A Lenda dos Sete escrita por Lótus Brum, Martins de Souza


Capítulo 1
O Velho das Mil Histórias


Notas iniciais do capítulo

"— Calado, seu pulguento miserável! — Rugiu o velho para o pivete." O Contador de Histórias



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A noite havia chegado no pequeno vilarejo de Salgueiro Assombrado. Era assim conhecido porque quando o inverno se aproximava, trazia consigo os ventos gélidos do norte sombrio, fazendo com que os buracos nas árvores produzissem sons assustadoramente semelhantes aos supostos ruídos fantasmagóricos que as crianças juram ter escutado em suas casas durante a noite, quando a luz já não protege mais ninguém.

E foi em uma dessas noites que estas mesmas crianças se reuniram à porta do Cervo Roubado, o posto de caça clandestina do local, mas também, e principalmente, considerado o bar mais divertido pelos adultos e claro, pelos jovens que lá iam para escutar as histórias do velho. Era, de certa forma, engraçado o fato de que ninguém sabia seu nome verdadeiro. Só o chamavam de ancião, vovô, velho, sábio, entre muitos outros, mas ele não parecia se importar.

O pequeno vilarejo estava em sua melhor hora agora. Era de se estranhar, mas a circulação do local começava à noite. Mulheres bonitas com roupas curtas ou largas demais para mostrarem o que certamente não deveriam, crianças correndo de um lado para o outro fingindo-se de cavaleiros, bárbaros, caçadores, tudo o que dava na telha. As tochas já estavam acesas, ao passo que os guardas tomavam seus postos nas pequenas, mas bem feitas, torres de vigilância.

O cheiro doce do ensopado de javali escapava pelas janelas do Cervo Roubado, atraindo tantos clientes que o taverneiro sorria pelo canto direito da boca, com os bolsos pesados de moedas cinzentas e opacas, tortas pelo uso em excesso e mal armazenamento. A principal atração não havia começado, por isso, só se via adultos por todo o lado, ocupando as mesas sujas e empenadas do local.

A sineta da porta tilintou quando o Velho atravessou o saguão até o seu tão amado cantinho. Sua banqueta já estava lá, como de praxe, pois ele era parte da renda do taverneiro, recebendo o devido tratamento para que se sentisse confortável e voltasse sempre. A tigela de ensopado que chegou até ele fora a primeira a ser servida no estabelecimento, esta era outra das exigências dele: "O primeiro prato sempre será meu!".

O taverneiro o achava egoísta, de certa forma, mas gostava do velhinho. Ele usava uma túnica marrom, de couro. Suas calças eram do mesmo material, mas de tão desgastadas, dava-se para confundir com um tecido qualquer. Seus sapatos quase não possuíam sola e a bengala mal feita estava caída ao seu lado. Minhas costas doem, infeliz!, era sua principal frase, dita tantas vezes ao dia que seus ouvintes até repetiam com ele quando se preparava para soltá-la.

Comia seu ensopado tranquilamente, e a sineta não parava de fazer aquele ruído irritante e agudo. A entrada e saída de pessoas era mais acentuada agora que o idoso chegara, pois sua fiel platéia já lotava os grandes bancos de carvalho do local. O velho, obviamente, notava isso, mas ignorava para fingir-se surpreso quando encarasse-os e dessa aquela mesma risada rouca de sempre.

— O que esse velhote tem de tão especial? — perguntou um dos garotos mais velhos, sentado mais ao fundo da taverna. Não era nada atlético, possuindo um corpanzil mais avantajado que o dos outros devido à sua barriga arredondada e extensa. Possuía cabelos cor de areia, curtos e arrepiados sobre sua testa espinhenta Um rapazinho franzino o olhou da cabeça aos pés com um olhar torto, mas sem coragem para dizer o que pretendia, tornou a olhar para o contador de histórias.

— Pergunte à essa sua pança, moleque insolente! — todos do recinto riram do gorducho. Ele se levantou às pressas e caminhou em direção à porta, totalmente corado, mas tropeçou nos degraus da escadaria e as gargalhadas retornaram, com mais força. — Heh, não consegue nem ver os próprios pés. — Reuniu o catarro de sua garganta e cuspiu para o lado.

— Senhor... — Uma mocinha mais próxima do velho ergueu a mão, trêmula. Seus traços finos e estatura mais do que baixa demonstravam que a garota não possuía sequer seus dez anos. — Você pode contar a parte da Cavaleira e da Ruiva?! — seus olhos brilharam, esperançosos, mas a risada rouca e incômoda do contador de histórias acabou com seu anseio rapidamente.

— Heh! Você vai esperar, como os outros, pequena donzela. A parte das duas chegará, como sempre! Talvez daqui a uma hora, talvez daqui a três, mas você escutará esse pedaço da história, entendido?! — fez um sinal de positivo com o seu polegar áspero e enrugado, castigado pelo tempo. Olhou para o taverneiro e acenou com a cabeça, mostrando que estava quase na hora de começar.

— Começa logo! — disse um rapazinho apressado. Havia um sorriso completamente impaciente em seu rosto, a empolgação impedindo-o de parar quieto na cadeira. Seus cabelos longos o fariam ser confundido com uma garota se não fosse reto demais para ser uma.

— Calado, seu pulguento miserável! — rugiu o velho contra o pivete. Afagou a barba por um instante, pensativo. Era completamente grisalha, alguns pelos mais brancos do que outros, mas nada muito diferenciado. — Começo quando eu quiser, entendeu ou quer que eu lhe dê um safanão?!

O garoto abaixou a cabeça, sorrindo ainda mais do que antes. O velho sempre dava a mesma resposta, e eles combinavam entre si para fazerem sempre a mesma provocação. Abafaram as risadinhas irônicas por um momento, até que perceberam que a tão esperada hora havia chegado. O silêncio reinou no local, e todos os olhinhos se voltaram para um único lugar: o velho.

As crianças se acomodaram no banco, ajeitando suas vestes e aproximando-se para ouvir melhor. A atmosfera da taverna mudou por completo quando o idoso pigarreou, pronto para começar a história, mas quando todos achavam que sua narrativa teria início, ele ergueu a mão na direção do taverneiro e bradou:

— Traga-me uma cerveja, homem!

Todos riram, de tão inesperado o pedido da bebida. O taverneiro, com um enorme sorriso no rosto, abriu uma porta atrás do balcão e se demorou lá por cerca de um minuto. Retornou com uma enorme caneca de madeira, transbordando um líquido amarelo espumoso, um pouco molhada do lado de fora por possivelmente ter derrubado uma pequena parcela do líquido.

O Velho e o Taverneiro se olharam por um breve momento. Seus olhos se cruzaram de forma suave, e só os dois perceberam o quão significativo era aquilo. O contador de histórias estava prestes a despejar o passado na direção daquelas crianças curiosas, a contar uma grande e épica aventura. Não era uma história qualquer, jamais seria.

Era a história daqueles que lutaram para proteger pessoas que sequer conheciam, mas mesmo assim não receberam a glória que mereciam. A história daqueles que deixaram suas casas e suas famílias para trás, sabendo que o seu destino era combater o desconhecido que assolava o extremo norte do continente. A história daqueles que deram tudo de si para que os outros se sentissem seguros, mesmo quando eles não estavam.

Sim, o velho contaria A Lenda dos Sete.


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