Maybe Someday escrita por SomeKilljoy


Capítulo 14
Capítulo 14


Notas iniciais do capítulo

HAHA, CHEGUEEEEEEEEEEEEEEEI
E aí, gente, como vai? Eu infelizmente não estou com ânimo nem com criatividade para escrever aquelas notas imensas de sempre (o que provavelmente deve ser um alívio pra vocês), então vou direto ao ponto o3o
Desculpa aí pela demora, como sempre. Acontece que em novembro foi kinda impossível de escrever pra mim, então tecnicamente só pus a mão na massa depois que as aulas acabaram :'D Rolaram uns bangs difíceis aí na life, mas eu já to ok. Mas foi mal, anyway.
Dedico o capítulo à Yuna Ackerman, que ficou quase todo santo dia cobrando o capítulo novo e me motivando com isso (por mais que algumas vezes fosse irritante JKFFKJHDSASD Valeu, salinda sz); à leitora Angel Anonimata, que comentou basicamente todos os capítulos em UM DIA; e à Lariez, de praxe, porque ela é o amor platônico da minha vida e sem ela eu não seria nada HJFKDSFHKJSD
Lembra que no capítulo 12 eu disse que ia tentar manter a média de 4k? Então, acho que não KJHGDSHFKJSD Pelo visto a mais nova média é de 7k. Levando em conta meus atrasos para atualizar, acho que tá ok, né? :'D
Mas enfim, espero que gostem~
Boa leitura o/



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/553622/chapter/14

Faltando exatamente uma semana pro dia de Ação de Graças, Gray teve seu pior pesadelo confirmado assim que recebeu o teste de Química que o professor havia aplicado à turma alguns dias atrás.

Ele havia se saído mal, para variar.

— Ah, qual é, poderia ser pior — Lana tentou consolar, tapeando leve e amigavelmente suas costas, quando ficou sabendo de sua nota. Ela, ao contrário dele, estava demonstrando um desempenho promissor na matéria, como se sua antes proclamada dificuldade tivesse se diluído em água. Gray ainda queria saber quais eram os truques, ou se ela havia firmado um pacto demoníaco ou algo assim. Tinha que admitir, estava propendendo um pouquinho mais a cogitar recorrer a esses meios. — D+ ainda é melhor que D-, né?

Gray considerou a frase, mas sabia que mais tarde teria que arcar com as consequências, de uma forma ou de outra. Os pais iriam importuná-lo até não poderem mais; talvez até resolvessem incutir algum tipo de punição. Sofrer em antecipação, contudo, continuava não sendo uma alternativa para ele, portanto simplesmente se esmerou para tratar suas notas como a coisa mais irrelevante possível no momento.

O sorriso que Cameron vinha mantendo até então esmoreceu.

— Espera, o quê? Você tirou D+ e tá reclamando? — perguntou, incrédulo.

Gray viu de relance Tyler dar um sorrisinho de canto ante a atitude do amigo, sentado ao lado do último, mas, fora isso, o garoto não esboçou maior reação; continuou encarando silenciosamente o vazio, enquanto tamborilava inconscientemente os dedos sobre a mesa do refeitório. Se um buraco negro subitamente surgisse e sorvesse todos os elementos ali presentes para o vácuo perene, e só sobrasse Tyler, levitando em meio à ausência de força gravitacional em pleno espaço, Gray não se surpreenderia se ele acabasse simplesmente não notando nada de errado. De fato, o rapaz estava ainda mais no mundo da lua ultimamente, e não eram raras as vezes em que se tornava fora de alcance no meio de conversas e Gray precisava dar-lhe sacudidelas para fazê-lo voltar à Terra.

Gray estava verdadeiramente tentando não se deixar alterar por aquele súbito estado ainda mais taciturno  que o normal de Tyler, especialmente dadas as circunstâncias daqueles últimos dias, mas nunca deixava de se interrogar o que passava por sua cabeça que era capaz de mantê-lo tão distraído. Essa reclusão mental deixava-o ainda mais distante, o que não era nem um pouco aprazível aos seus olhos.

As coisas estavam meio diferentes naqueles dias, era perceptível, e não só entre eles.  Aliás, podia-se até listar tudo aquilo que havia se divergido além do distanciamento maior de Tyler, a começar com sua nova amizade com Lana. Já havia passado pouco mais de uma semana desde que se encontrara com ela na cafeteria, e, quando Tyler encontrou os dois rindo e papeando no dia seguinte a esse, depois de ter faltado segunda-feira, sua expressão era literalmente algo como “Ok, quanto tempo eu dormi?” Desde então, Lana, por livre e espontânea vontade, passara a gastar mais tempo com eles, principalmente durante o intervalo, para alegria de Cameron – ele simplesmente parecia transbordando de júbilo quando ela estava ao redor. Gray já estava começando a desconfiar do porquê, e tinha certeza que Tyler também, mas ainda não tocara no assunto com nenhum dos dois. Ainda.

E, por conseguinte, mais um indivíduo começara a fazer amizade com eles: Alyssa Rayen, uma garota de cabelos loiros escorridos e tão tímida e absorta em pensamentos quanto Tyler, talvez até mais, que estava na mesma turma que eles e quase sempre estava acompanhando Lana. Dessa forma, acabara se vendo a andar com eles também, e, por mais que não fosse muito de conversar, sabia ser alguém bem amigável e interessante quando queria. E bem inteligente também — além de sempre estar levando algum livro consigo, Gray sentia uma urgência de buscar um dicionário quase toda vez que ela abria a boca, e olha que considerava que tinha um vocabulário bem rico por si só. Tyler parecia o que mais estava se dando bem com ela entre os três — certo dia entreouvira uma conversa bastante empolgada entre os dois que tinha certeza que envolvia óvnis, e só não engajou nela porque não sabia muito sobre o assunto, e porque estava satisfeito só por ouvir Tyler discursando de modo entusiasta sobre a possibilidade percentual de existência de inteligência extraterrestre. Claro que seria mais legal se Gray fosse o interlocutor dele naquele diálogo, mas tudo bem.

