A menina que falava com os pássaros escrita por O Viajante


Capítulo 12
Sonho de uma manhã de outono — Final


Notas iniciais do capítulo

Eu sinto que devo um capítulo só de esclarecimentos a todos e todas que me acompanharam até aqui. Sei que isso não se faz, e que eu saí para comprar café e só voltei dois anos depois...
A todos que me acompanham desde o início dos capítulos, meu mais sincero perdão. Todavia, se alguém me perguntar se eu me arrependo... não. Esse tempo foi necessário para que a história amadurecesse, e eu realmente gostei do produto final. Espero que vocês também gostem. Estou respondendo a todos os comentários pendentes, já respondi alguns hoje e irei responder o resto até a noite. Então não deixem de comentar por eu não ter respondido algum antigo. Eu vou responder, juro. Quero agradecer à Mel pela recomendação maravilhosa, e por ter me ajudado a voltar para a escrita. Queria mencionar uma leitora que comentou e excluiu: Rainha do Baile, se você ainda está aí, saiba que eu lhe respondi. E se for aparecer, identifique-se!
Boa leitura.



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A madrugada foi gasta terminando os preparativos da guerra. Os animais e criaturas mais velozes, ficaram encarregados de alertarem aos aliados da princesa que tudo começaria logo. As estratégias já haviam sido revisadas muitas vezes, durante muito tempo. A floresta estava cheia de criaturas, de todos os tipos possíveis que uma garotinha criativa poderia imaginar. Uma enorme cobra com pés de gafanhoto serpenteava entre os outros, feliz por poder participar daquilo.

 

Na pequena cabana improvisada, a gloriosa e destemida princesa Jena tentava em vão, colocar seu sapatinho de prata, parte de sua armadura. Havia caído tantas vezes, que decidiu não levantar mais. Por fim, emburrada, jogou os dois sapatos de prata para longe. Depois seu elmo, que enroscou em seu cabelo como se fosse um macaco. Bufou, as bochechas coradas, e grunhiu de raiva. Jogou as tornozeleiras, também. Ombreiras, e até a espada.

— Não, a espada não.

Correu até a espada, a pegando de volta. Princesa Jena não estava pensando na guerra. Na verdade, ela nem sabia direito o que era uma guerra. Mas se todos estavam se preparando, e esperando por ela, então ela participaria. Afinal, ela sabia que era uma garotinha muito corajosa, e como todos haviam – finalmente – percebido isso, então ela se encheu de confiança. Claro que eles não precisavam saber daquele dia em que ela correu de um gato, ou quando ficou assustada com um ursinho de pelúcia que havia aparecido misteriosamente em seu quarto, em uma caixa de presente, no dia do seu aniversário.

É sério, que tipo de urso aparecia do nada bem no dia do seu aniversário? Um espião, obviamente! Queria espionar os presentes que ela ganharia naquele dia, e roubar todos. Ora! Que urso mais irritante! Seus dentes rangiam de raiva só de pensar nele.

— Princesa Jena?

Jenny se virou abrupta, na direção da voz. — Sim, lobo?

— Estamos prontos, ainda não vestiu sua armadura?

— Eu… bem… hã… acho que… – os olhos dela iam de um lado para o outro, tentando inventar uma desculpa aceitável o suficiente para ludibriar o guerreiro, e assim fazê-lo não notar que ela apenas não tinha conseguido vestir a armadura, que era pesada e parecia bem quente. — Não achei ela digna de minha realeza realmente real, na realidade.

O exército de coalas, castores, ovelhas, leões, pernilongos, aves com cauda de dragão, papagaios com bico de jacaré e tudo mais que Jenny poderia ter criado estava ali. Amontoados entre as árvores longas, de troncos lisos e tão altos que batiam nas estrelas. Logo Jena apareceu, usando uma armadura improvisada, feita de casca de árvores, e um elmo meio torto, que lhe escorregava pela cabeça, e deixava um olho meio coberto.

Aquilo sim era uma armadura digna de sua realeza realmente real, na realidade.

— Estão todos prontos? – Jena gritou em bom tom, um tom que nunca pensou que tinha, enquanto girava sua espada em todas as direções, refletindo os raios solares que escapavam entre as folhas, naquela manhã tão importante.

