A menina que falava com os pássaros escrita por O Viajante


Capítulo 1
Mais um punhado de areia


Notas iniciais do capítulo

Essa é a minha primeira, e provavelmente a única história sobre romance. Nada contra, mas meu gênero é bem diferente, podendo haver romance, mas não como foco principal. Estava com um esboço guardado há uns dois anos, e decidi desenterrar, porque foi uma das primeiras histórias que escrevi. Acho que as primeiras histórias, mesmo que sejam ruins, sempre nos marcam de alguma forma. Ao menos isso é comigo. De qualquer forma, agora eu vejo que o tempo só fez bem. Minhas histórias são como vinho. Quanto mais ficarem guardadas, mais saborosas serão. Dito isso, espero que tenham uma boa leitura.



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A chuva caía fina sobre a cidade de Nova York naquele fim de tarde fatídico. O céu estava cinza e ninguém sorria, pelo menos assim acontecia aos olhos castanhos de Dylan. Incrível como tudo o que somos, ou tudo o que podemos ser, e ainda mais, tudo aquilo que já conquistamos internamente, pode se quebrar em dezenas de cacos, como um vidro frágil, quando atingido por algo bruto. Alguma coisa que interfere no curso natural de nossas vidinhas cheias de planos e sonhos. Como a morte de alguém que decidimos dividir nossas camas pelo resto da vida. Ou a morte do nosso primeiro animal de estimação. Um punhado de areia que se foi com o vento e não volta mais. Porque sim, tudo é tão efêmero quanto um punhado de areia. Aquela mesma areia que se esvai na ampulheta. Os carros andavam e se engarrafavam, buzinavam e aceleravam. Pessoas ocupadas demais para entender o significado de tudo isso. Alheias aos detalhes. Alheias aos sentimentos, e a tudo aquilo que tornava elas mais humanas. Talvez seja por isso que elas eram tão parecidas com máquinas. Alguns pedestres e seus guarda-chuvas negros e grandes, com seus casacos enormes corriam pelas calçadas tentando se molhar o mínimo possível. Sorrisos apareciam entre os tecidos, outras escondiam seus rostos nas roupas. Detalhes. Apenas detalhes.

O céu estava cinza, a cidade estava cinza, os sorrisos estavam cinzas; mas nada disso penetrava a camada de silêncio que se ergueu em volta do desconsolado rapaz. Roupas negras, olhos inchados e vermelhos devido ao choro contínuo. Ele se encontrava no cemitério, junto a tantas outras pessoas que lamentavam a morte dela. Família, colegas de trabalho, admiradores. Todos de preto, todos em silêncio enquanto o caixão descia. Aquele silêncio havia virado uma endecha. Um hino fúnebre. Alguns usavam guarda-chuvas escuros, outros se escondiam debaixo de árvores. O padre citava versículos da bíblia enquanto jogavam terra sobre o caixão, e ele ficava lá. Sem movimentos, sem guarda chuva, sem o calor dos braços dela, sem a voz doce que tanto o acalmara em dias turbulentos. Ela se foi, repetia mentalmente para si mesmo, como uma espécie de mantra, ou de automutilação psicológica. A ficha não havia caído. A chuva penetrava cada vez mais em suas roupas que há muito estavam encharcadas.

O frio o consumia, atingia seus ossos, mas não era um frio comum, causado pelo clima e sim o frio de sua alma. A dor latejava no seu peito cada vez que um punhado de areia era depositado sobre ela. Queria chorar mais, mas já chorara tanto que suas lágrimas secaram em meio aos soluços e o alívio da dor já não surtia mais efeito. Nenhum movimento seria suficiente, por mais que se deitasse numa cama e se contorcesse, então ficaria ali naquela posição como uma tortura, vendo sua noiva ser enterrada lentamente. Aquele corpo esguio e delicado que ele já abraçara tantas vezes com o mesmo cuidado que se manuseia uma rosa, estava sendo en-ter-ra-do.

Ele mantinha os braços cruzados o tempo todo, tentando aquecer suas mãos, mas era em vão. De qualquer forma não se importava, seu corpo estava dormente, e ele desejava lá no íntimo que fosse ele embaixo da terra. Sentiu que alguém pousou a mão no seu ombro, era Harry, colega de trabalho de Jenny.

— Foi uma perda muito grande para todos nós... Você não está sozinho. – disse o homem calvo e de nariz fino. Dylan por sua vez não o respondeu, não tinha o que responder, estava visível no rosto dele qual seria a resposta para qualquer pergunta ou comentário.

Aos poucos as pessoas iam se despedindo dele e indo embora, todavia, ele continuava lá, observando onde agora havia apenas uma lápide.

Logo não havia mais ninguém ali, e ele nem fazia ideia de quanto tempo ficou ali, vazio. A chuva cessara e sua única companhia agora era o vento, o mesmo vento gélido que invadia as catacumbas saqueadas e causava assombrosos silvos. Aos poucos percebeu que não adiantava mais permanecer no cemitério. Ela não abraçaria ele por trás, como ela costumava fazer, e diria que estava tudo bem. Ela se foi, não vai mais levantar. Seus olhos doíam, precisava descansar. A realidade dura da vida voltou a gritar em sua mente. Ele ia continuar vivendo. Ao mover suas pernas sentiu como se elas estivessem congeladas e presas no chão, que carregaram todo o peso do universo nas costas como um grande titã condenado. Andou a passos pesados até a calçada fora do cemitério. Gastaria uma hora caminhando se não pegasse um táxi mas... para quê ter pressa? Não havia ninguém o esperando em casa, não era?