 — Por quê, quanto você tirou? — quis saber Lana, voltando-se a Cameron.

— Sai fora, eu não vou falar — alfinetou Cameron. — Você vai tirar uma com a minha cara.

Lana simplesmente encolheu os ombros e não insistiu, como se não pudesse negar que o faria mesmo.

— Pensei que tinha dito que não era boa em química — acusou Gray, semicerrando os olhos para ela.

— Nah, isso é tudo graças à lindona da Alyssa aqui. — Lana abraçou quase agressivamente a dita cuja, sentada ao seu lado, que, pega de surpresa, sobressaltou-se e ergueu os olhos do livro que lia como se tivesse acabado de ouvir um barulho de tiro. — Pedi uma mãozinha dela quando fui estudar.

Quando Gray relanceou Tyler, ele estava observando sua interação com Lana com uma expressão insondável; assim que os olhares de ambos se cruzaram, ele desviou o olhar.

O garoto podia não ter mencionado o assunto uma vez sequer com ele, mas aqueles olhares dissimuladamente analíticos deviam significar, no mínimo, que continuava estranhando sua súbita amizade com a menina. Depois de todo o episódio daquela sexta-feira envolvendo as mensagens intempestivas de Lana, Gray não podia culpá-lo. O peso na consciência por estar acobertando mais coisas dele que vinha se tornando uma constante reforçava que o único a quem podia culpar era a si mesmo.

O que, no entanto, ainda não retardara sua aptidão em guardar segredos. Ou melhor, omitir detalhes.

— E você, Thay, quanto tirou? — interrogou ele, numa urgência em romper o fluxo de pensamentos, esperançoso de que Tyler fosse endereçar pelo menos uma única sentença aquele dia a ele.

— Oi — disse ele, como se tivesse acabado de sair de um transe. — Ahn, não sei, para falar a verdade.

Gray fez cara de desacreditado.

— Você esqueceu até isso? — disseram ele e Cameron em uníssono, fazendo ambos rirem em seguida.

Tyler deu de ombros, já acostumado com a zombaria usual.

— Você me lembra o Neville — comentou Alyssa, surpreendendo a todos por ter dito algo. — Sabe, por não se recordar das coisas muito bem. — Gray reparou que sua leitura atual era Harry Potter e o Enigma do Príncipe, a qual a menina retomou logo depois de ter se posicionado quanto a isso.

Tyler soltou um muxoxo, e, quando Gray começou a gargalhar em face da frase, lhe lançou um olhar ferino que o fez parar.

— Qual é — resmungou. — Parem de exagerar. Não é legal ficar caçoando dos defeitos alheios, sabe. — Gray ia dizer algo como “Não é um defeito quando é adorável”, mas percebeu que estava diante de testemunhas e se refreou. Droga. — Eu, por exemplo, não fico lembrando vocês de como são especialistas em encher o saco das pessoas.

— Ser especialista em algo nunca é um defeito — redarguiu Cameron soberbamente. — E você não lembra a gente disso porque simplesmente não se lembra, Thay.

Lana e Gray desataram a rir; Tyler revirou os olhos, mas não parecia aborrecido por isso. Parecia até com uma aura um pouco mais amena, uma vez livre da própria bolha de isolamento imaginária.

Pouco antes de o sinal bater, Lana e Cameron começaram a confabular sobre banalidades, Alyssa continuou imersa na leitura, e tudo o que Gray desejou foi que voltasse a ter um tempo a sós com Tyler, já que não o via sem ser na escola desde o encontro que tiveram. Não queria ficar conversando por mensagens o tempo todo. Até porque Tyler não parecia com muito ânimo para elas, tampouco...

Ele tinha que descobrir logo o que estava havendo. Estar tão distante assim, do nada, não era normal. As tentativas de não se deixar levar haviam chegado ao limite.

E o faria assim que possível.

 

 

Ou ele esperava que assim fosse.

Ao longo daquela semana, Gray continuou não obtendo sucesso em providenciar um tempo a sós com Tyler; não só porque ele ia embora cedo do colégio, mas porque, a cada oportunidade para uma investida, ele encontrava uma forma de desconversar, casualmente, até, mas ainda aumentando suas suspeitas.

Agora sim, Gray estava começando a levar aquilo um pouco mais para o lado pessoal. Ele entenderia se ele ao menos estivesse tentando trazer algum tema delicado à tona, mas Tyler se esquivava até quando tentava puxar algum assunto inofensivo, ou que, ao menos, não tivesse qualquer relação com a temática "nós". Ele ainda não fora informado de como a situação domiciliar de Tyler havia se desenrolado, por exemplo, nem se estava tudo bem. E por mais que Tyler sempre reiterasse que sim, estava, a qualquer tentativa de extrair uma resposta sincera tratando-se disso, ele não estava muito convencido.

— Por que está agindo estranho? — perguntou um dia desses, uma vez que obteve a chance, durante o intervalo entre as aulas, da forma mais despretensiosa possível.

— Não estou agindo estranho. — Tyler o olhou de viés, afastando-se em seguida e endossando a conclusão à qual já havia chegado.

Tyler estava o evitando de propósito. Ele devia ser ancião em relação a como se tornar mais inacessível. Gray estava da cabeça aos pés mergulhado em uma areia movediça, ou capturado por um redemoinho infeliz, diante de uma encruzilhada. Era como se estivesse recomeçando um ciclo, e todo seu progresso tivesse ido por água abaixo. Aquela proximidade gradativamente construída parecia estar regredindo.

