Youth escrita por Nikki Meyers


Capítulo 5
Clemence


Notas iniciais do capítulo

Um bilhão de desculpas pela longa demora. Eu estava meio perdida, muitas provas, trabalhos e acabei entrando em alguns projetos novos - não que eu me arrependa disso, não me arrependo. Porém, agora planejo postar tudo certinho ♥ Muitíssimo obrigado por terem me esperado, dedico esse capítulo à todos vocês. ♥



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Nicholas ganhou um sorriso e algumas decepções quando entrou em mais uma pacata tarde pela janela de seu quarto. Ele encontrou apenas a mesma garota em sua cama com seu distante sorriso acrômico, a voz de Roger Waters ocoava no aposento proveniente do disco tocado em seu último volume no pequeno aparelho, enquanto Clemence Vandenbossche inspirava a fumaça que hora ou outra deixaria seus pequenos pulmões sadios e adolescentes completamente vazados.  Seus olhos enferrujados perdiam-se no pequeno quarto, nublados pelo seu desuso, ao passo em que seus cabelos pretos embaraçados esparravam-se pela cama do garoto, sem demonstrar o menor sinal de que havia constatado a presença de seu ocupante.

Sua pele branca como alabastro se encontrava coberta, a salvo de qualquer raio de sol intrometido que se dispusesse a penetrar na forte cortina de fumaça que havia obtido ao redor de si mesma, seus lábios se separavam hora ou outra para sussurrar um de seus pequenos segredos à escuridão em que sempre se encontrou, enquanto a melodia se punha em direção a seu ápice.

O estrépito som de um pigarro forçado fora a única coisa capaz de retirá-la da parte mais profunda de sua mente, onde, a cada dia, se encontrava ainda mais perdida em suas nódoas mentais. Um genuíno sorriso havia florescido em seus lábios antes de esvair-se novamente, trazendo-a amiúda para sua profunda monotonia. As pétalas de uma rosa murcha descansavam em sua orelha, transportando-lhe a mente a comparação com uma princesa élfica que há éons havia perdido seu império, sua boca lembrava-lhe uma fonte que apenas se abriria para os mais doces dos chamados, sempre fora uma mulher de poucas palavras. Incessantemente estivera presa em suas próprias aventuras para se intrometer-se nas dos demais.

― O que foi que ele fez?

Os pequenos olhos escuros haviam se voltado para o menino, e quem quer que os olhasse naquele célere momento permaneceria com eles em sua mente, lembrando-os a cada fatídico momento em que fechasse suas pálpebras policromáticas em sua tristeza demasiadamente tangível. Mergulhando em seus sonhos e desejos mais profundos, estaria entrando em apenas mais um de seus pesadelos incessantes com coisas que sempre estiveram distantes demais para se tocar. Eles veriam uma garota com sua cabeça nas nuvens e os pés firmemente fincados no chão, mas que a qualquer momento poderia alçar vôo rumo ao seu improvável destino.

― O que ele sempre faz.

O que ele sempre fazia para esquecê-la a cada manhã em que voltava ao seu pequeno e precioso mundo, isolando-o de seus profundos delírios. Todd sempre fizera o que todos o mandavam fazer, o que a própria garota sempre o ordenava em cada inevitável manhã. Ele a esquecia, porém, sem nunca o fazer de fato.

— Talvez eu lamente por ele.

A menina o respondeu com um simples dar de ombros. Sinto em lhe dizer que ela havia sido a primeira, a primeira a render-se a escuridão de sua própria mente, a desistir de simular a grande peça que todos chamaram de vida, a primeira a sair de cena antes mesmo de seu primeiro ato. Suas cortinas vermelhas de veludo haviam se fechado para um público em prantos, a expectação de algo para encerrar sua lépida vida. Ninguém nunca soube seu verdadeiro motivo, apenas as duras palavras escritas em seus preciosos momentos de consciência. Ela era apenas uma menina perdida no meio de seus Beatles e seus Stones. Completamente atordoada como as letras das suas músicas que raramente conseguia entender enquanto tagarelava sobre Monroe e delirava com as aventuras que algum dia viveria.  

— Todd é um grande babaca.

