A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 23
Despertar


Notas iniciais do capítulo

"O rapaz o fez, ainda encabulado com a habilidade perceptiva de Mark. "Elfos", sua mente gritou, como se dissesse: "ele é um elfo, idiota. É lógico que ele consegue sentir as coisas que acontecem quilômetros à frente, diferente de você que não percebe as que acontecem a um palmo do seu nariz!""



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— Ótimo. Excelente. Esplêndido. Primeiro o Pete, agora perdemos a Anne bem debaixo do nosso nariz! — Frey parecia prestes a ter um colapso nervoso. Caminhava de um lado para o outro, olhando para todas as direções em busca da companheira perdida. Mark jazia silencioso, com a mão apoiada delicadamente sobre uma árvore próxima.

— Magia — disse, subitamente.

— Quê? — o marceneiro arqueou a sobrancelha, erguendo as mãos como se dissesse "seja mais claro, por favor".

— Anne foi raptada, quase certamente, pelos mesmos captores de Pete. Goblins e seu mestre provavelmente não fazem parte da mesma espécie. Essas criaturinhas não tem inteligência suficiente sequer para construir uma cabana habitável, é óbvio que não conseguiriam efetuar um sequestro perfeito e ainda por cima, tão perto de nós dois. Foi a mesma magia utilizada para atrair Pete, mas aplicada de outra forma. — Ergueu o rosto em um ângulo suave e suas narinas tremularam quase que de imperceptíveis por um momento. Começou a caminhar na direção de um pequeno espaço descampado e sem nenhuma palavra, fez sinal para que Frey o seguisse.

O rapaz o fez, ainda encabulado com a habilidade perceptiva de Mark. "Elfos", sua mente gritou, como se dissesse: "ele é um elfo, idiota. É lógico que ele consegue sentir as coisas que acontecem quilômetros à frente, diferente de você que não percebe as que acontecem a um palmo do seu nariz!". Frey teve vontade de socar a própria cabeça, o que não seria muito inteligente. Prosseguiu quieto, com o cenho franzido. Só queria achar Pete e Anne logo, sair daquela floresta e prosseguir com a missão, ou achar uma cama quente e comida boa para descansar um pouco.

— É isso. — Mark sorriu e mostrou ao outro a precária estrada que cruzava a floresta, solitária entre tantas árvores. Era larga o suficiente para que uma carroça normal passasse, mas se fosse algum modelo comercial, mais robusto e resistente, teria que procurar outra rota. O elfo olhou ao seu redor e proferiu algumas palavras em seu idioma nativo. Sua voz, mesmo em um tom baixo e puro, ecoou pela floresta em um tom harmônico natural, cantada. Os pássaros se encantavam com o idioma élfico e não tardaram a cantar em resposta, acompanhando o emissor do som.

— Essa é a língua da sua terra, Mark? — Frey perguntou, quando começaram a caminhar de forma apressada pela estrada. Não entendia muito das outras raças, portanto anões e elfos eram um mistério absoluto para ele. Só tinha o conhecimento básico que qualquer um poderia saber: elfos tinham orelhas pontudas e anões não chegavam aos ombros de um humano normal, embora fossem tão ferozes quantos os ursos do extremo sul. A geografia de Mythria não era complexa, sendo até bem natural. Adria ficava em baixo de Sarkon, portanto, mais próxima do Polo Inferior do mundo, o que implica na região sul ser extremamente fria, o que acontece também e da mesma forma no norte de Sarkon, que é mais próximo do Polo Superior.

— Sim, chamamos de alaru'mo, que significa "palavras da floresta". Alaryn, o Divino, foi o criador desta língua. Pelo menos é o que dizem os anciões. Segundo eles, Alaryn é o deus a quem todos os elfos devem suas vidas, pois foi ele quem nos possibilitou a vida, porém, com uma função: proteger o mundo das outras raças que o consomem de forma tão impiedosa. — Frey se sentiu um pouco desconfortável. Sabia que Mark se referia aos humanos e anões, que respectivamente devastavam grandes florestas para criar cabanas de madeira e construíam forjas colossais que devastavam o interior das montanhas. Percebendo o desconforto do amigo, o elfo logo continuou. — Mas não se preocupe, Frey. Após alguns conselhos pouco amigáveis do último Rei de Malfrend, que é o nome do Reino dos Elfos, o Rei Falcão criou novas leis para que as florestas fossem preservadas em sua grande maioria.

