A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 11
Sombra e Sangue


Notas iniciais do capítulo

"Por Ulfain, que tipo de aberração é essa?! — a loira gritou, olhando para a fera. Então olhou para lâmina de sua espada e assustou-se. O sangue negro borbulhava e derretia lentamente a lâmina." Lillian, a Cavaleira.



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Crianças, lembram que cada um dos Sete teve um sonho profético? Houveram dois deles, que decidiram não acreditar nele. Se bem que aquele outro lá apenas não ligava para o sonho. Lillian era o nome dela, e tinha cabelos cor de trigo. E seu rosto, era de anjo. Num baile, num festival, em qualquer lugar, ela sempre seria a primeira a se destacar se usasse um de seus muitos vestidos belíssimos que mantém escondidos no guarda-roupa, acumulando mofo. Mas não os usa, prefere à armadura aos vestidos, e a espada à qualquer mão de nobre. Aliás, ela era sim o centro das atenções num lugar. Na guerra.

E não me venham vocês moleques falar que lugar de mulher é na cozinha. A Lillian era uma das Sete, e uma valiosa guerreira, tal qual todos os outros.

E agora que expliquei isso para vocês, meus pestinhas, escutem a história.

Diante do trono eu me curvo, pensou a loira, ajoelhada em frente à estátua de um soldado, com as duas mãos juntas em frente ao rosto. Carregando apenas o meu nome e minha vontade, aqueles eram os versos do Cavaleiro Andante. Todos os Cavaleiros eram obrigados à recita-los no dia em que ganhavam o título, mas Lillian repetia-os todos os dias, como um mantra. Para trás, abandono minhas dores e meus medos, e afrente vislumbro o inimigo destinado. Ela apertou mais forte as mãos, olhando fixa para a estátua. No meu caminho, não busco glória, busco a esperança de outra vitória. No meu caminho, não busco vingança, busco a justiça e a bonança. No meu caminho, não espero paz, espero a guerra, para trazer a paz. No total, foram-se dez minutos até ela terminar. E quando levantou, o Sol nem tinha nascido.

Era assim todos os dias, acordava tão cedo quanto a criadagem, para se preparar. Pois afinal, era uma mulher, e bem... Vocês sabem como elas são, demoram muito para se preparar. Então, ela acordava todos os dias antes do Sol nascer, prestava seu juramento perante a estátua de Enlus o Deus Cavaleiro, e ia banhar-se na terma, sozinha. E muito antes do Sol encostar no horizonte, ela já estava vestida em sua armadura, escondendo toda sua feminilidade. “Bobice”, ela dizia, sempre que as pouquíssimas amigas que possuía diziam que ela ficaria melhor usando um vestido que uma armadura. “Eu escolhi o caminho da espada. Essas... coisas de mulher, são pedras no meu caminho, que já deixei para trás há muito.” Resumidamente, ela havia renegado seu lado feminino, e isso bastava para qualquer outro soldado que compartilhava as fileiras de guerra com ela.

Naquele momento, a moça aguardava seu contingente de tropas aparecer. Era sempre assim naquela cidade; pela manhã havia os treinos, e de tarde as Vigílias. Assim chamavam as patrulhas que faziam na cidade, pois um soldado sempre estava esperando pelo inimigo, independentemente da situação. E enquanto esperava, ruminou sobre os sonhos que andou tendo nos últimos dias.

Eram todos desfocados e sem sentido, com exceção do primeiro. Não vou repetir o sonho, vocês já escutaram quando falei sobre o Frey na primeira vez. Os outros eram apenas cenas aleatórias, de uma cidade sendo destruída — que aliás, parecia muito Aileen, no norte —, uma ruiva sendo assassinada por um misterioso ser negro de olhos vermelhos, e até mesmo de uma criancinha loira cantando uma canção macabra. Mas nos últimos dois dias, havia visto frequentemente cenas de uma pessoa em particular. Não reconhecia o rosto dele, e muito menos sabia seu nome. Era um rapaz, e na maioria dos sonhos estava em pé, em meio à um mar de sangue e corpos, com o corpo castigado por flechas e cortes, gritando. No começo, achava que era dor ou medo que vinha junto de seu grito, mas logo percebeu que era fúria. Distinta fúria, tanta que até mesmo a morte se afastava para não virar alvo de seu ódio. Tanta raiva, ela pensou, de onde vem toda essa raiva? Não saberia responder, talvez se um dia o encontrasse, poderia perguntar. Ou talvez não perguntasse, pessoas preferem esquecer o passado.