O coro feroz e corajoso de… quantos animais haviam ali? Onze? Quarenta mil? Mais de quinze? Eram tantos que a cabeça dela dava um nó, mas ela sabia que eram muitos. Certo, continuando, o coro feroz e corajoso de muitos animais respondeu em uma única voz, algo capaz de estremecer a floresta. E fez com que Jena quase fosse se esconder atrás do macaco, assustada. Ela os encarou, os olhos arregalados, e mais uma vez ergueu a espada, totalmente trêmula.

— Então vamos à batalha!

E gritando como uma berserker, saiu cortando caminho entre a multidão, que se afastava à medida que ela corria. Quando passou por todos, o corujo a chamou, e ela se virou. Por que estavam tirando a atenção dela em um momento tão importante? Mexeu o elmo de casca de árvore digno de sua realeza realmente real, na realidade, até que se encaixasse nos dois olhos, e encarou a ave.

— Que foi? Não estamos indo estripar uns valentões?

Jennifer realmente não sabia o que significava estripar, mas ela havia ouvido esse termo em um dos filmes que seu pai assistia. Um desses filmes muito barulhentos, que ela não tinha interesse nenhum. Só sabia que tinha armas e essas coisas de guerra. E quando o termo “estripar uns valentões” foi dito, seu pai riu. Riu com gosto, e se ajeitou no sofá, vidrado na TV. Então sendo assim, estripar uns valentões poderia ser dito em momentos de conflitos, para que todos rissem e ficassem vidrados nela. Porquê estripar valentões significava algo engraçado e interessante, e com certeza levaria o seu exército e ela à vitória. Mas ela era muito esperta, e quando chegasse na metade do caminho, descobriria o que significava aquela palavra. Ou então debocharia de alguém dizendo “Haha, será que todos aqui sabem o que significa estripar uns valentões? Haha, diga você, lobo. Como vai estripar um valentão? Diga para mim, quero ver se sabe!”. Sim, Jena era muito esperta, e por isso era uma princesa, que usava uma armadura de casca de árvore, digna de sua realeza realmente real, na realidade.

— O castelo é para o outro lado, princesa Jena.

Jena arregalou os olhos, realmente sem saber o que fazer naquele momento.

— Ah, claro… eu estava apenas testando se vocês realmente sabiam para onde estavam indo. Estou orgulhosa de vocês!

E ergueu a espada mais uma vez, pois isso era um ato que sempre faziam antes das guerras, e depois de terminarem seus discursos. Desses filmes ela realmente gostava, e sempre se imaginou uma guerreira. Então correu o máximo que suas pequenas pernas poderiam permitir, novamente cortando caminho entre a multidão de criaturas, e dessa vez, ela tinha uma certeza no peito.

Iria estripar valentões.

E estava indo na direção certa.

 

A garotinha tamborilava os pequenos dedos impacientemente no braço do trono, que por mais desproporcional que pudesse ser com o tamanho de quem o ocupava, era do tamanho adulto. O semblante infantil e carrancudo, a expressão de desgosto e rancor. Expressão essa que fez todo o reino de Normalidade estremecer. Seria esse um tipo de mau presságio? Um prenúncio de morte? De guerra? Os céus escureceriam? Mas antes de tentar responder as perguntas do fim, precisamos solucionar as perguntas do começo. Quem era Normalidade?

O nome por si só já entregava grande parte da resolução, mas não era só isso. Qualquer um que conhecesse Princesa Jena, e então conhecesse Normalidade – cuja aparência era a mesma de Jena – notaria a diferença de forma mais profunda. Veja bem, essa guerra tem vários lados. Tem o lado dos servos fieis de Jena, o lado de Normalidade, e o lado dos servos fieis de Normalidade. O lado de Jena não será colocado aqui, pois ela passou muito tempo ausente. No entanto, as nuances da presença dela podem ser sentidas em todo esse mundo sonhado – que não se torna menos real por isso, não é?

Não é?

Sendo três lados, seria possível alguém dizer que isso é um triângulo, mas esse sonho não é do Dylan, deixem as coisas exatas para ele. Sendo três lados, Jena provavelmente diria que isso é uma serpente de três cabeças. O povo de Jena é o povo que veio primeiro. Aquele que começou a ser formado a partir do momento que a bebê Jennifer conseguiu distinguir humanos de animais, e ter uma noção ínfima sobre o que é vida. Aquela pessoa se mexe, respira e fala, então ela está viva. Mas na semana passada, Jennifer jurava que tinha visto uma pedra que se mexia, andava e falava. Então obviamente ela também estava viva.