— Como é Malf... Qual é o nome mesmo? — o marceneiro coçou a cabeça por um segundo, procurando lembrar a palavra. — Malfrend! Como é lá?

— Enorme, e magicamente protegido. Você não pode ultrapassar a fronteira élfica a menos que tenha boas intenções em sua essência. Caso tenha planos ruins para a nossa raça e as outras menores que vivem entre as árvores, uma ilusão o faz acreditar que está seguindo enfrente até que se encontra na cidade de onde partiu. Somente o mais forte dos magos conseguiria penetrar o Véu de Alaryn e assim, desequilibrar o nosso reino com o pânico geral. Acredite, os elfos são extremamente religiosos e sem a proteção do Divino, efeitos catastróficos se alastrariam por toda a extensão de nossas terras.

— Soa tão frágil... o Reino de Malfrend, digo. Protegidos por uma barreira mágica e completamente vulneráveis caso ela caia. Vocês são um povo pacífico, não é?

— Sim. Nossas guerras com os humanos, no passado, foram puramente territoriais. Eles se infiltravam em nossas florestas sem escrúpulo algum, desmatando porções enormes de árvores milenares e caçando de forma impiedosa, sem pensar na vida que os animais possuem e principalmente, no futuro deles.

— De onde venho, dizem que os animais não pensam. — Frey comentou baixinho, envergonhado.

— É um erro comum dos humanos, e até mesmo dos anões. Vocês acham que os animais não possuem consciência simplesmente porque eles não são capazes de pronunciar palavras como vocês, mas eles não precisam disso para se comunicar. Contatamos as criaturas que vivem em Malfrend através do alaru'mo, e elas nos respondem mentalmente. Palavras curtas e objetivas, devido à sua habilidade cognitiva inferior à nossa. Os cervos e os grandes tigres patarrubra, por exemplo, são montarias que nenhuma outra raça seria capaz de domar, como fazem com outros animais. Nós apenas pedimos permissão, e caso queiram, eles nos deixam montá-los. Este é o tipo de relação que nós elfos temos com os animais.

— Impressionante. Quero ir à Malfrend, com certeza. Não posso morrer sem ver algo tão bonito e puro! — comentou o outro, animado.

— Não se preocupe! — Mark riu da preocupação de Frey. — Iremos lá quando tudo isso acab... — O elfo parou e franziu o cenho, fazendo sinal para que Frey se escondesse imediatamente. Os dois utilizaram a cobertura de uma árvore para analisar o que haviam acabado de encontrar: um vilarejo. "No meio da floresta?!", refletiu Mark, sentindo que tinha algo errado. Levou a mão ao punho da espada e sussurrou para o outro. — Fique atento.

Saiu do esconderijo e desatou a andar na direção do pequeno aglomerado de moradias que, como puderam perceber logo em seguida, era bem movimentado. Frey veio logo atrás e...

— Qual era o nome do vilarejo? — uma das crianças desconhecidas perguntou, e o Velho respirou fundo antes de responder.

— Qual... é... a... diferença...? — rosnou, entredentes.

— Ué, seu nome é Velho das Histórias?

— Você já me viu reclamando de ser chamado assim?

— Obviamente não, não nasci na Guerra do Fogo...

— Está insinuando que nasci há 1400 anos...?

— Até que você tem uma mente esperta.

— O vilarejo tem nome, agora. — O Velho retrucou, de súbito.

— Qual é? — a criança tinha um quê vitorioso em suas palavras.

— Vilarejo da Criança Desgraçada.