Gray não era bom em esperar. Quando certo resultado independia de suas ações e as escolhas estivessem reservadas à outrem, não a ele, era quase intolerável. Gray não gostava de ser um elemento neutro. Gray gostava de agir, e de se assenhorar de qualquer consequência que o envolvesse, mesmo sabendo que era impossível ser sempre assim. Eram impulsos primários que requeriam certo esforço para serem retidos. E quando ele conseguia fazê-lo, os resultados eram porventura promissores. Mas agora...

Queria que Tyler entendesse que estava disposto a ouvir, disposto a ajudar, e não só em questões concernentes a eles. Gostaria de algo mais abrangente e significativo, não supérfluo. Também se dispunha a esperar e estar ali. Mas ser mantido no escuro não era de longe uma de suas pretensões.

"Nós devíamos dar um tempo." Gray estava confiante de que essas palavras deveriam ter saído da boca de Tyler se ele quisesse ter sido mais claro, e se perguntava se alguma hora daquele dia elas lhe teriam ocorrido para depois terem sido descartadas.

Devia ter imaginado que seria assim, de qualquer forma. Pelo menos por enquanto.

Talvez um afastamento mútuo fosse idôneo. Por enquanto.

É, Gray podia dar um espaço a Tyler, se era isso o que ele quisesse.

 

# # #

 

Gray, no momento em que abriu os olhos, já estava totalmente desperto. Olhou para o horário no relógio de cabeceira, desesperando-se com o horário, e, num salto, saiu da cama. Agindo como um furacão, se vestiu o mais rápido possível, executando o maior número possível de ações simultaneamente e quase se esborrachando de modo caricato no chão quando vestia o jeans e escovava os dentes ao mesmo tempo. Depois de pronto e apresentável, ele encaminhou-se para a sala, onde esperava que os pais não o barrassem, e dando um bom dia discreto para os cachorros — como já havia trocado suas rações quando acordara no meio da noite, não precisava se preocupar com isso agora.

— Mãe, pai — chamou por cima do ombro, alteando a voz para que o ouvissem, enquanto já apanhava as chaves do carro do pai em cima do balcão de granito da cozinha e rumava para a porta — , tô saindo, okay?

Arrependeu-se de ter se manifestado no mesmo momento.

— Como é que é? — A mãe surgiu no vestíbulo do apartamento, materializando-se subitamente, ainda vestindo as luvas grossas de cozinha; devia estar terminado de preparar a refeição que teriam mais tarde. Um vinco expressivo entre suas sobrancelha demonstrava seu descontentamento, por baixo da haste dos óculos. — Para onde é que você pensa que vai?

— Ah... — principiou Gray, coçando a nuca, postergando para ganhar tempo e inventar uma desculpa decente; no entanto, sua cota de subterfúgios criativos parecia ter se esgotado. Suspirou, desistindo de tentar ludibriar a mãe, e decidiu contar a verdade, daquela vez. Por que não planejara uma rota de saída estratégica alternativa para o caso de seus pais resolverem interceptar sua saída, mesmo? — Eu estou indo ver Clary, sabe? Ela veio pra cá esse ano, então eu pensei que...

— Pensou o quê? Que poderia dispensar sua família em pleno feriado nacional, quando o esperado é você passá-lo com ela? O que significa o Dia de Ação de Graças para você? — a mãe interrompeu, com as mãos na cintura, austera e inflexível como sempre. — Não, de jeito nenhum.

— A Clary também é da família, se eu me lembro bem!— rebateu Gray, não podendo se conter e erguendo a voz; os músculos faciais da mãe entraram em contorção em face disso. Ele se controlou. — Não vai demorar muito, mãe, eu juro. Tem muito tempo que não a vejo. Por que não posso?

Gray, no entanto, conseguia reconhecer que o posicionamento da mãe não poderia se converter. Devia ter se esgueirado às escondidas para fora de casa, sem pedir permissão ou sequer deixá-los sabendo disso; mas hesitara, por não querer estragar o dia deles. Mas, caramba, ele havia deixado combinado com a prima fazia tempo, e sentia falta de vê-la. Não iria deixar de cumprir com a palavra dada, não, nem que precisasse contrafazer seus pais se precisasse.

— Devia ter conversado conosco sobre isso antes. Devia ter pedido autorização antes — respondeu ela, arisca e semicerrando os olhos impetuosamente cinzentos. — Então, não, não está indo a lugar nenhum. Nós nem sequer sabíamos que você ainda mantinha contato com ela.

Mesmo acreditando que não adiantaria nada, Gray, exasperado, recorreu ao pai, que lia o jornal placidamente no sofá, perto dali.

— Pai!

Vagarosamente, como se tivesse todo o tempo do mundo, seu pai ergueu os olhos da sua atual ocupação e o fitou, com o rosto impassível.

— Sim? — disse, a voz monocórdia.

Gray começou a ruminar uma frase, mas, assim que abriu a boca para responder, sua mãe interpelou, zangada.

— Sinceramente, Gray, eu já estou farta desse seu jeito! — esbravejou ela, retirando as luvas de cozinha e atirando-as no balcão ao seu lado. Suas mãos estavam firmemente cerradas, como sempre acontecia quando se enfurecia. — Você abusa da sua liberdade! Tá achando que seu livre-arbítrio é ilimitado? Pois não é! Quem manda em você somos nós. Você não pode fazer o que quer na hora que quiser, não. De onde veio essa ideia de ir ver sua prima sem nos consultar? E justo quando você devia passar o dia com a gente? O que–

— Por quê, você vai me impedir? Só porque vocês odeiam Clary por motivo nenhum, eu tenho que odiar também? — Antes mesmo que pudesse prever, Gray já estava aos berros, e imaginava que seu rosto estivesse tão lívido de raiva quanto o de sua interlocutora. Talvez estivesse exagerando, mas considerava injustiça e não aceitaria calado qualquer injúria; se a mãe o proibisse de ver a prima só porque a família inteira a deserdara desde que ela passara a ser quem realmente era e, portanto, tinham a obrigação de também tratá-la como uma desconhecida, iria, com toda certeza, à defesa dela.