Todavia, ela sempre fora muito mais do que os outros sequer puderem imaginar. Ela fora as estrelas cadentes que sempre insistiam em cair, as grandes musas a espera de seus vultosos dramas. Contudo, nunca chegou a receber uma salva de palmas em seu desvirtuoso final. Nem mesmo os tomates atirados em seu rosto em momentos de completo horror. Havia sempre recebido a pior das sentenças que qualquer ser humano já chegou a imaginar, eram indiferentes quanto a isso. Eles sempre lhe foram indiferentes em todos os aspectos. Ninguém nunca chegou a se importar. Não realmente, sempre se dispunham a decepcioná-la quando mais precisava.

No final, restou apenas ela. Os monstros que sempre viveram em sua mente à espreita de uma chance em que pudessem dominá-la haviam se libertado. Um sorriso ensaiado e uma bicicleta de policial a esperá-la em sua porta foram às únicas coisas que a nortearam rumo ao seu pernicioso destino. Nicholas Grayson sempre fora seu único porto ao meio de toda sua coleção de decepções, eles haviam se ajudado apesar de tudo. Ele sempre fora algo a mais para ela, algo que nunca chegou a possuir realmente.

— Ou talvez nem mesmo o tenha notado.

Sempre foram mais do que meras palavras escritas de maneira pressurosa para alguém que talvez nunca o leia de fato. Em algum lugar do tempo eles ainda existem, olvidados e resguardados nas memórias longínquas de pessoas que não mais habitam nosso mundo; eu fui idôneo ao reconhecê-las antes de seus lutuosos desfechos. Sempre caminhei ao lado dos grandes heróis e a favor de grandes homens, porém sempre fui eu que constantemente lutei contra os grandes tiranos. Minhas promessas existiram apenas para serem quebradas. Contudo, nunca ao menos fantasiei sobre infringi-la com a garota do sorriso camuflado.

Eu estivera fadado a odiá-las na mesma proporção em que as amei. Afinal, nunca cheguei a entendê-las de fato. Milhares de cores em um papel aerófano, predestinadas a terminarem suas lúgubres vidas do modo como mais lhes agradar. As pessoas, digo. Todavia, chame-as do que quiser.

Porém há uma coisa em que posso confiar minha existência, as mentiras contadas no momento em que Clemence Vandenbossche retirou-se do ambiente onde havia abandonado para sempre seus sentimentos. Ela havia apenas jogado sua pequena mochila em seus ombros e acenado para o garoto entre as cortinas escuras antes de pular a janela do quarto, correr por entre as moitas que hora ou outra revelavam pequenas latinhas de cerveja - ou pelo menos o que restara delas -, antes de subir em sua bicicleta de modelo policial e partir-se da vista da pessoa que mais a amou durante toda a sua vida.  Nenhuma palavra fora trocada, nada em que pudesse apoiar-se em seus momentos finais, nos raros momentos em que duas pessoas sabiam que se amavam, mas nunca conseguiriam coragem o suficiente para dizer as três palavras que arruinariam seus futuros nada promissores para todo sempre. Afinal, todos sabiam que Clemence não possuiria um, até mesmo ela.

Apesar de tudo, gostaria de tê-las ditos, sei que sim. Gostaria de ter se voltado para o dono de seu mundo e gritado todas as verdades que já haviam se perdido em seu silêncio, ela gostaria de ter ficado.

Todavia, ninguém nunca possuiu o dom de predizer o futuro, nem mesmo eu. Nunca souberam realmente seus momentos finais, ninguém nunca soube. Os beijos molhados antes de soldados abandonarem suas amadas, caminhando à mercê de suas próprias sortes enquanto bombas choviam como estrelas pelo céu, os tiros disparados em um inimigo da qual ao menos sabiasse o nome.

Eu sinto muito.

— Não mesmo.

Porém, ninguém nunca chegou a sentir nada. Apenas mais um vazio onde antes deveria ter lhe sobrado coisa alguma, um único cuspe para lançar sobre as faces da morte, os detalhes que insistiam em se rebelar contra seus fastidiosos destinos.

Ela se encontrava ao sul de lugar nenhum quando bateu as portas da casa que sempre chamara de sua. Pronomes possessivos encontravam-se a rodar-lhe a mente com mais frequência do que deveriam nos últimos momentos.

As portas de madeira destrancadas de sua casa mostravam a bagunça que conhecia tão bem, o pequeno menino parecia não ter se movido um só dedo do lugar onde estivera quando Clemence o havia abandonado horas mais cedo fitando a televisão com olhos cansados enquanto os gritos ameaçavam chegar a uma altura alarmante das portas fechadas no final do corredor.

— Mamãe estava traindo papai.