Todas as outras riram, mas a que originou o apelido permaneceu em um silêncio mortal, fuzilando o Velho com o olhar. Ele sorriu e voltou a contar a história para os pequenos.

E então, Frey veio logo atrás de Mark, seguindo-o de perto. Não era sensato ficar sozinho no Vilarejo da Criança Desgraçada. Eles haviam descoberto o nome porque havia uma pequena placa na rua principal (só havia uma) mostrando uma pessoa em pequena escala levando uma surra e chamando sua mãe. Os dois, claramente, desconfiaram do nome, mas havia outros tão estranhos quanto. Aquilo não era de todo uma surpresa.

Mesmo com a noite quase caindo, homens corriam para lá e para cá carregando lenha, ferramentas para agricultura, outros estavam sentados ao lado de suas bigornas enquanto martelavam espadas incandescentes, mas as mulheres eram muitas e geralmente novas. Algumas lavavam roupas nas janelas, outras só estavam lá para mandar beijos aos que passassem e uma menor quantidade delas entrava nas tavernas aos grupos, geralmente de três ou quatro.

Mark continuava desconfiado. Ele tinha este hábito, ficar desconfiado o tempo todo, mas ninguém podia culpá-lo. O pai morreu em uma caçada, então se o elfo tivesse o dobro de desconfiança que seu genitor, provavelmente sobreviveria mais. A mão permanecia no punho da espada, ato que resultou em alguns olhares atravessados na sua direção, mas não se importava. Humanos e elfos sempre se olharam com visível descontentamento, já estava acostumado com esse tipo de olhar.

— Vamos checar aquela taverna, podemos conseguir alguma informação lá, não? — Frey ofereceu a sugestão, e Mark finalmente entendeu que aquilo era uma taverna. Era uma pocilga indescritivelmente atarracada e nojenta. Havia uma enorme mancha de vômito na porta e a placa que possuía seu nome, ou assim pensava o elfo, estava caída no chão, enterrada parcialmente. As madeiras eram escuras e apodrecidas e o teto era baixo, pouco mais de dois metros. Um homem mais alto bateria a cabeça mil vezes lá dentro, ou talvez nem entrasse.

Empurraram a porta, evitando encostar na nojenta mancha. Mal haviam pisado lá dentro quando um cutelo voou contra eles. Mark deu um passo ao lado e Frey literalmente se jogou, caindo em cima de uma mesa. O taverneiro gritou:

— Sejam bem vindos à Taverna do Viajante Esquartejado!

— Recepção criativa. — Comentou o elfo, de cara feia. Os dedos haviam apertado ainda mais o punho da espada. O homem que havia lhes dado as "boas vindas" era gordo e trajava roupas de açougueiro, pouco comum para um dono de taverna. Seu avental era todo manchado de sangue e outras substâncias amareladas que não estava nem um pouco ansioso para descobrir o que era.

— Mark... — Começou Frey, tentando chamar a atenção do amigo.

— Calma aí, Frey, esse cara acabou de me jogar um cutelo e...

— Mark, cala a boca! — Sorria de orelha à orelha e caminhava apressadamente na direção da ruiva, que também vinha ao seu encontro. Frey e Anne se abraçaram calorosamente, e a garota ficou aconchegada em seus braços por longos segundos.

— Como...? — Mark estava boquiaberto com a coincidência. Ele havia errado, então? Anne não havia sido sequestrada magicamente e sim se perdido? Deve ter seguido a estrada, o que tinha mais chances de dar certo do que andar sozinha na floresta e então... chegado aqui. A ruiva lançou-lhe um olhar de "não podemos falar sobre isso aqui" e ele decidiu esperar.

Sentaram-se todos juntos em uma mesa mais ao fundo, onde a garota já estava sentada. Era de se impressionar que Anne tivesse entrado nesta taverna, mesmo que tivesse a mesma intenção que eles de pegar informações. A ruiva provavelmente já teria desistido só pelo fato da porta estar vomitada, isso era de conhecimento geral do grupo. Ignorando essa afirmação, Frey perguntou à ela.