— Espera aí, para com isso, Gray! Ninguém nunca disse nada sobre odiar ninguém. De onde você tirou isso? — Seu pai finalmente parecia ter sido trazido à realidade; deixando o jornal sobre o sofá e levantando-se dele com um ar de autoridade judiciosa, ele se interpôs entre os dois, imponente. — Você se acalme. Sua mãe só quer que fique aqui, você pode falar com ela qualquer outro dia...

— Não posso, não! Não sei até quando ela vai estar aqui; provavelmente vai embora hoje. — Uma reminiscência de bom-senso e auto-controle o aconselhava para que baixasse o tom de voz e que fosse mais assertivo, mas Gray a mandou às favas; se sua mãe estava tirando satisfação, ele também tinha o direito de fazê-lo. — E parem de dizer que só querem que eu fique aqui, tá bom? Vocês na verdade não se importam. Só querem manter essa fachada de família perfeita que nós, no fundo, nunca fomos, não é? Nós mal nos falamos, ok? Nós mal nos conhecemos, e vocês sabem disso! — atirou, enquanto tentava dominar todos os impulsos de gesticular de modo efusivo, ou agressivo, até. Sua respiração, aos poucos, foi se tornando menos ofegante, e ele aprumou os ombros, ainda meio instável e sentindo-se atentado.

Quanto aos seus pais, eles pareciam em estado de choque. Olhos arregalados, sobrancelhas franzidas, boquiabertos. Talvez fosse por nunca terem percebido que o filho se apropriava de tal ponto de vista, ou até, quem sabe, pelo peso da verdade nas palavras as quais eles nunca deviam ter sequer cogitado.

Há quanto tempo Gray tinha uma conversa tão longa quanto essa com os dois, a propósito? Ele, sinceramente, só era capaz de se lembrar das palavras supervacâneas que costumavam trocar ao longo do cotidiano. Nada realmente nunca teve um significado. Até agora.

Pela visão periférica, Gray pôde ver Mikey, May e Baloo se ajuntando em um canto, assistindo apreensivos a discussão, encolhendo-se e abaixando os focinhos, como se temessem que a situação se agravasse. Seu peito se constringiu.

— D-do que você está falando? — gaguejou a mãe, obviamente tentando reintegrar-se. — Eu não–

— Você sabe que é verdade! — vociferou, fora de controle. Aquilo pareceu suscitar alguma coisa em seu pai, alguma coisa intensa, pulverizando seu estado de choque e fazendo com que se aproximasse, colérico.

— Não fala assim com sua mãe! — demandou ele, e Gray recuou.

Continuou dando passos para trás, até que, quando sentiu as costas encostarem-se na porta de saída, finalmente se pronunciasse, dessa vez em tom de arremate.

— Querem saber? Que se dane. — Ele tateou às suas costas até que achasse a maçaneta e a girasse e, com a outra mão, exibiu as chaves do carro das quais tinha se apoderado antes de tudo aquilo começar, quando as pegara da bancada da cozinha.

Se não fosse pelo colossal peso na consciência, Gray teria tentado rir diante das expressões de puro ultraje e indignação de seus pais.

Sem olhar para trás, Gray abriu a porta e se retirou, ignorando o chamado furioso de sua mãe, ao passo em que o elevador em que entrara já estava fechando as portas quando os dois irromperam da porta do apartamento.

Sem olhar para trás, Gray acabava de deixar o pai, a mãe e os próprios ressentimentos numa situação ainda mais complicada entre eles.

 

# # #

 

“Bom, podia ser pior”, pensou ele, enquanto esperava o semáforo liberar, tamborilando os dedos no volante. “Pelo menos consegui sair de casa.”

Agora é pensar como que você vai voltar pra ela sem levar uma surra daquelas.

Gray estava tão estressado e alterado por aquele prospecto que o menor dos ruídos já era capaz de lhe infligir uma hipersensibilidade auditiva, e, consequentemente, uma dor de cabeça execrável, obrigando-o a desligar o álbum Drones, do Muse, que estava tocando num volume consideravelmente baixo no som do carro. O que era triste. Se Gray estava perturbado demais a ponto de não aguentar nem música...

“Nah, eu estou exagerando”, reafirmou para si mesmo, plastificando um sorriso impotente no rosto; sempre se esforçaria na manutenção de seu bom humor quando necessário. Depois de até mesmo considerar infiltrar-se no apartamento de Cameron e suplicar para que permitisse que pernoitasse ali em segredo, não poderia contestar essa afirmação. “Vai ficar tudo bem. Você foi idiota como sempre, mas vai ficar tudo bem.”

Ele, para começar, nem sequer entendia por que se sentia assim. Provavelmente era de se esperar que seu orgulho estivesse satisfatória e regiamente estufado por finalmente ter dito e jogado na cara dos pais tudo o que queria, não que essa apreensão e esse sentimento de culpa o transtornassem. Afinal, era típico dele ser meio inconsequente, apesar de não se orgulhar  isso.

Você não pode fazer o que quer na hora que quiser, não, sua mãe tinha dito. Não que discordasse, mas...

Vocês na verdade não se importam! Só querem manter essa fachada de família perfeita que nós, no fundo, nunca fomos, não é? Nós mal nos falamos, ok? Nós mal nos conhecemos, e vocês sabem disso!

