A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 20
Histórias nas Cinzas


Notas iniciais do capítulo

"A chuva era constante no momento em que o dragão chegou. Algumas casas já pegavam fogo por causa dos raios atraídos pela criatura e pessoas se reuniam para apagar, sem sucesso."



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Damon sempre se sentia irritado quando passava na Baixada dos Miseráveis. O nome era bem específico e nada criativo, era um lugar para aqueles que tinham como posse única um estômago vazio, e talvez algumas pulgas. Esta era a parte escura de Balran, a parte que os nobres não enxergavam e se o fizessem, vomitariam ao ver os corpos jogados nos becos menos explícitos. Cachorros e crianças mortas lado à lado, sendo comidos por ratos e corvos como se aquilo fosse comum. Ingênuo era Damon, aquilo era comum ali.

Pelo canto dos olhos, viu um padeiro correndo atrás de um larápio que acabara de lhe roubar uma braçada de pães. Um deles caiu, mas ainda tinha três ou quatro presos pelo cotovelo junto à costela. O que o padeiro não previa é que os comparsas do garoto esvaziavam a sua cesta deixada para trás no momento em que perseguiu o chamariz. Quando se deu por conta, o prejuízo era total. Gritou de raiva e procurou os guardas. Damon sorriu, era aquele tipo de atitude que tinha na sua infância, pouco antes de seu irmão ser morto por Meryna. Se ele sabia quem era Meryna? De forma alguma, mas um nome já era suficiente para que tivesse um objetivo de vida.

— Merda! Corre, galera! — um garotinho gritou para seus companheiros quando ele entrou na viela onde casas precárias haviam sido construídas. Pra começar, era uma das poucas regiões habitáveis da Baixada dos Miseráveis, mas mesmo para ficar ali era necessário ter uma força de vontade inabalável.

— Calma aí, moleque! — ergueu a mão, mostrando que não estava armado. O garoto olhou para trás e parou, desconfiado.

— Que tu quer, então? — arqueou a sobrancelha e cruzou os braços, ainda segurando dois pães. Outro havia sido perdido?

Enfiou a mão nas vestes e o garoto tropeçou para trás, assustado com o movimento brusco, mas ele estava apenas pegando um pequeno saquinho de couro que estava amarrado com um cordão gasto. Puxou-o e abriu a boca do recipiente, agarrando um par de pratas e jogando-as para o ladrãozinho.

— Um par de pratas? — indagou Sally. — Essas moedas não tinham nome?

— Sim, elas tinham e ainda têm.

— E por que o senhor não disse o nome delas?

— Porque eu não me lembro, ora essa.

— Mas o senhor não é um contador de histórias?

— Não, eu sou o Comedor de Almas.

— Você não é o Comedor de Almas.

— Perceptível da sua parte.

— Se não lembra o nome das moedas, por que tá contando essa história pra gente?

— Basta! Se tivesse vivido tantas aventuras como eu, peste, contaria os feitos até o fim dos seus dias! Agora fique quieta e escute o resto, ou saia por aquela porta e não me encha mais a paciência!

— O que você quer? — perguntou o garoto, hesitante. — Não vou te dar nenhum pão, se é isso que você quer...

— Não, eu não quero seus pães. Quero informações, e aposto que você pode me ajudar perfeitamente. — Aproximou-se e pegou um pequeno pedaço de papel rasgado de um dos bolsos da capa de viagem. — Sabe me dizer quem é e onde encontrá-lo? — apontou para um dos nomes da lista, e a reação do garoto disse tudo.

— E-Eu... não, não sei de nada, toma tuas moedas e não me procura mais! — jogou as duas pratas de volta para Damon e tentou sair correndo, mas foi agarrado pela gola da camiseta que se parecia mais com um pano de chão. — Por favor, me deixa ir!

— Nem vem, você sabe de algo, desgraçadinho. — Puxou mais duas moedas do saquinho e colocou as quatro na mão do garoto. — Me fala o que sabe, eu não vou nem mencionar você quando eu encontrar ele.

— E você acha que precisa? Ele é o maioral por aqui, cara! Sentiria o cheiro de dedo-duro mesmo que eu fugisse pra Sarkon! — estava choramingando desesperadamente, e isso irritava Damon. — Olha, dá uma olhada perto do Sepulcro da Serpente! Tem umas coisas estranhas acontecendo por lá e talvez tu ache tua pista, eu não vou dizer mais nada! — se retorceu todo e saiu correndo do mercenário, com as quatro pratas bem apertadas entre os dedos.

Suspirou. Era difícil trabalhar com crianças, não podia torturá-las igual fazia com adultos e tinha que desembolsar algumas moedas para fazê-las dar algumas informações vagas. "Tudo bem, pelo menos agora eu tenho um lugar pra começar", refletiu. Assim como a busca pelo algoz de seu irmão, um nome bastava para que pudesse iniciar sua caçada.

***

— Já chegamos? — perguntou a Megera. Arrastava sua enorme espada pelo chão, deixando sulcos profundos na terra. Tinha uma expressão animada no rosto, enquanto a de Damon expressava a mais pura irritação.