— Tá tudo bem? — sorria bastante. Anne melhorara e muito o humor do rapaz, levando em conta como ele estava quando percorriam a estrada na floresta.

— Sim... — ela se encostou nele, apoiando a cabeça em seu ombro. Estava mais pálida do que já era anteriormente, talvez pelo nervosismo de ter se perdido de seus amigos. Os olhos eram um pouco mais avermelhados agora, revelando sinais de choro. — Pensei que não encontraria mais vocês...

— Não somos do tipo que abandonamos os outros. — Frey comentou, sorrindo. Um flash de memória envolvendo Damon indo embora com um cavalo percorreu sua mente. O sorriso desapareceu e um gosto amargo surgiu em sua boca. A ruiva notou a mudança de semblante.

— E com você? O que te aflige, homem-madeira?

— Não é nada. Só alguns problemas que ainda permanecem em aberto.

— Não vamos comer nada? — Mark perguntou. Devia estar com fome, ficara de vigia pela última vez no acampamento antes de irem procurar Pete, então provavelmente não comia desde o dia anterior.

— Aqui...? — perguntou o outro. A ideia de comer em um lugar tão nojento e sujo não lhe agradava nem um pouco, e como se fosse para alimentar a sua dúvida, um enorme rato cinzento passou correndo por baixo da mesa, apenas para ser atingido pelo cutelo do taverneiro. As entranhas saltaram longe, criando um filete rubro no chão. Metade do ratinho ficou onde estava, a outra caiu entre as cadeiras de uma mesa afastada.

— Não se preocupem! — o homem aproximou-se da mesa deles com uma enorme panela de guisado, aparentemente de cordeiro, devido à coloração e consistência dos pedaços de carne lá contidos. — O Guisado do Esquartejado é o melhor de Adria! Provem, e se vomitarem, eu lhes devolvo o dinheiro!

— Ainda temos que pagar por isso? — Frey parecia prestes a vomitar.

— Mas é claro! Não faço comida de graça, rapaz! — o taverneiro parecia irritado pela desconfiança de Frey em relação à sua comida. — Comam! — Um enorme sorriso brotou em seus lábios grossos e retorcidos, semelhantes à vermes-do-pântano. Frey teve mais vontade de vomitar ainda.

O elfo já comia avidamente antes do homem dizer-lhes para comer, e fez um sinal de positivo para os dois. Devia estar fantástico pela expressão facial dele. Anne foi a segunda a provar e também ergueu as sobrancelhas, surpresa. Era muito melhor do que parecia! Frey se viu encurralado e logo estava comendo também, no começo sem muita vontade, mas depois parecia um dos enormes kharnos das Terras do Falcão.

Mark, empanturrado, recostou-se na cadeira e colocou os pés em cima da mesa. Estava visivelmente satisfeito, com um sorriso preguiçoso no rosto. Seus longos cabelos loiro-prateados estavam balançando suavemente contra o chão.

— Sim, ele tinha cabelos enormes, como todos os elfos. — O velho respondeu à uma garotinha que sussurrara a pergunta para a amiga ao lado. Como eram crianças, sussurravam alto demais.

— Todos os elfos? — perguntou ela, agora em voz alta. Seus cabelos eram curtos, um pouco acima dos ombros. Talvez fosse devido à isso fosse a sua curiosidade. — Mesmo os homens?

— Sim, minha cara! Todos eles. Alguns elfos possuem longos cabelos prateados, outros nascem com belíssimas cabeleiras ruivas, como a da Anne! E poucos, muito raramente, vêm com cabelos negros como a noite. Estes, há muito tempo atrás, possuíam um dom especial que os diferenciava dos elfos normais, e por isso eram perigosos demais para andar por aí livremente.

— E o que aconteceu com eles? — estava boquiaberta, parecendo assustada com a hipótese de várias mortes só por causa da cor do cabelo.

— Estão na Corte de Malfrend. Lá, estão sob constante vigilância, mesmo que não explicitamente, por isso é mais fácil controlá-los. Nada de mortes, se foi isso que pensou!