Havia muito tempo que era proprietário dessa concepção, porque seus pais realmente não sabiam nada sobre ele, e nunca pareceram ter tal interesse. Era por isso que Gray não se incomodava em mantê-los a par sobre qualquer coisa de sua vida pessoal; eles nunca tomaram uma iniciativa de verdade. Quem ligava se eram muito ocupados? Era o mínimo que podiam fazer, não era, ligar mais para o filho deles do que para o trabalho, ou ao menos notar quando, apesar dos disfarces, havia algo terrivelmente errado...

Gray percebeu tarde demais que os pensamentos estavam perigosamente voltando-se demais para acontecimentos passados.

E que ele havia pegado o caminho errado. De novo.

Praguejou, e ligou o som do carro novamente; o que poderia irritá-lo, mas pelo menos o manteria distraído até que chegasse ao seu destino.

E se tinha algo de que Gray precisava desesperadamente, era distração.

 

 

Levou mais uns dez minutos para que finalmente encontrasse a localização exata da casa da família de Tyria, onda ela e Clary estavam hospedadas naquele meio-tempo. A prima tinha lhe avisado que o lugar provavelmente estaria apinhado de gente com algum grau de parentesco um do outro por causa do feriado, e que ela já havia mencionado que ele estaria passando a tarde com eles. Gray, por motivos óbvios, não era um grande fã de famílias reunidas no geral, principalmente aquelas com árvores genealógicas extensas e prolíficas, mas tinha sido assegurado de que todo mundo ali era legal e estava mais tranquilo quanto a isso.

Assim que chegou, sua primeira impressão registrada era que o lugar realmente tinha um espaço de lotação considerável até por fora, com um gramado bem-cuidado e arbustos podados na fachada da casa. Duas crianças parecidas uma com a outra se divertiam num balanço enferrujado próximo à entrada, às gargalhadas, e nem pareceram notar sua presença. Conseguia ouvir a balbúrdia de gente conversando e rindo através das paredes e ao fundo da casa. Pé ante pé, depois de ter estacionado o carro ali perto e tê-lo travado, o garoto cobriu a distância e atravessou o caminho de pedras até a entrada da casa. Ao pé da porta, um capacho tradicional lhe dava as boas-vindas. Com certo constrangimento por só conhecer duas pessoas dali, ele bateu à porta três vezes, torcendo para que fosse Clary ou Tyria quem atendesse.

— Pode deixar que eu atendo! — Ouviu alguém gritar lá de dentro, poucos segundos antes de a porta ser aberta com certa agressividade. — Ah, oi. Sou Sky. Quem é você?

Quem o recepcionara tinha aparência masculina, com o corte de cabelo militar, e, ao mesmo tempo, atributos físicos delicados. Por baixo de um casaco de aviador, trajava jeans e uma blusa preta com os dizeres "Some people are trans. Get over it" em vermelho. Sua voz era grave e rouca, rascante, e sua expressão facial, indiferente.

Antes que pudesse responder, uma senhora curvada sobre um andador também surgiu à porta, empurrando Sky para o lado energicamente e convidando Gray para que entrasse.

— Você deve ser Gray, primo de Clary, não é? — disse ela, e suas feições enrugadas se distenderam num sorriso caloroso para ele, fazendo com que seu olhos quase se fechassem. — Vamos, entre, querido; dá licença, Myrian, minha filha, deixe o menino passar.

Sky teve o rosto afogueado e franziu o cenho.

— Vó, eu já disse que meu nome é Sky. E seria meu filho, lembra? — Gray entreouviu-o murmurar para a idosa, que simplesmente fez um gesto displicente com a mão, enquanto adentrava a casa e passava pelo vestíbulo. Sky bufou e só lhe dirigiu um aceno de cabeça, à guisa de cumprimento, antes de se afastar, visivelmente irritado.

— Uh, olá. Boa tarde — finalmente disse; era a primeira palavra que proferia desde que chegara ali, e se sentia meio atarantado.  — Obrigado por me receber.

— Mas o que é isso, disponha! Não quer tirar o casaco? — Gray fez que não com a cabeça, sorrindo, e enfiou as mãos nos bolsos do moletom como que pra ratificar. A idosa sinalizou para que se aproximasse. Quando se inclinou para frente, acatando-a ligeiramente nervoso, recebeu vários tapinhas amistosos na bochecha, pegando-o de surpresa. — Não é que você parece um amor de pessoa? Venha, Clary está lá fora.

Ele a seguiu, sentindo-se um forasteiro conforme se dava conta dos desconhecidos interrompendo suas conversas para fitá-lo com curiosidade e estranheza, sentados em sofás e poltronas de chintz ao redor da mesa de centro, mas não tentando não se deixar incomodar por isso e dando um aceno de mão discreto para as pessoas. A mobília do interior da casa era, aparentemente, principalmente de madeira, assim como o assoalho; papéis de parede floridos ornavam algumas paredes e quadros decorativos perfilavam-se em vários cantos. Lembrava aquelas típicas casas antigas porém bem-conservadas presentes em filmes.

Assim que ele irrompeu para o quintal dos fundos — cuja única diferença entre a fachada era o maior espaço e por ter algumas mesas dispostas ali — depois da senhora tê-lo guiado até ali (nem sequer sabia quem ela era, e estava se sentindo meio culpado por isso) e ele ter agradecido, Clary imediatamente o reconheceu e veio a seu encontro. Usava um vestido florido simples, mas continuava capaz de chamar a atenção de qualquer um.

— Clary, tem certeza que não tem problema eu estar aqui? Porque parece que estou me intrometendo em alguma ocasião íntima ou algo assim... — sussurrou, depois de terem se cumprimentado cerimoniosamente e ter se sentado à mesa que a prima dividia com Tyria, cumprimentando-a também.