Passados trinta minutos desde que começara a pensar sobre seus sonhos, surgiram seus recrutas. Cerca de cinquenta, vestidos com couraças, portando espadas sem gume para treino. Ótimo, pelo menos chegaram no horário certo.

— Andem seus vagabundos, em formação — gritou a loira. Os recrutas começaram a se mover, formando fileiras e colunas. O sol acabava de surgir no horizonte.

O treino terminou quando o sol tomou o centro do céu. Os aprendizes suavam e arfavam. Quando a loira decretou o término do treino, a maioria largou as espadas e deitou-se no chão. Ainda fracos, precisam de muito treino. Franziu o cenho, olhando na direção de um deles. Mantinha a posição de sentido, mesmo arfando e suando tanto quanto os outros. Ela sorriu, talvez nem todos. A loira aproximou-se dele.

— Recruta, qual é seu nome? — ela encarou o rapaz.

— Ringard, senhora Comandante. — O rapaz não encarou-a nos olhos.— Ringard — ela aquiesceu lentamente —, de que família você é Ringard?

O recruta dirigiu a atenção para a mulher, baixando o olhar em seguida. — Nenhuma, senhora Comandante. Sou filho de pastores — e lançou um sorriso humilde. Lillian respondeu com outro sorriso.

— Pastor Ringard, então. — Ela cruzou os braços atrás das costas. — Sabe quem foi Aruk Ponta de Ferro?

O rapaz sorriu, aquiescendo. — O maior de todos os Cavaleiros. Sozinho abateu Imael, nas Montanhas de Fogo. — Foi vez de Lillian sorrir e balançar a cabeça, para então dizer. — E ele era um pastor antes de ser soldado, assim como você. — Os olhos do rapaz brilharam, essa era uma das características da bela Lillian. Ela sabia quando um recruta tinha futuro, e sabia incentivá-lo a se esforçar. Aquele Ringard, no futuro, se tornou um dos mais habilidosos Cavaleiros da história, podia até fazer parte dos Sete. Mas isso é história para outro momento, vamos continuar.

Foi logo após o almoço, quando deu-se início as Vigílias, que o seguinte ocorreu. Lillian, guiando um contingente de quinze soldados, patrulhava pela rua principal, próxima aos portões de Balran. Esse é o nome da cidade. E foi um grito, que deu início à catástrofe. Era uma camponesa, que corria gritando, fugindo de alguma coisa. Essa coisa logo foi identificada pela loira, e não foi uma imagem muito feliz a que ela viu.

Parecia um lobo, mas era maior que um, e sua pelagem era toda negra e brilhante, como se fosse coberta por algum óleo. O negro confundia a imagem, tornando difícil distinguir pernas e patas, mas uma coisa era visível, o rosto do animal. Olhos vermelho-sangue brilhavam logo acima do focinho da fera, que mostrava as presas amareladas. Antes que a Cavaleira tivesse chance de intervir, a fera alcançou a camponesa e abocanhou sua perna. Quando ia dar um fim na vida dela, a espada de Lillian surgiu rasante e horizontal. Mal teve chance de dar um último latido, e o monstro estava caído sangrando no chão, sangrando negro.

— Por Ulfain, que tipo de aberração é essa?! — a loira gritou, olhando para a fera. Então olhou para lâmina de sua espada e assustou-se. O sangue negro borbulhava e derretia lentamente a lâmina. E outro grito foi dado.

Quando escutou o outro grito, Lillian entrou instantaneamente em posição de batalha. Uma vez que soube-se que havia inimigos ao redor, só precisava de um segundo para tornar-se uma com sua espada. E isso fazia todo o corpo dela virar numa arma mortal. A outra fera negra que surgiu invadindo aquela rua perseguindo um pequeno grupo de cortesãs não teve nem a chance de realizar uma investida, foi empalada pela lâmina da loira. Outro grito e outro lobo negro. A loira retirou a espada do corpo morto e girou, golpeando o outro animal. Eram três caídos no chão, e sua espada ficava cada vez mais leve. Quando olhou na direção de seus soldados, ela assustou-se. Cinco já tinham morrido, e os outros dez estavam feridos. Vários e vários lobos, iguais aos três que ela havia matado estavam caídos no chão. Quando?! Eu nem os ouvi chegando!, escutou um rosnado, e só teve tempo de virar-se e erguer a espada para se proteger da mordida do lobo que saltava em sua direção. Foi jogada ao chão, enquanto a fera tentava levar uma parte de seu pescoço.