— Ufa...! — parecia aliviada, e o Velho sorriu.

Frey também parecia estar bem satisfeito, visto que já estava fechando suavemente os olhos, mas tentando se manter acordado. Suas pálpebras pesavam como se tivessem vários quilos e ele não conseguia manter os olhos abertos. Abriu a boca em um enorme bocejo e desabou sobre a mesa, apoiando a cabeça nos braços. O taverneiro secava alguns pratos com um pano igualmente sujo, parecendo não reparar em seus clientes sonolentos.

Mark roncava na cadeira, do mesmo jeito que estava antes. Seus pés impediam que a cadeira tombasse para trás, já que ela estava inclinada em um ângulo perigoso. Suas mãos jaziam sobre o peito, os dedos cruzados. Anne tentou se levantar, apoiando-se no pilar mais próximo. Sua visão estava turva e mal conseguia andar. Trincou os dentes e se esforçou mais. O taverneiro agora sorria para ela, afiando o cutelo com uma pequena pedra de amolar.

— Desg... desgraçado... — Anne apontou para ele e seus cabelos pareceram esvoaçar por um momento, mesmo sem haver vento na taverna. Um archote fixo na parede se acendeu, queimando com uma chama extremamente forte e azul. A ruiva parecia furiosa, mas era fraca demais para lutar contra o sono.

Deu mais alguns passos trôpegos e caiu no chão, de joelhos. Levantou a mão contra o taverneiro, seus olhos exalando uma raiva imensa, mas nada aconteceu. Com todas as suas forças, tentou se arrastar em sua direção, mas sucumbiu à toxina e seus olhos se fecharam. Permaneceu caída no chão, Mark dormindo na cadeira e Frey com a cabeça sobre a mesa.

— O chefe vai ficar satisfeito. — O taverneiro pegou o cutelo e se aproximou deles, limpando as mãos no avental repleto de podridão. Lambeu os lábios antes de chegar em Anne, lubrificando os lábios pálidos e opacos, desprovidos de qualquer coloração viva.

***

Mark foi o primeiro a acordar. Fechou os olhos com força e abriu-os novamente, tentando enxergar as coisas mais claramente. Estava em uma clareira, provavelmente na floresta próxima ao vilarejo. Uma enorme fogueira jazia no centro do local e não conseguiu ver seus amigos, à princípio. Tentou se mover, mas não conseguiu. Grossas amarras o prendiam à um tronco fixado ao chão. Olhou ao seu redor mais uma vez, um pouco mais acima do ombro, e finalmente conseguiu enxergar Frey. Do outro lado, Anne.

— Frey! Acorde!

O irmão de Pete se mexeu apenas um pouco. Quando o elfo foi chamá-lo mais uma vez, recebeu um fortíssimo golpe no rosto. Era o taverneiro. Sua perna estava erguida, pronta para dar outro chute caso Mark tentasse falar. Cerrou os dentes e encarou-o com fúria mútua. Sua espada não estava mais na cintura, e não conseguiu encontrá-la na primeira olhada. Respirou fundo e ficou em silêncio.

Anne estava vendada e amordaçada, provavelmente devido à seus poderes incontroláveis e desencadeados pela raiva, pensou o elfo. Nem sinal de Frey acordar, mas ele continuava se mexendo, incomodado. Encheu os pulmões de ar para gritar mais uma vez, mesmo que levasse outro chute, mas algo o fez ficar subitamente quieto. Arregalou os olhos.

Uma enorme fila de crianças começou a sair da floresta, entrando na clareira uma atrás da outra. Estavam todas presas por grilhões, tendo seus tornozelos interligados uns com os outros. Arrastavam pesadas correntes e iam se aglomerando em um cantinho. Já contava mais de cinquenta crianças quando finalmente pararam de vir. Um homem encapuzado chegou ao local, andando com dificuldade. Se apoiava em um cajado de aparência extremamente peculiar, feito de alguma madeira que Mark não conhecia. Ela se retorcia até a ponta, onde formava duas estacas semelhantes à um "V" e seguravam magicamente uma pedra carmesim no meio, que flutuava em perfeito equilíbrio.

