A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 10
Pesadelos


Notas iniciais do capítulo

" — Você — ela apontou ao bandido —, você! Você abusou de mim enquanto estava indefesa! — e agarrou a primeira coisa que encontrou, arremessando nele. Era uma maçã, antes que me perguntem. " Anne, a Ruiva.



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Pobre Anne, ela chorava encolhida num canto do quarto, tentando tapar os ouvidos, tentando se esconder do mundo. Nem percebeu quando a porta foi arrombada e Damon saltou para dentro do quarto, indo direto abraça-la. Não rejeitou-o como era de sua natureza, apenas respondeu o abraço e chorou em seu ombro, enquanto era erguida pelos braços do mercenário. A música pareceu aumentar, e a ruiva começou a gritar de medo. Memórias, flashes invadiam sua mente e iam embora. Talvez a música já tivesse parado, mas não parou para Anne. Ela continuou, aumentando, até o ponto em que Anne não conseguia aguentar mais. Então, desmaiou. E sonhou.

Era uma planície cinzenta, corpos se espalhavam pelo chão desértico, enquanto corvos bicavam o resto de carne que restava nos corpos mortos. Assustada, caminhou por entre os corpos e pássaros, tentando não ser encontrada. Por quem, ela não sabia.

Eis que num momento, ela olha para o lado e vê um corvo, e pelos deuses, ela podia jurar que ele olhava diretamente para ela. Olhos vermelho-sangue, que pareciam ler sua alma, ler seus medos. Olhou outro corvo, e encontrou os mesmos olhos a espiando. E assim faziam todos os corvos, encaravam ela, com aqueles olhos demoníacos. A ruiva decidiu que era hora de ela se apressar. Ele ia alcança-la se não corresse. Mas quem era Ele?

Ágil como um gato, a ruiva encontrou seu caminho pelo meio dos corpos mortos, sentindo nas costas o olhar dos corvos. Sentiu o sangue escorrer de seus pés e percebeu que estava descalça. Quando olhou para si mesma, viu que usava o seu antigo vestido de princesa, de um tempo que preferia esquecer. A cada passo, sentia dor, mas precisava continuar correndo. Cada passo era um suspiro de alívio que podia dar longe Dele. E então a dor foi substituída por medo. Escutou um grito agudo, que gelou sua alma. Logo atrás dela, viu distinguir-se no topo de uma colina uma fera negra, tal qual um lobo. Apressou o passo, precisava ser rápida. Viu corvos surgirem voando pelos seus lados, grasnando, se afastando do perigo iminente. Viu os corpos jogados no chão se arrastarem, tentando se esconder nas sombras, viu mais daquelas feras negras surgirem em outras colinas, em outras direções. E viu, lá adiante, um enorme castelo. Era seu castelo, ela tinha certeza disso.

As portas do castelo abriram com um estrondo, quando ela jogou o corpo contra elas. Caiu no chão frio e poeirento, tratando de ser rápida em se levantar e trancar as portas. A última coisa que viu antes das grandes portas se fecharem, foi a figura de um homem vestido em negro, bem distante, que parecia olha-la. E pelos vermes que hão de devorar minha carne quando não existir mais vida neste corpo, ele tinha olhos vermelhos como o dos corvos. As portas se fecharam, e tudo que restou foi o silêncio e o escuro. Não espirre sua peste, não estrague o clima! E com o silêncio e o escuro, voltou o medo. Tateou pelas paredes, até encontrar alguma tocha. Encontrou-a presa à um suporte, bem próximo da porta. “Preciso de fogo!”, e como mágica, a tocha acendeu. Surpresa, e ainda assim, agradecida, agarrou a tocha e tirou-a do suporte, iluminando o recinto.

Estava em ruínas, os pilares que margeavam o grande tapete vermelho, que agora estava devorado por traças, estavam caídos no chão. A ruiva foi caminhando, deixando pegadas de sangue para trás. A luz bruxuleante da tocha criava sombras, que mais pareciam monstros e demônios perversos, que arquitetavam suas tramas de sombra. Passo ante passo, foi aproximando-se do Trono Sol, o trono do rei, onde seu pai sentou-se um dia. E quando a luz clareou o trono, deu um grito de horror. Sentado no trono, com as vestes corroídas e uma coroa na cabeça, seu pai. As órbitas vazias, e a boca negra escancarada num grito de dor e medo. No peito, estava cravada uma lâmina negra, tão negra que parecia absorver a luz da tocha. A garota apressou-se em avançar até o trono, ajoelhar-se perante seu pai, chorando. Foi Ele o responsável por aquilo, Ele arrancou tudo dela, Ele devia pagar, Ele estava logo atrás do trono, olhando-a com aqueles olhos vermelho-sangue. Ela deu outro grito de horror, e Ele atravessou-a no peito.

— Não! — gritou Anne, acordando. As maçãs do rosto cobertas por lágrimas.

— Calma, foi só um pesadelo — falou uma voz amena em seu ouvido. A ruiva percebeu que estava deitada sobre alguém. Esse alguém era Damon, que a abraçava, usando sua capa de coberta para os dois.

Não foi nada bom para o ladino que ela percebesse isso, pois recebeu uma cabeçada na boca, enquanto ela se afastava dele, se arrastando pela carroça. Sim, eles estavam numa carroça. Agora, xiu. Com a mão no rosto, ele ficou encarando Anne com o cenho franzido. A ruiva encostou-se no outro lado da carroça e o encarou de volta.