— Besta maldita! Morra, morra! — ela gritou, arrancando uma adaga da bainha presa a cintura, perfurando a barriga do animal seguidas vezes. Sangue negro escorreu pela manopla dela e gotejou em seu peitoral. O animal abandonou a vida e foi jogado para o lado. — De onde eles estão vindo?! — ela gritou, erguendo-se.

Olhou para os lados mais uma vez e teve sua resposta. Da sombra de um prédio, um desses lobos negros surgiu, como se sempre estivesse ali. O que é isso?! Eles vêm das sombras?!, não tinha tempo para pensar. Dois lobos saltaram de uma sombra logo três metros adiante, e ela dançou com eles. O primeiro perdeu a cabeça, o segundo teve a garganta furada pelo que sobrava da adaga. A loira dirigiu o olhar para seus soldados, e só sobravam cinco deles, os outros dez estavam mortos, ou morrendo, no chão. Mas pelo menos três vezes aquele número, era a quantidade de lobos negros caídos no chão. Então, ouviu-se um enorme barulho, semelhante à um rosnado.

Detrás de uma estalagem de três andares, fazendo o chão tremer com seus passos, uma enorme criatura surgiu. O corpo era coberto de pelos negros. No lugar dos pés, tinha cascos também escuros, e as mãos tinham apenas quatro dedos. E o mais macabro, era que a cabeça era de touro, com chifres enormes e pontiagudos. E seus olhos, como de todas as outras feras ali, eram vermelho-sangue. Na mão, a besta carregava uma enorme espada negra com lâmina serrilhada de um só lado. Vendo aquela figura, a loira estremeceu. Fazia muito tempo que não sentia medo, muito tempo mesmo. Quero dizer, ela sentia medo, todos sentem medo. Sempre que lutava, sentia medo de seu oponente, mas isso era natural e necessário. É através do medo que nos mantemos vivos. O medo que ela estava sentindo naquela situação, era um medo absoluto, um sentimento total de perda. Sabia que contra uma criatura daquelas, não tinha chance alguma de vitória, e se esconder a faria trair seus juramentos de Cavaleiro. Não restava nada além de ficar parada, esperando seu fim. Os outros cinco soldados também perceberam isso, mas mesmo assim investiram contra a criatura. Sobrou pouco deles.

— Não tem como — ela falou, largando a espada —, não tem como vencer isso. Não tem como. — Então, teve sua atenção atraída.

Uma figura saiu da estalagem, sozinha. Estava coberta de negro, e mesmo distante, a loira conseguiu enxergar os olhos da pessoa. Era um olhar cansado e frio, que não passava sentimento nenhum além de vazio. Sentiu que para aquele homem, a morte podia chegar que não faria diferença. A besta também deve ter percebido isso, porque parou de se mover, com a mão apoiada no teto da estalagem, encarando-o. A figura pareceu encará-la de volta. Certamente, aquele monstro colossal sentia-se muito intrigado, talvez, até mesmo intimidado. Devido à seu tamanho e aparência, nunca havia encontrado criatura alguma menor que ela que não tentasse fugir. E estava logo ali adiante dela uma que recusava-se a correr para se salvar. Ou era muito ingênuo, ou aquele humano não tinha senso algum de perigo. Mas então, tanto o monstro quanto Lillian puderam sentir aquele frio.

O frio certamente não era um frio qualquer. Podia-se dizer que era dividido em três partes. A primeira, aconteceu quando a figura desembainhou lentamente uma espada com fio de um só lado. A arma era velha, e estava enferrujada, quebraria facilmente contra qualquer arma mais cuidada, e mesmo assim, a maneira com que aquela pessoa retirou a arma, calma e vagarosamente, provocou a primeira parte do frio.

A segunda parte certamente foi a alteração em seu olhar. Foi uma pequena mudança, quase imperceptível, só aqueles com muita experiência em batalhas poderiam notar aquela diferença. Aqueles olhos agora estavam lendo todo o ambiente, e pareciam ir além, lendo todo o caminho que aquela batalha tomaria. E aquela pequeníssima mudança em seu olhar provocou a segunda parte do frio.

A terceira parte, por sua vez, foi a mais distinta de todas elas. Segurando a espada numa mão, sem pose alguma de batalha, e com aqueles olhos que pareciam ler toda a batalha que se daria, a figura falou.

— Venha — era uma voz de homem, sem sentimento algum. E aquela única palavra foi suficiente para causar a última parte do frio.

E quando todas as três partes do frio foram feitas, unindo-se num único e prolongado frio, a besta rosnou e ergueu sua grande espada negra. O outro por sua vez, também moveu a espada.

Homem e fera atacaram ao mesmo tempo.


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