A recém-chegada desviou seu olhar para o menino que a estivera observando com um par de pequenos olhos esbugalhados, um boné firmemente colocado em sua cabeça como se lhe houvessem puxado suas abas para baixo, uma coleção de action figures poderia ser observada aos seus pés, o tempo passado no fliperama da rua de cima enquanto jogava Galaga com alguns amigos pôde ser facilmente notado em seus olhos de sono.   Algumas raras vezes desejava que fosse tão ignorante quanto aparentava ser, porém Jenkis Vandessboche sempre tivera outros planos. Estava se saindo extremamente bem em não de encaixar em moldes, um triângulo que alguma criança gorducha havia, pelo incentivo de sua au pair de que conseguiria, encaixar em um quadrado. Que crianças tolas, se ele ao menos o fosse também.

—Você deveria voltar ao Poe’s, tá tudo bem — suas palavras soaram tão falsas quanto o sorriso que se seguiu a elas, referindo-se ao lugar onde sempre encontrava-se perto da palavra bem, ou ao menos o mais próximo que conseguiria em sua conturbada infância.  Talvez se houvessem nascido em outra época, em outra situação, talvez o fliperama ainda permanecesse em um passado não tão distante para ela.

O caos já estava armado há muito tempo, todos haviam reparado nesse incontestável fato. Até mesmo os vizinhos chegaram a comentar o destino das crianças Vandessboche nos últimos dias. A nada respeitável senhora Vandessboche passara de seus próprios limites ao aparecer completamente bêbada há duas noites atrás, os gritos poderiam ser ouvidos claramente do lado oposto da rua enquanto Peter  Vandessboche partiu-se com o velho carro da família até um apartamento no centro. Acompanhado ocasionalmente pelos comentários nada amistosos vindos por detrás de cortinas onde vizinhos intromeditos os observavam, os mesmos vizinhos que o ouviram voltar com um buquê de rosas e algumas dezenas de pedidos de desculpas na noite seguinte.

Um círculo vicioso que se repetia há meses. E continuaria a se repetir. De novo, de novo e de novo.

— Eles vão se separar. — as lágrimas vazaram momentaneamente dos olhos entreabertos da criança, ainda presos nas sombras de suas últimas gargalhada. As palavras nunca ditas antes eram palpáveis no ar pelos irmãos, porém, apenas o fato de tê-las pronunciado lhes deixava ainda mais próximas do seu real significado.  

— Tá tudo bem.

Ninguém nunca acreditou nisso, nem mesmo eu. Os seres humanos não deixavam se enganar mais facilmente do que antes, pelo menos nesse quesito. A situação era excessivamente incômoda, chegando a um patamar quase cômico.

— Desculpe. — os olhos do menino abaixaram momentaneamente para o carpete manchado de molho de tomate enquanto os braços da irmã envolviam-lhe o pescoço e as lágrimas eram sufocadas em uma jaqueta de aviador grande demais para seu pequeno corpo. — Você sabe que é verdade.

— Talvez não.

— Ouvi a Sra. Craddock dizendo que não dá uma semana.

— Nem tudo o que as pessoas dizem é verdade, Cod.

Clemence nunca chegou a pensar que fossem aguentar sequer mais cinco dias juntos, contudo, ninguém precisava saber.

Talvez fosse melhor assim.

— Minta mais.

Apenas talvez aquilo fosse melhor do que os gritos que reverbavam pela casa a cada manhã, os objetos indo de encontro ao chão ou as janelas onde vizinhos curiosos esticavam seus pescoços incrivelmente longos para observá-los ocasionalmente.

Não sabia mais o que gostava em relação aos pais, até mesmo a vida vinha pregando peças em Clemence. Vestígios fantasmagóricos do que fora outrora, tempos que não mais retornariam. E isso bastava pra fazer-lhe falta.

Ela então seguraria a mão do seu último aliado e o levaria por entre portas e mais portas para um lugar longe o bastante dos gritos, onde se refugiaram no silêncio quebrado apenas pelos passos apressados dos insetos ao lado de fora. Algumas vezes sonhara  fugir com o irmão, mas em algum recôndito escondido de sua mente sabia que nunca chegaria a realizar aqui de fato. Eles não teriam muita chance, nem ao menos possuíam dinheiro algum.