O povo de Jena nasceu de formas e cores, e ideias envoltas em pele. Não conheciam limites artísticos, ou de formas de expressão. Se eles sentiam, eles demonstravam. Expressavam. Nunca precisaram de nada além dos Pássaros do Limite. Eles eram como… a guarda real. Regulavam a quantidade de fantasia que saía e a quantidade de realidade que entrava.

A partir de agora que a situação começa a ficar violenta. Começou com pesadelos. Pesadelos onde as cores eram guardadas em potes, formas incorpóreas eram expulsas e formas geométricas eram colocadas em todos os lugares. Um ou outro vivente de Lancefew sofria com esses espantos noturnos, depois vários. E então: todos. Naquele momento era certo que não se preocuparam. Afinal, a princesa apareceria logo. Mas ela não apareceu. Havia aparecido pouco tempo antes, para batalhar outra guerra. Mas foi uma guerra distante, sem forma, e até banal. Memórias perdidas da mesma forma que esquecemos os nossos primeiros anos. O castelo surgiu ao longe, no início como uma miragem. Uma dessas distorções que vemos quando a estrada está muito quente. Depois foi ganhando solidez. Boatos de que vez ou outra era possível ver uma fogueira ou tocha acesa em meio à escuridão. Então vieram aqueles… aqueles trabalhadores. Silenciosos. Viviam trabalhando dia e noite, dia e noite.

Uma equipe de exploração composta por cobras, macacos e camaleões. Alguns grilos queriam ir, todavia a intenção era não fazer barulho. De qualquer forma, não obtiveram muitas informações. Na metade do caminho decidiram voltar. Não conseguiram continuar, não tiveram coragem de adentrar aquele território tão inexpressivo e padronizado.

Depois disso, começaram a aparecer animais que não falavam, nem raciocinavam como os animais de Jena. Eram animais comuns, mas todos seguiam para aquele castelo horripilante. Em seguida vieram as placas. Elas diziam: Não corra. Não morra. Não fume. Elas cortavam o horizonte como facas de dois gumes. Não apenas isso, cada uma vinha com pequenas listas, comportamentos a serem seguidos para quem quisesse entrar no Reino de Normalidade.

E tudo isso foi uma profunda violência. Foi dito que havia sido um episódio violento, mas não especificado qual tipo. Se alguém conseguiu compreender essa situação, e não se sentiu violado ou violada de alguma forma, então os moradores de Lancefew só têm uma coisa a dizer: sentimos muito, a Normalidade já dominou seu ser.

O lado dos servos fieis de Normalidade mostra que eles foram feitos para aquilo. Para odiar o que lhe dissessem que era para ser odiado, amar o que fosse dito para ser amado e repudiar tudo que não lembrasse o reflexo deles no espelho. Esse lado acaba aqui.

Então temos Normalidade. Aquela garotinha de bochechas macias e que se comporta muito bem em reuniões com adultos. Aquela que reflete o desejo projetado dos adultos que guardam em seu interior, as frustrações da infância. Essas pessoas que não respeitam os filhos como pessoas vivas, mas como objetos que estão ali para realizar os sonhos de seus genitores. Não como alguém que um dia desenvolverá personalidade, sonhos, desejos e todas essas coisas que teoricamente fazem parte da natureza humana.

Coisas essas que se tornam apenas teorias quando não temos mobilidade suficiente. Seja médico. Seja engenheiro. Feche essa boca. Porquê sim e ponto final. Cresça. Homens brincam com soldados, mulheres brincam com cozinha de plástico. Sério, sinceramente, o que se passa na mente de uma pessoa que compra vassoura e pá para uma criança dizendo que aquilo é diversão? Não faça isso. Adore aquilo. Se comporte assim. Vista isso. Não olhe aquela coisa. Não seja você, seja meus sonhos que eu não consegui realizar e acredito cegamente que você irá amar fazer o que eu quero que você faça, pois era isso que eu amaria fazer e no fundo ainda quero fazer.