Tyria ouviu e sorriu pra ele. Tinha uma pele achocolatada, cabelos crespos e olhos amendoados, destacando-se na homogeneidade branca da maioria do resto das pessoas ali. Quando falou, sua voz aveludada, capaz de suavizar quaisquer ânimos exaltados, fez-se presente.

— Não se preocupa com isso, Gray. Ninguém aqui se importa. Todo mundo traz outras pessoas que não são da família para cá. E pra falar a verdade, metade daqui não fazia ideia de quem Clary era até hoje. — Ela riu, como se isso a divertisse.

Gray ergueu uma sobrancelha, prestes a perguntar se eles ao menos sabiam que as duas compunham um casal.

— Já sei o que está pensando — disse Clary, tomando um gole de sua bebida placidamente. — Mas não, ninguém aqui é tão preconceituoso como nossa família. Legal, né?

Não era exatamente isso que ele estava pensando, mas conferia uma reposta à sua pergunta mental, de toda forma. Gray não pôde evitar sentir uma onda de simpatia e satisfação ao saber disso. Nem tudo estava perdido, afinal. Ele estava feliz por Clary; como o pai dela — com quem ele era infelizmente obrigado a se esbarrar em toda confraternização familiar — era irmão de sua mãe, ele desconhecia o outro lado da família de Clary, mas ela aparentemente mantinha os mesmo índices de conservadorismo e intolerância. Finalmente ela havia encontrado algum alívio e acolhimento em algum lugar. Seria ótimo se algo assim o esperasse num futuro próximo, também.

— Com certeza — concordou, com um sorriso esfuziante. Estava maquinando algo mais para dizer quando sentiu o celular vibrando no bolso traseiro do jeans, e seu sorriso fraquejou, já ciente daquilo que o aguardava. De forma consideravelmente trépida e relutante, Gray pescou-o e rejeitou a ligação, fazendo menção de colocá-lo no modo silencioso em seguida.

— Gray? Que foi? — quis saber Clary, vendo sua expressão lúgubre. — Quem era?

Gray tratou o assunto com descaso.

— Nah, era minha mãe. Nada demais.

— E por que não atendeu?

— Uh, porque... — principiou, coçando a nuca e desviando o olhar. — Porque queria poupar as cordas vocais dela, talvez?

Clary não era o tipo de pessoa que ralhava com você por qualquer coisa, mas o garoto pôde perceber só pela expressão dela que estava prestes a receber uma reprimenda.

— Criatura, você continua não se entendendo com seus pais? Depois de tudo? — Ela soltou um suspiro de exasperação. — O que você fez dessa vez?

— Sua relação com seus pais também não é das melhores — retrucou, mordaz, ignorando a pergunta. — Pelo menos eu ainda falo com os meus.

Clary angulou-se para trás, as sobrancelhas quase embrenhando-se no coro cabeludo de tão erguidas.

— Nossa. Tudo bem, então. — Ela ergueu as mãos em capitulação, ajeitou os óculos e não o olhou mais nos olhos.

— Gray, você sabe que Clary só está tentando te ajudar — interveio Tyria; seu olhar também era de admoestação, fazendo-o se sentir pior. — Ela só quer dizer que você devia entrar em um consenso com eles.

— Eu sei, eu sei. Desculpa, Clary, sério, foi mal.

Ela suspirou.

— Tudo bem, eu deixo essa passar. Mas então, qual foi o problema?

— Saí de casa e peguei o carro sem permissão — resmungou, cruzando os braços. — E posso ter falado um "que se dane" depois de uma, uh, pequena discussão.

As duas se entreolharam antes de voltarem-se a ele, meneando a cabeça em desaprovação.

Gray estava prestes a se retratar mais uma vez e admitir que tinha realmente pisado na bola quando o garoto que o havia recepcionado, Sky, acomodou-se na cadeira ao lado de Tyria, a expressão facial inóspita e os braços cruzados.

— Sky, o que aconteceu pra você estar com essa cara? — Tyria indagou, e antes que ele respondesse, apresentou: — Gray, esse é Sky, um dos meus primos.

— Eu sei. Quer dizer — disse, angulando o corpo pra frente e estendendo a mão —, prazer em conhecê-lo.

Sky pareceu relutante por um instante, mas depois espelhou o gesto e apertou sua mão.

— Prazer — respondeu sem cerimônias, antes de se voltar para Tyria, falando vigorosamente, como se só estivessem os dois ali. — Você precisa falar com a nossa vó. Ela insiste em continuar errando meus pronomes em qualquer lugar e qualquer hora, não dá ouvidos pra mim, e você é a única que se importa comigo de verdade aqui.

— Isso não é verdade — disse Tyria, com um olhar clemente.

— Por favor? — implorou, pousando uma mão sobre o antebraço dela afetuosamente.

— Olha, Sky, você sabe que a vovó já é velhinha e tem dificuldade de lembrar das coisas e... Ah, tá bom, eu vou sim conversar com ela, só não me olha assim.

Um sorriso aflorou no rosto de Sky, e foi como se aquela sua aura hostil jamais houvesse estado ali. Ele abraçou Tyria, que piscou, surpresa, tapeando suas costas de forma meio desajeitada.

— Queria que as coisas fossem mais fáceis pra ele — comentou Tyria, seguindo-o com os olhos depois que ele havia se retirado da mesa.

Gray era capaz de somar dois mais dois, mas não sabia o que dizer, então permaneceu em silêncio.

— Mas então! — a prima se manifestou, batendo as mãos uma na outra, livrando-os daquele silêncio antes que ele se tornasse precedente de desconforto. — Você me prometeu me manter a par das novidades, Gray; pode ir começando.