— Quando chegarmos, você vai saber. — Respondeu, entredentes.

Azarado apenas assobiava, caminhando vagarosamente ao lado dos dois. Jogava uma perna bem para a frente antes de levar a outra, como se estivesse marchando. Trajava um conjunto gasto de vestes umbráticas, lustrosas e contrastantes com o sol que ia embora. Era o oposto da mulher, que não usava quase nenhuma roupa. Damon fazia uma relação óbvia ao fato de ser uma prostituta, mas mesmo assim não entendia como ela conseguia lutar naquelas condições, tão exposta; mesmo ele tinha um par de protetores no antebraço para bloquear espadas caso sua adaga falhasse.

— Mas tá muito longe? — era o conjunto da obra. O barulho irritante da espada arando a terra e as perguntas irritantes da dona. Tinha vontade de estrangulá-la, mas precisava dela.

— Não, não está. — Rosnou, mais uma vez.

Seus dedos estavam firmes dentro da capa de viagem, segurando a adaga de forma preocupada. O Sepulcro da Serpente não era um lugar popular pelo nome bonito e paisagem verdejante, mas sim a tumba de um dos primeiros dragões a atacarem o Continente depois da queda de Sarkon. A Serpente das Nuvens, era como o chamavam, apesar de não ter asas. Nem todos os dragões tinham essa característica; na verdade, este era o único.

Dragões eram caracterizados por sua aparência reptiliana e suas asas magníficas, capazes de criar rajadas de vento que levam telhados consigo. Este não tinha asas, novamente, mas dominava mais o céu do que os outros; era um dragão lendário. A Serpente das Nuvens, que rugia e obrigava os céus a fazerem o mesmo em resposta. Os trovões eram seus anunciadores, os furacões eram o seu presságio e a devastação era sua consequência. Até que decidiu atacar Balran, e a história mudou.

A maioria dos Grandes Heróis não estavam mais vivos depois do conflito de Sarkon, mas coincidentemente Balran era a cidade natal de um dos maiores: Aruk Ponta de Ferro, o Caçador de Dragões. Mil conheceram a ponta de sua lança como um benefício em batalha; um milhão conheceu como pesadelo. A breve citação de seu nome era o suficiente para fazer homens desertarem quando o primeiro aço se chocava. Era o poder de um nome, era o poder de um herói.

A chuva era constante no momento em que o dragão chegou. Algumas casas já pegavam fogo por causa dos raios atraídos pela criatura e pessoas se reuniam para apagar, sem sucesso. Os portões da cidade haviam sido levados à ruína com apenas um golpe do dragão; sua cauda rasgou o metal ao meio como se fosse papel, ou algo mais frágil ainda. As pedras se estilhaçaram e as grades caíram para trás, tortas e enegrecidas. Pessoas corriam por todos os lados, e a Serpente das Nuvens abocanhava o que via pela frente. Estava tendo uma refeição lucrativa quando um grito varou a noite em sua direção.

— Criatura vil e covarde, que se engrandece perante os menos capazes de lutar! — era o Herói de Balran, com uma expressão furiosa desenhada em seu rosto. Aliás, era aquele o momento que os desenhistas sempre recriavam: a Serpente das Nuvens e Aruk Ponta de Ferro, frente à frente. Ele tinha o hábito de raspar a cabeça, pois desenhava antes de cada batalha as suas marcas de guerra. Longas faixas azuis que cortavam seu rosto como uma camuflagem, mas sem exatamente ser uma.

Ergueu o braço, e o dragão avançou. Seu peito se iluminou com um brilho azulado, oscilante, como se estivesse se enchendo de algo. E realmente estava, mas Aruk Ponta de Ferro não temia a criatura. Dragões de fogo já haviam caído com a ponta de sua lança, e talvez não fosse diferente agora. Aruk gritou e a criatura rugiu em resposta, e seus destinos foram colocados em jogo.

Lança e raio se encontraram no ar. O metal do armamento canalizou a maior parte da eletricidade do dragão, mas o que restou do ataque cortou o ar em sua direção e o atingiu no peito de forma certeira, implacável. O herói, que deveria ter sido lançado aos ares, apenas arrastou os pés para trás, e o rosto se fechou ainda mais. Era sua vez, observou.

A lança, obviamente mais lenta que o raio, demorou um pouco mais a chegar, mas foi claramente mais devastadora que o mesmo. Atravessou as escamas celestes do dragão e explodiu toda a energia que ele canalizava dentro de seu peito lá dentro. Seu corpo se desintegrou a partir da própria força e o projétil do herói se cravou no chão atrás da besta. Aquela era a história do Sepulcro da Serpente, onde a lança de Aruk estava até hoje fincada na terra e diversas escamas se espalhavam pelo chão, opacas pela sujeira que as cobria.

E era lá que Damon estava agora. Em pé, frente à lança que ceifou a vida de um dos dragões mais devastadores da história de Mythril.

— É uma bela peça, não é? — comentou com os outros dois.