A noite caíra e suas pernas doíam. Já não mais distinguia o rosto das pessoas. Elas passavam sorrindo e conversando, mas os sons chegavam desfocados ao ouvido dele, que só fitava o chão. Chegou na frente do prédio onde morava e deu uma última olhada nas pessoas que por ali transitavam, talvez na falsa esperança de algum rosto perdido ser o dela que viria sorrindo até ele, o beijaria e diria que tudo não passou de um terrível engano. Por Deus, ele precisava disso. Nunca pensou que pudesse doer tanto, ou que ficaria tão abalado. Sempre teve a imagem dos dois, bem idosos, morrendo juntos.

Andou pela recepção, e os que estavam ali nada disseram. Entrou no elevador e apertou o botão de seu andar, indo se sentar no canto, abraçando os joelhos. Seu rosto voltava a tomar uma certa seriedade. Uma pequena conformação. Inspirou fundo, e aquilo fez com que a ferida interior ainda se mostrasse aberta. Uma dor sutil e desesperadora. Por quê devia ser tão difícil? Por quê não dava para voltar atrás? Por quê a vida tinha que ser uma tela cuja tinta não podia ser apagada? Seus olhos doíam, será que valeria a pena chorar mais? Ele olhou para os números acima da porta, um brilhando de cada vez e à medida que a luz se aproximava do seu andar, sentindo que aquilo era uma lenta contagem regressiva, pois teria que encarar os fantasmas daquele apartamento vazio que ainda tinha o cheiro doce dela e mais uma vez, o peito ardeu.

O elevador se abriu, e o nó em sua garganta apertou. Esperou alguns segundos antes de tentar se mover. Soltou um gemido e com algum esforço se levantou. Definitivamente ele estava um lixo. De cabeça baixa, caminhou pelo corredor vazio. As luzes brancas no teto davam um certo ar de frieza para o local.

Andou até a porta do apartamento e ficou parado por alguns instantes com as chaves na mão. Deu um suspiro e abriu a entrada do seu inferno pessoal. Adentrou o local e assim que fechou a porta, sentiu que fora engolido pela mais profunda solidão assim como uma pessoa é engolida por uma onda impetuosa, e então seus pensamentos rodaram. Queria tomar um banho quente, mas não tinha disposição para tal luxo. Era como se ele quisesse sentir as dores da punição, como se ele tivesse culpa. Atravessou a grande sala e entrou em um corredor que dava para o quarto. Maldita hora em que o fizera. Quadros dispostos nas paredes dos corredores com fotos dela sorriam para ele. Memórias vivas, e ele ouvia novamente o que dissera para ela em cada momento antes da foto. “Amor, sorria” “Porque eu quero seu sorriso na minha estante pra ter um dia melhor”. Tudo aquilo ia e vinha com impetuosidade na sua cabeça, e novamente suas lágrimas – escassas – desceram. Mais do que a dor que latejava o seu peito, era a dor da culpa, de ter dito coisas horríveis a ela e não ter tido a chance de pedir perdão, de se redimir, de dizer que a amava pela última vez. Ó, que alma condenada era essa para ter que sentir tamanha dor? Que pecado fatal ele cometera para que os céus tirassem o anjo da vida dele?

Ao chegar no quarto retirou sua camisa e se jogou na cama, enfiando o rosto no travesseiro, como um refúgio para seus pensamentos. Virou-se de lado e sentiu uma pontada no peito ao sentir o cheiro do cabelo dela, impregnado no travesseiro. Seu olhar era vago, e pondo uma mão sobre o local onde o corpo dela repousava toda noite ele repetiu pra si mesmo em sussurro: — Ela está enterrada... enterrada... - e aos poucos, a escuridão e o sono o engoliram, e quisera ele, que fosse para sempre.

O sono e o cansaço caíram sobre ele como as rochas de uma avalanche. Algo pesado e sem prazer, do tipo que vem depois de você encher a cara de remédios pesados. A realidade ia e vinha sempre calma e devastadora. Ululava entre as cortinas da realidade, afinal, atire a primeira pedra aquela pessoa que nunca sonhou ainda acordada. A sua cama havia se tornado o único lugar seguro e confortável, era como um bálsamo para sua alma. Sentia-se mais calmo – ou anestesiado depois de tudo aquilo – e já ouvia alguns carros que passavam lá fora. Era muito cedo ainda e o Sol mal iluminava a cidade. Tinha recebido folga alguns dias do trabalho devido a... aquilo, então nem precisaria ter pressa para levantar da cama. Comer? Desnecessário. Cochilou mais uma vez, dessa vez o sono havia sido mais manso, e acordou novamente. Não abrira os olhos, mas pôde perceber pela claridade nas pálpebras que o Sol já despontava e o mundo lá fora se movia normalmente. Não sabia exatamente o que fazer, estava perdido e não havia mapas por ali. Então sentiu que alguém se revirou do seu lado, por baixo do lençol. E a voz feminina sussurrou.

— Bom dia, noivo dorminhoco.


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Notas finais do capítulo

A primeira impressão é a que fica. E eu realmente não sei que impressão esse capítulo deu. Mas espero que não tenham sentido que esses minutos gastados foram em vão. Aguardo opiniões.