— Você — ela apontou ao bandido —, você! Você abusou de mim enquanto estava indefesa! — e agarrou a primeira coisa que encontrou, arremessando nele. Era uma maçã, antes que me perguntem.

— Se acalme, sua louca! — gritou Damon, erguendo os braços em frente ao rosto, tentando defender as maçãs que ela arremessava. Quem foi o imbecil que deixou um suprimento de maçãs para ela jogar em mim?! — Eu não fiz coisa alguma?! Eu sou inocente! Guardas, eu sou inocente!

— Que está havendo aqui dentro? — disse uma voz, que Anne reconheceu ser de Frey. O rosto do pau para toda obra surgiu na abertura da tenda que cobria a carroça, olhando ali dentro. — Oh, você já acordou Anne.

— Pare de se preocupar com ela! Preocupe-se comigo e arranque essas maçãs dessa louca! — gritou Damon, que usava a capa para bloquear os frutos.

— Pessoal, a Anne acordou! — gritou Frey para fora da carroça, ignorando os pedidos de Damon. Não, ele não gostava dele, xiu!

Damon então resolveu agir. Jogou o corpo para frente, arremessando a capa sobre a ruiva. Ela, assustada, moveu os braços para a frente do rosto, tentando se proteger. Deu-se que no final da cena, quando Frey voltou a olhar para dentro da carroça, viu um Damon deitado sobre uma Anne, que quando foi proteger a cabeça com os braços, envolveu o pescoço de Damon. Os dois estavam quase se beijando. Você acha nojento agora moleque, espere crescer mais uns cinco anos. A capa, que errou de alvo, foi ficar pendurada num prego que fazia a junção entre tenda e carroça. O Construtor, se podemos chama-lo assim, olhou os dois um tanto envergonhado, e fingiu uma tosse seca.

— Volte depois, Frey — falou Damon, com um princípio de sorriso no rosto. — O destino está do meu lado, parece que quer que façamos as pazes.

Anne o respondeu com uma joelhada bem naquele lugar, em seguida empurrando-o para o lado. O ladino ficou se contorcendo, soltando palavrões, baixo o suficiente para que ela não escutasse. Hehehe, é foi engraçado mesmo. A ruiva sentou, e em seguida levantou, caminhando curvada até a saída. Frey ofereceu a mão para ajudá-la a descer, mas ela o rejeitou, pulando sozinha da carroça, ainda em movimento. Ao redor, centenas de pessoas se moviam numa enorme fila pela estrada. Montadas em cavalos, burros, levando carroças ou trochas. E logo ao lado, o Elfo, o Pequeno e o Construtor cavalgavam.

— Finalmente acordou — disse Pete, com receio, sem saber se ela estava ou não de bom humor. — Pensei que estivesse doente — baixou a cabeça —, pareceu que estava.

A ruiva sorriu para o menino, e ele retribuiu o sorriso, escondendo o rosto atrás das costas do irmão. Tratou então de sentar na beira da carroça, onde normalmente vão os viajantes e caroneiros. Olhou outra vez para a multidão.

— O que — olhou para baixo, tentando lembrar de algo. — O que aconteceu?

Foi Mark quem deu-lhe a resposta.

— Fomos atacados, a cidade no caso. Quando a música começou, tive uma visão. Sete demônios vestidos em corpos de humanos. Sete bestas que vieram para destruir tudo. Assim como fizeram em Sarkon — o Elfo franziu os lábios. — Quando a visão acabou com a... Bem, quando acabou, tive tempo suficiente para alertar a cidade. Pelo menos, não foi surpresa total quando eles surgiram. Muitos conseguiram escapar — indicou com o queixo a fila de pessoas que caminhavam, todas tristes e cabisbaixas. — Muitos ficaram para trás, para fazer parte das cinzas da cidade.

Anne aquiesceu vagarosamente, tentando relembrar de tudo aquilo. Não lembrava de nada, nem da música. Lembrava que em algum momento sentiu tanta dor que apagou, e que havia tido um pesadelo. Aquilo parecia tão real. Flashes do pesadelo vieram à sua mente. Destruição, ruínas, monstros, e um rosto. Um rosto negro com olhos vermelho-sangue. E ele havia atravessado seu peito com a mão, havia assassinado ela. E por algum motivo, achava que aquela não havia sido a primeira vez. Sentiu que já havia encontrado ele centenas e centenas de vezes, em outros sonhos, noutros pesadelos. E sempre terminava com a morte dela. Mas nunca foi tão real, eram apenas pesadelos! Levou a mão ao peito, onde havia sido ferida, e estremeceu. Por cima da roupa, sentiu algo em sua pele. Era como uma cicatriz, e realmente, havia ali uma cicatriz. Como se uma lâmina larga houvesse atravessado bem onde havia sido perfurada. Impossível, por favor, não! Ela voltou apressada para dentro da carroça. Damon estava sentado num canto, afiando uma adaga com uma pedra de amolar. Ele a olhou e ela gritou uma ordem.

— Para fora! Já! — e apontou para a saída da carroça. O ladino nem pensou duas vezes e saiu, de cabeça baixa.

A ruiva agarrou a capa, que continuava pendurada no prego e foi encostar-se num canto da carroça, onde ficou encolhida, com o corpo envolvido pela capa. De cabeça baixa, tremia de medo e engolia o choro.

— Nem os sonhos são seguros agora.


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