguindo ela, desviando de estalagmites e buracos que deviam dar em abismos sem fim. De tempos em tempos um ser qualquer passava correndo em sua frente, e sumia antes que Zen pudesse ver suas feições. Subiu algo que entendeu ser um pequeno aclive, e quando olhou para cima no meio dela, jurou ter visto um céu noturno cheio de estrelas, mas aquilo não lhe importava.

Por que mesmo eu estou aqui? se perguntou, cinco passos depois do aclive. A chama brilhava, não tão forte quanto antes, apontando para uma direção no meio do escuro. O Atormentado continuou seguindo ela, desviando de árvores e lagos, que deviam descer por milhares de metros até o breu profundo. De tempos em tempos um homem de cabelos negros qualquer passava caminhando em sua frente, e sumia antes que Zen pudesse ver seu rosto. Escalou algo que entendeu ser uma montanha de pedras, e quando olhou para o lado no meio dela, jurou ter visto uma infinidade de outros Atormentados, mas aquilo não lhe importava.

Por que... Estou aqui? se perguntou, cinco passos depois de subir a encosta. A chama estava fraca, apontando para uma direção no meio do escuro. O Fraco continuou seguindo ela, desviando de homens vestindo armaduras, parados olhando para o nada. De tempos em tempos, uma mulher loira passava correndo em sua frente, e sumia antes que Zen pudesse ver seu rosto. Passou por uma campina que devia ser uma área de guerra, e quando olhou para o lado no meio dela, jurou ver um rapaz gritando de dor, com o corpo coberto de sangue e cicatrizes, mas aquilo não lhe importava.

Por... que? se perguntou, cinco passos depois da campina. Não havia mais chama alguma, não apontava para nenhuma direção no meio do escuro. O Perdido continuou andando, sem seguir ela, sem desviar das formas negras que apareciam em sua frente. De tempos em tempos, um demônio ou monstro passava em sua frente, e Zen podia distinguir a face horrível da besta antes dela sumir. Cruzou um rio que levava corpos, e quando olhou para o lado no meio dele, jurou ter visto o seu sendo levado, mas aquilo não lhe importava.

Não se perguntou mais nada, cinco passos depois do rio. Não havia nenhum lampião. Ele não andava mais, estava de joelhos no meio de um cemitério. Continuou ali, olhando para a lápide alva e fria. De tempos em tempos, lia o nome que estava escrito ali, e chorava todas as lágrimas do mundo. Em cada lápide, uma parte de seu passado, e quando olhou para o lado, jurou ter visto mil iguais à ele, chorando em cada lápide, e aquilo lhe importava.

Por que mesmo eu estou aqui? ele se perguntou, e olhou para frente. Uma tocha brilhava presa a uma parede, do outro lado de um grande abismo, e uma criança era levada por algo que devia ser um homem, de mais de dois metros, sem pelo algum, vestido em trapos. Quando olhou a criança, uma palavra veio-lhe a mente: Rey, e lembrou-se porque estava ali. Olhou para o lado, e jurou ver nada além de um caminho estreito. A parede de pedra dum lado, o abismo negro do outro. E mais adiante uma ponte que dava para o outro lado do abismo, onde ele havia visto o garoto. Por ali ele seguiu, e não fez pergunta alguma, cinco passos depois. Apenas disse, determinado.

— Estou aqui para salvar o Rey — e com isso, seguiu seu caminho atrás do garoto.


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