Em uma ideia desesperada já houvera cogitado pedir dinheiro emprestado para as pessoas que chamara de amigos. Nicholas poderia tê-la ajudado, até mesmo os gêmeos Humphrey se lhe tivessem dado a oportunidade. Eles eram a calma no centro de seu caos, as fagulhas a espirarem do fogo que ardia em seu âmago. Ela sabia que os destruiria, os destruiria como um arquiteto que não havia gostado de seu trabalho, destruiria o garotinho com as bochechas vermelhas e as mãos gorduchas a abraçar-lhe naquele momento. Oh, como ela os destruiria.

Todavia, sempre fora apenas um fantasma, um resquício do que fora há anos, não mais seria a menina deitada na grama ao observar a autoestrada respirar enquanto formulava um de seus jogos, que logo depois estariam rabiscados nas mesas de mais crianças da oitava série que sonhavam sempre serem algo a mais. Eu poderia passar dias, se não meses descrevendo os desejos profundos demais para aquela pobre alma mortal, quantos sonhos afogados tivera no calor de um momento, a luz a bailar por detrás de olhos serenos a espera de que alguma coisa a faça especial.

No final tudo aquilo possuiu um ar quase cômico, durante toda a vida estive a espera de grandes tragédias, grandes corações partidos e seus amores que nunca morreriam. Clemence foi apenas a primeira, um evento que havia desencadeado todos os outros. Se é que posso chamá-la assim, mas o que são pessoas senão eventos? Algumas delas pulsam como luzes multicoloridas, com quadros de pop art pendurados em suas paredes ao som de uma música ultrapassada enquanto se balançam rapidamente ao som de algo perdido na década de sessenta e pensam sobre quem quer que os queira ao fazer amor com seus egos. Clemence pulsava sobre tons de azul profundo, quase tão profundos quanto o próprio oceano, enquanto em algum lugar de sua mente estava a colher margaridas em um jardim morto há muito, sempre insistira em tentar novamente, de novo, de novo e de novo.

Isso é cruel.

Sei que sim, apesar de não mais certeza nenhuma sobre coisa alguma. Talvez ela ainda esteja presa em um universo completamente dela, talvez todos eles estejam, todos aqueles que nem ao menos nos disseram adeus.

Entretanto, no momento em que seus dois braços penderam-se ao redor do garotinho, ela soube. Oh, deus, ela sempre soube. Talvez apenas precisasse de alguns minutos de uma covardia insana ou o completo oposto. As pessoas sempre discordaram quanto a isso, um meio termo é o que digo, não que alguém um dia o tenha ouvido sair de minha incólume boca. Todos os sonhos que seguramos tão firmemente pareceram evaporar-se como fumaça.

 

Não que tenha pensado coisa alguma, ao passo em que o sol sumir ao horizonte e a coloração amarelada de que sempre gostara lhe parecia trazer um ominoso entardecer. Os ouvidos zumbiam com o som dos gritos que aos poucos foram transformadas em pequenos sussuros e pouco a pouco lhe informavam que o quarto encontrava-se a meia-luz, até o zumbido de uma televisão velha vindo do andar de cima. Ninguém havia notado a pequena figura com um sobretudo vermelho ao pegar sua bicicleta e seguir para o lugar que sempre estivera fadada a encontrar. Comprimentara três ou quatro rostos conhecidos pelo caminho, enquanto mergulhava pouco a pouco nas ruas pouco iluminadas.

De certo modo posso afirmar que sempre estivera ao seu lado naqueles momentos calmos antes de algo demasiado trágico acontecer, até subir onde o tráfico já era perigosamente intenso e deixar seus pés descalços correrrem livremente por entre os carros até o ponto onde sempre ficara acima de seu único amigo. As águas turvas do Hudson chocavam-se perigosamente, quase como uma ameça a cidade que ali existia, como se partilhasse com a menina um segredo guardado apenas para ele. Alguns carros haviam parado ao notar a menina jogar-se sobre a cerca de segurança em direção as águas em que apenas encontraria calmaria.

No entando no momento em que as águas turvas enchiam seus pulmões adolescentes purificando-os como a garota nunca o havia sentido, os moradores desafortunados da cidade sabiam que já era tarde demais.  

As água faziam seus olhos arderem na escuridão até que finalmente suas pálpebras ainda com vestígios da maquiagem policromática fecharam-se pela última vez ao meio das águas macilentas do Hudson enquanto seu corpo sem vida era apontado pela pequena multidão que pouco a pouco ajuntavasse na ponte.

Deixe-o te engolir.


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Notas finais do capítulo

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