Meu Deus, você não está vendo que eu sei o que é melhor para você? Eu sou uma pessoa adulta, eu sei mais que você. Largue esse lápis, largue esses pincéis. Pare de achar que alguém comprará isso. Eu tenho livros, eu vou te dar todos esses livros. Você vai ler, e vai amar tanto quanto eu amo. Verá que tudo que eu sempre quis foi o melhor. Se olhe no espelho, você é uma cópia de mim. Não está entendendo, querida criancinha? Você é o último livro da nossa trilogia. Você tem o dever de concluir nossa história. Seu nome não é Harold. Não é Rachel, nem John, muito menos Isabelle. Seu nome é…

Receptáculo de Frustrações e Desejos e Projeções de Seu Pai e Sua Mãe Que Sabem o Que é Melhor Para Você Pois Seu Talento Não é Nada Mais Que Uma Esperança Boba e o Mundo é Cruel e Você Precisa de Dinheiro e Aceitação e Você é a Pessoa Escolhida Para Ser Essa Ponte Entre Praticidade e Imagem Impecável.

Normalidade havia nascido. A princípio ela veio como um zumbido. Um zumbido igual aqueles que às vezes são representados em histórias em quadrinhos como um emaranhando de linhas sem sentido nos balões de fala. Flutuando como uma nuvem negra, ou uma névoa densa. Algo que sufoca, e tudo que envolve se torna cinza momentaneamente. Ela veio nas primeiras ordens. Nas primeiras obrigações que uma garotinha poderia ter. Veio na censura de certos assuntos e na cobrança de um comportamento mais adequado ao que os outros pais esperavam dos filhos dos vizinhos. Pois os próprios filhos deles eram assim, comportados e impecáveis!

Mas dizer que Normalidade havia nascido apenas disso seria inferiorizá-la. Ela era uma criação do cosmo, e deveria ser admirada como tal. Temos buracos negros que devoram galáxias. Temos estrelas que ao morrerem levam seus vizinhos juntos, como aqueles senhores da antiguidade que ao falecerem tinham seus servos enterrados juntos. Temos também aquele meteoro que extinguiu os dinossauros. Embora Jenny achasse que eles apenas construíram uma nave super hiper ultra mega gigante e foram para outro planeta.

Todos esses monstros cósmicos vieram, fizeram seu estrago e então sumiram. Impunes, inculpáveis. Acasos da natureza. O fato era que Normalidade também era isso. Um acaso da natureza. Uma série de jogadas de poker do acaso. Não era como um Royal Straight Flush; é daqui que vêm os buracos negros. Talvez também não fosse um Straight Flush; daqui que vêm os tsunamis. Mas talvez fosse um Straight. É, isso mesmo. O acaso fez essa jogada na cabeça da pobre Jenny.

A garotinha que vocês-sabem-como-se-chama não nasceu da mente de Jenny. Ela já existia há muito tempo. Talvez desde o início de tudo. Uma poeira cósmica, uma mancha flutuadora e indiferente. Algo sem real personalidade, mas adquiria uma sempre que precisava dar lições em alguém que simplesmente não conseguia ser normal.

Essa entidade já havia tido muitos rostos. Muitas personalidades e também muitas idades. Era como água, que se adaptava a tudo. E essa era sua única função. Normalizar tudo. Nascera assim e morreria assim. Seria ela tão vilã quanto o meteoro dizimador de dinossauros? Tão culpada quanto aquele buraco negro que devorou um sistema planetário rico em vida e tecnologia que nunca será descoberto pois seus moradores esticaram como spaghetti e nesse momento estão na barriga desse monstro cósmico? Não, Normalidade não é uma vilã.

Mas para aqueles que estão do lado de Jenny, ela é sim.

Uma ameaça a tudo que é livre, a tudo que pode ser expressado. Não que o universo tivesse um manual de instruções ou que os seres que criaram o universo tivessem deixado um guia de como se comportar. Então algumas coisas eram relativizadas. Para alguns, Normalidade é a heroína. Para outros, uma escória. Deveras, todos esses rótulos eram jogados sobre ela e então caíam no vazio. Como alguém que tenta jogar um laço para cavalos no pescoço do Leviatã e falha miseravelmente.


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Notas finais do capítulo

Algumas observações finais. Primeiro: como viram, esse não é o final do sonho. Eu queria mudar isso no título, mas Jenny deu um tapa na minha mão quando fiz isso. E vocês sabem... melhor não deixar ela contrariada. Segundo: eu senti que esse capítulo terminou de uma forma meio abrupta, mas depois de passar um dia pensando sobre, vi que não tinha nada mais a ser colocado. Isso se deve ao fato de Normalidade ter o escrito, e ela não queria colocar mais palavras. Obrigado por ler.