— Tecnicamente, não prometi nada...  — corrigiu, mesmo sabendo que já era uma batalha perdida; depois de algumas insistências por parte dela, com subsequentes leves encorajamentos de Tyria, foi obrigado a declarar armistício.

Gray fez questão de ser o mais objetivo possível: informou quem Tyler era, como se conheceram e como as coisas estavam entre eles, dispensando pormenores e cortando a prima toda vez que ela demonstrava sinais de estar prestes a comentar alguma coisa. Foi apenas quando mencionou que acreditava que Tyler não tinha experiência — e tinha motivos para tanto — e desconfiava que fosse o primeiro garoto com quem se relacionava dessa forma (embora ainda quisesse confirmar isso em primeira mão) que Clary encontrou uma brecha para opinar. Sinceramente gostaria que ela seguisse o exemplo de Tyria, que se contentava em apenas escutar — uma exímia ouvinte.

— Bom, mas não é como se você tivesse tanta experiência assim também, certo? Quero dizer, a menos que eu esteja realmente desatualizada, o único garoto com quem namorou foi o Sco-

Tyria pigarreou de forma exageradamente alta. Provavelmente esperando que ele não notasse, lançou olhares significativos para a parceira pelo canto do olho, como quem exige para parar imediatamente.

Gray apenas pôde suspirar, e fez como se não tivesse sido interrompido, ignorando o anticlímax que começara a se instaurar ali e deixando de responder que suas experiências não se resumiam apenas ao antigo namoro.

— Bom, mas como eu disse, ele tem se afastado, então não é como se eu pudesse ficar alimentando esperanças nem nada.

Clary deixou escapar uma risada.

— Você soa como se estivesse com o coração partido. Pobre Gray.

Ele conseguiu engendrar um sorriso, rolando os olhos pro lado.

— Ele só deve estar precisando de espaço — disse Tyria sensatamente.

Gray piscou.

— Eu sei — garantiu.

— Sabe, é? — a prima desacreditou, um sorriso zombeteiro apossando-se de seus lábios. — Você?

— O que você quer dizer com... — Mas ela o dispensou com um gesto da mão, alheia ao olhar de reprovação que Tyria lhe dirigia por causa de suas provocações.

Quando a refeição foi servida e os três foram pra dentro de casa, Gray não se sentiu à vontade o bastante para se reunir à mesa com desconhecidos e se deleitar com a comida de um lugar onde nunca havia estado antes. Portanto, declinou o mais polidamente possível, esperando que não fosse indelicado de sua parte, usando o pretexto de que estava satisfeito com o que comera em casa antes de ir pra lá quando um dos moradores lhe questionou a respeito disso. À espera que as duas terminassem seus pratos, sentou-se em uma das poltronas no canto da sala de estar — separada da de jantar apenas por móveis — enquanto se entretinha com joguinhos de celular.

— Eu não entendi por que você não quis comer nada — disse a prima, depois de ter terminado seu prato, sentando-se no sofá em frente à poltrona em que estava sentado. Tyria surgiu poucos segundos depois, aconchegando-se à Clary com um braço ao redor de sua cintura e com a cabeça repousada em seu ombro; só faltava começar a ronronar em satisfação. Clary aparentemente não conseguiu conter um sorrisinho. Se fosse ele e Tyler no lugar das duas, ele provavelmente tampouco conseguiria.

— Nah, não tô com fome, já disse. — Seu estômago começou a protestar, mas  ignorou, meio arrependido por ter se inibido levianamente, o que era bem atípico dele por si só.

Em seguida, decorridos mais alguns minutos preenchidos por conversas acerca de frivolidades com Clary e Tyria (Sky voltou a contatar a última rapidamente e acabou permanecendo e se juntando à conversação no final. Ele era legal), Gray pôde perceber que o lugar ia se esvaziando à medida que os visitantes se retiravam; alguns até vieram até eles para despedir-se casualmente. No final, suas tentativas de estender sua permanência no lugar se mostraram mal-sucedidas por conta de sua ansiedade, e, a despeito de seu pressentimento de que seria melhor esperar um período de mais de uma década para aparecer na frente de seus pais novamente, se viu obrigado a seguir exemplo daqueles que não estavam alojados ali. O mais vagarosamente possível, despediu-se das duas, recebendo desejos de boa sorte — “Pensa, o máximo que pode acontecer é você ter que dormir na rua por algum tempo” confortara-o Clary, benevolente —, de Sky e brevemente dos demais ocupantes do lugar — aquela senhora anfitriã não permitiu que saísse sem experimentar alguns biscoitos recém-saídos do forno primeiro, principalmente porque não comera nada —, e, enfim, se viu no trajeto para sua casa, como quem se rende ao seu algoz.

Alguns minutos depois, Gray se sentia como um criminoso defronte à porta de seu apartamento. Com a respiração suspensa, apanhou as chaves com cuidado calculado, amaldiçoando-as quando tilintaram, mesmo sabendo que fosse um barulho mínimo. Encolhendo-se com o rangido da porta ao abri-la e manobrando-se através do minúsculo vão que ousara criar, aguçou os ouvidos à medida que tornava a fechá-la e congelava no lugar, atento. Se algum barulho súbito fosse reproduzido, ele provavelmente sairia correndo desembestado com o susto. Seus pais não podiam ter saído naquele dia em específico ou estarem dormindo à essa hora — não eram nem 20h00 ainda —, mas acalentava esperanças que estivessem, pelo menos, no quarto deles, do outro lado do apartamento, alheios à sua aparição.

Suspirando de alívio ante a ausência de som, rumou um pouco menos tenso até seu quarto, a passos sorrateiros.