— Eu quero ela! — gritou a mulher e se aproximou para arrancá-la do chão com sua força descomunal. Quando seus dedos envolveram a haste, queimaram como se agarrassem o fogo.

— Não conhece a lenda, garota? — zombou o Azarado. — Apenas quem for digno do heroísmo pode arrancar essa lança daí e digamos que... bem, você não tá nem perto disso.

Emburrada, pegou sua espada do chão e continuou a seguir Damon, este que voltara a caminhar. O Azarado assobiava incessantemente uma canção que lembrava a que premeditou o ataque de Aileen. Não... não deve ser isso, pensou. Aquele homem não parecia ser parte de algo maior. Franziu o cenho e olhou ao seu redor, parando imediatamente. Fez sinal para que ambos ficassem em silêncio e farejou o ar; nada.

— Vamos... — desatou a andar rápido entre as árvores, abandonando parte do cuidado. Estava correndo contra o tempo neste momento, pois se o seu alvo escapasse, provavelmente demoraria semanas para achá-lo novamente. O Sepulcro da Serpente, a Floresta dos Caminhantes... é claro. Damon interligou as peças e deu um tapa na própria testa por não ter feito isto antes. Havia um mausoléu em uma clareira próxima do Sepulcro, e agora tinha certeza que era lá. Garoto, você me deu uma dica tão precisa que esse cara vai ter vontade de te cortar as pernas.

E não havia pensado errado. Lá estava o mausoléu, de portas arreganhadas. Um corvo crocitou à sua direita, mas não lhe deu atenção. Desembainhava sua adaga enquanto se aproximava da pequena construção. Deu uma olhada para o fim da longa e escura escadaria e sentiu o cheiro mórbido que enchia o ar lá em baixo. O Azarado parecia tranquilo, mas a Megera estava incomodada. Já esperava isso, não por ela ser uma mulher, mas por ser uma guerreira; eles sempre temiam forças sobrenaturais.

— Não gosto daqui... — murmurou ela, empunhando a espada para que não arrastasse mais no chão. Não queria fazer barulho.

— Tem medinho de fantasmas? — o outro zombou novamente. Aparentemente havia perdido o medo da garota que quase lhe levara três ou quatro costelas.

— Eu vou mostrar daqui a pouco o que VOCÊ deve temer... — rosnou para ele, firmando os dedos ao redor da empunhadura da lâmina.

Damon foi o primeiro a descer a escada, mas eles não estavam longe. Os passos ecoavam dentro dos corredores escuros e apertados do mausoléu, e isso irritava o mercenário. Odiava ecos, não tinha como evitá-los a não ser que andasse muito devagar e não tinha tempo pra isso. Quando chegou ao pé das escadas, não enxergava mais nada. Se olhasse para trás, veria um resquício da luz prateada que a lua lançava sobre eles, mas era tudo.

— Ah, sim, só um minuto! — Azarado estava mexendo em algo, mas parecia estar meio embaralhado com isso. Um barulho de dois objetos se esfregando um no outro, pequenas pancadas secas, faíscas e por fim uma chama estável se acendeu sobre um pequeno pedaço de madeira com três ou quatro camadas de corda embebidas em algum material incendiário na ponta.

— Você é út-... — Foi interrompido bruscamente por um golpe que veio da escuridão. A força do soco fora suficiente para lançá-lo na parede e criar uma rachadura onde atingiu.

— Mas que porra é essa?! — Azarado deixou a tocha cair e Megera lançou sua espada contra a criatura, que segurou a lâmina com a mão e chutou-lhe no estômago. Damon estava com a expressão mais furiosa que alguém teria o desprazer de conhecer.

— Você tá morto, desgraçado! — Segurou a adaga frente ao corpo e avançou contra seu adversário.

— Exatamente... Eu já estou morto. — Respondeu uma voz grave e desprovida de qualquer emoção a não ser o escárnio. Lançou-se para trás e esquivou do primeiro golpe do mercenário, tentando retribuir com mais um soco, mas sem sucesso. Damon se agachou e ergueu a adaga contra seu queixo, abrindo um talho em seu enorme tórax acinzentado. Quase não houve sangue e a carne não parecia em boas condições.

Ele não tava brincando!, concluiu. Lançou a adaga em sua direção e enquanto o enorme inimigo lançava para o lado no intuito de se esquivar, Damon saltou e acertou seu rosto com um chute que quebraria o pescoço de um humano normal, mas só o fez olhar para o lado. Ele avançou e agarrou sua cabeça, mas no momento em que estouraria seu crânio contra a parede, deixou de sentir o braço.

Estava caído no chão. Aquela massa de músculos acinzentada se desprendeu do corpo do enorme morto-vivo quando a lâmina colossal da Megera de Ferro ceifou sua ligação com o ombro. O inimigo olhou para ela com uma expressão de desentendimento e fúria mesclados, mas sua expressão sequer se comparava com a da garota. O ar pareceu estalar com a ira dos dois titãs à frente de Damon e só então ele entendeu o quão certeiro tinha sido em escolhê-la.

A Megera de Ferro era um monstro.


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