Era seguido diretamente por um pequeno destacamento de goblins, cerca de quinze. Carregavam consigo lanças precárias e zarabatanas mal feitas e eram mais horrendos do que se lembrava. A pele esverdeada era coberta por algum tipo de musgo, deixando-os com uma aparência extremamente asquerosa. Saliva escorria de suas bocas mal fechadas e os dentes amarelos ficavam expostos em um sorriso medonho. Os trapos que vestiam não podiam ser chamados de roupas, mas serviam para esconder coisas que Mark definitivamente não queria ver.

Mark olhou mais uma vez para as crianças e seu coração fez uma longa pausa. Tudo pareceu ficar mais lento quando enxergou aquela em específico, menor do que as outras e aparentemente mais abalada. Ali, entre várias pessoinhas menores e desamparadas, estava o pequeno Pete. Percebendo a surpresa do elfo, o taverneiro se aproximou e sussurrou para só ele escutar:

— Surpreso? Não fique ainda... o pior ainda tá por vir! — riu da força que Mark fazia para romper as amarras e continuou. — Tá com raiva? É seu filho? Não... Talvez um irmãozinho adotivo? — As veias do espadachim já estavam saltadas, mas as cordas sequer rangiam. — As cordas são encantadas, seu idiota! Não vai conseguir salvar seu pequeno garotinho...

— Não, talvez eu não consiga. Mas tem quem o faça. — Reuniu todo o seu fôlego e berrou: — FREY, LEVANTE-SE DAÍ AGORA! SEU IRMÃO ESTÁ ENTRE AQUELAS CRIANÇAS E EU ACREDITO QUE O DESTINO DELE PODE SER PIOR DO QUE A MORTE CASO NÃO FAÇAMOS NADA. SALVE-O, FREY. — O taverneiro o olhava, espantado. Ergueu a mão para lhe socar e o elfo gritou, mais alto do que antes. — SALVE-O!

Frey abriu os olhos. Olhou na direção das crianças e encontrou seu irmão, que o encarava de olhos arregalados. Frey não conseguiu falar, e forçou as amarras. Balançou a cabeça uma ou duas vezes, tentando desanuviar os pensamentos. Parecia que não estava em plena consciência. Alguma coisa queimava em seu peito, mas ele não se lembrava o que era. Por um breve momento, o cenário da clareira parecia distante. O mago que raptara as crianças sentiu isso e virou-se para o rapaz imediatamente.

Salve-o, Frey! Salve-o! — Mark gritava em sua mente, enquanto levava uma sequencia de golpes do taverneiro.

Pete o encarava, assustado. O irmão estava magro e parecia triste, com os olhinhos encovados e vermelhos de tanto chorar.

O colar de seu pai queimava em seu peito. Sim... Era isso que estava queimando. O colar de seu pai.

— Largue o meu irmão... AGORAAAAAAAAAAAAAAA! — o ar pareceu reverberar com o grito de Frey. As amarras se romperam subitamente e o rapaz se ergueu. O pingente em seu peito queimava como fogo, mas ele não era ferido. Era uma dor que o despertava de seus sentidos... "Despertar...". Sentiu alguma coisa borbulhando por suas veias e era mais do que sangue, e o mago sabia disso.

Era poder.

O taverneiro avançou em sua direção com o cutelo erguido, pronto para lhe cortar a cabeça, mas Frey o agarrou pelo pescoço e o jogou contra o chão. As pedras cederam e escorregaram para cima nos lados do taverneiro. O chão rachou sob seu corpo e ele arregalou os olhos, incapaz de respirar com tamanha dor. Frey não se importava se ele respirava ou não, seria até melhor se ele não o fizesse. Pisou com a mesma força de antes em seu peito e qualquer um na clareira podia ouvir o esterno do homem se rompendo, obrigando as costelas a cederem e perfurando seus pulmões.

O encapuzado apontou o cajado em sua direção e um raio alaranjado se desprendeu da pedra avermelhada, saltando diretamente contra o peito do rapaz. Foi lançado para longe, colidindo com uma árvore que caiu imediatamente com a pancada. Frey permaneceu parado por um momento, e novamente a visão de Pete encarando-o com medo despertou em sua mente. Salve-o, Frey!

Ergueu-se, olhando para o chão. Os cantos de sua visão estavam ficando vermelhos, o sangue bombeava com tanta força em seus olhos que eles pareciam prestes a explodir. Suas veias queimavam, mas isso não doía tanto quanto ver o irmão sofrendo. Agarrou a base da árvore que caíra no chão e flexionou os joelhos.

— Não pode ser... — Mark balbuciou, completamente desnorteado com o descontrole da força de Frey.

O rapaz ergueu o tronco. Nem mesmo dez homens seriam capazes de levantá-lo daquela maneira, mas ele o fazia como se segurasse um bastão. Arremessou-o na direção do mago, que criou um campo de força para repeli-lo. Não foi o suficiente. O campo de força se partiu, mas parou a maior parte do impacto. Pela primeira vez, suas feições ficaram visíveis. Possuía cabelos extremamente brancos e ralos, quase careca. Seu rosto era macilento e marcado pelo tempo, e também por cicatrizes horrendas. Uma delas atravessava o local onde seu olho direito deveria estar, mas havia apenas uma orbe vazia e sombria.

Ele se moveu de forma ágil para a idade, e novamente, apontou o cajado na direção de Frey. Fechou o seu único olho por um momento, recitando um encantamento com extrema velocidade. A pedra carmesim começou a brilhar de forma ameaçadora, incandescente. Frey caminhava pesadamente em sua direção, e isso forçou-o a apressar o encantamento. Um cheiro metálico invadiu o ar quando os céus rugiram e enviaram um raio, respondendo ao chamado do mago. Era dez vezes maior do que o primeiro e alaranjado enviado pelo homem, e parecia ser suficiente para destruir grandes criaturas.

Não foi isso que aconteceu.

Frey ergueu o braço e conduziu toda a carga elétrica com o seu próprio punho, usando este artifício para fortalecer o soco que acertou em seguida no rosto do mago. Ele caiu no chão na hora, e assim como com o taverneiro, o solo rachou sob tamanho impacto. O irmão de Pete não esperou o homem se recuperar, se é que isso aconteceria. Saltou e ficou de joelhos sobre seu corpo, socando-o com as duas mãos até que estivesse irreconhecível. Seu rosto era uma poça de sangue e massa encefálica destruída e o crânio sequer poderia ser visto como um osso. Cedera como se fosse, na verdade, apenas um pedaço de vidro.

— Frey! — Mark gritou, mas Frey não conseguia ouvir nada. Continuou socando o corpo desprovido de vida do mago, tendo os punhos já em carne viva. — FREY! — Sua mente pareceu clarear e ele finalmente olhou para trás. O elfo o encarava com uma expressão preocupada. — Já acabou! Chega!

Salve-o, Frey!. Olhou na direção do irmão, e todas as crianças estavam tremendamente assustadas. Algumas até mesmo choravam, com medo de que Frey as machucasse. O rapaz se aproximou, caminhando com dificuldade na direção de Pete. Agarrou os grilhões e quebrou-os facilmente.

Pete o abraçou. Era inacreditável. Ele não conseguia nem mesmo lembrar como havia feito tudo isso. Era como se houvesse outra pessoa em seu corpo. O colar já havia parado de queimá-lo, mas ainda sentia uma dor excruciante no braço atingido pelo raio. Seus olhos queimaram por um momento, e desta vez, não tinha nada a ver com o poder fluindo em seu corpo. Era apenas a emoção de ter seu irmão novamente por perto. Apertou o garoto franzino entre os braços e permaneceu, soluçando por um bom tempo.

Os irmãos estavam novamente juntos.


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Notas finais do capítulo

Mark usa Garnier.



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