Então ele dobrou o corredor, onde Mikey o viu e latiu alegremente, denunciando-o. Isso despertou a atenção dos outros cães, que apareceram às costas de Gray e celebraram seu retorno da mesma forma, indo a seu encontro cerimoniosamente.

Gray fechou os olhos e praguejou mentalmente, antes de embarafustar insanamente seu quarto adentro, esperando Mikey, May e Baloo acompanharem-no antes de bater a porta com força suficiente para danificar as dobradiças, não se esquecendo de trancá-la.

Encostou a testa na superfície amadeirada da porta, para depois lançar um olhar fulminante a Mikey, como quem diz “você tinha mesmo que fazer isso?”.

Ele latiu, exultante, fez uma performance de corrida atrás do rabo e deitou no chão aos seus pés, encarando-o inocentemente.

Suspirou, acocorando-se a fim de afagar a nuca do filhote não-tão-filhote-assim, sorrindo tenuemente.

— Impossível ficar bravo com você. Peste. — E então voltou-se para os outros cães, fazendo o mesmo; Baloo se empolgou um pouco demais, virando-se de barriga pra cima e obrigando-o a ficar agachado regalando-o com carícias até a coluna começar a doer, enquanto ele continuava deitado ali, languidamente, como que anestesiado.

Depois, levantou-se e, de praxe, atirou-se na cama, esticando-se para pegar o laptop do chão — talvez  tivesse sido imprudente tê-lo deixado ali, correndo o risco de ser pisoteado, mas ele só parava para pensar nisso agora — e ligando-o, aguardando impacientemente o Windows iniciar. Seu cérebro estava cauterizado demais para que pudesse ser prestativo com qualquer coisa — tinha como ser prestativo na internet, de qualquer forma? —, então só deixou meia hora ir por água baixo enquanto buscava meios de se entreter até que finalmente decidisse tentar espairecer jogando guitarflash.

E justo no momento em que começava mais uma partida no multiplayer — cuja música eleita era uma das suas prediletas —, dois baques surdos contra sua porta ressuscitaram sua apreensão, seguidos pela voz autoritária de sua mãe exigindo que abrisse para ela e seu pai.

Sentindo o sangue gelar e se perguntando o porquê dessa pusilanimidade toda, respondeu, hesitante:

— Uh, já vai, me deixa só terminar de jogar aqui...

— Filho, queremos conversar com você. — Foi a vez de seu pai falar; provavelmente intencionava soar apaziguador, mas a tensão contida na voz era perceptível. — Pause o jogo e abra a porta.

— É multiplayer — elucidou. Pôde escutar o “O quê?” esganiçado de seu pai em resposta.

— Gray, pause o jogo e abra a porta agora ou vai ser pior pra você — ordenou a matriarca, Clarisse, como quem não iria aceitar contra-argumentos.

Não tem como pausar no multiplayer — murmurou entredentes, mas suspirou, reconhecendo a derrota. Já tinha perdido ou errado todas as últimas notas do jogo, mesmo. Fechando o tampo do computador, deslocou-se até a porta, obedecendo a mãe e recuando um passo para abrir passagem.

Ela entrou, prostrando-se à sua frente com uma expressão que faria certas pessoas correrem chamando suas mães, o que deixava Gray em desvantagem. Ter uma mãe aparentemente feita de ferro podia parecer legal, mas às vezes assustava. Seu pai, por sua vez, permaneceu na penumbra, recostado no batente da porta, pronto para cobrir a retaguarda dela se fosse necessário (o que era meio improvável).

Ela cruzou os braços, quase olhando-o de cima, embora não fosse mais alta que ele. Pelo menos, seu cílio esquerdo não estava tremulando por baixo das lentes dos óculos; se isso acontecesse, Gray podia disparar para as montanhas.

— Então — ela disse, a voz cortante como uma navalha.

— Então...

— Tem algo que gostaria de nos dizer?

Ele exalou pela boca, sentou-se na beira da cama e começou:

— Desculpe, tudo bem? Eu sei que estava errado em ter feito tudo o que fiz. — Ele esperou que fosse o suficiente, mas a expressão dela deixava claro que não. — Desculpe por ter gritado com vocês, por ter sido grosso e por ter pegado o carro sem permissão. E por provavelmente ter arruinado o feriado de vocês. — Nesse ponto, Gray sentia uma culpa inimaginável. Não imaginara que chegaria a tanto. — E...

— E? — açulou Clarisse, arqueando uma sobrancelha e pondo uma mão na cintura.

— E eu entendo se vocês estiverem planejando me castigar por isso — murmurou, se esforçando para neutralizar o azedume na própria voz.

Ela suspirou, como se não fosse isso que quisesse ouvir.

— Adam. — Ela voltou-se ao pai, fazendo um aceno com a cabeça indicativo para que se aproximasse.

Confuso, Gray observou enquanto o pai avançava e retirava algo que não havia reparado que escondia atrás das costas: uma folha de papel. Levou menos de cinco segundos para realizar-se do que se tratava.

Era aquele seu teste de Química, cuja nota recebida não fora exatamente uma louvável. Devia ter previsto que aquele momento aconteceria mais cedo ou mais tarde.

— Quando pretendia nos contar sobre isso? — quis saber o pai, num tom imparcial.

— Não pretendia — admitiu, balançando os pés, depois de um minuto de silêncio.

— Gray...

— Eu sei. Eu sei, tá legal? Desculpe decepcionar e não estar à altura das expectativas. — Irritou-se em antecipação. — Mas não foi a pior nota que eu já tirei, vocês sabem disso. Além do mais...

— Mas também não é a primeira vez que tira uma nota ruim, Gray. — Finalmente, a armadura que sua mãe conservava pareceu deteriorar-se, e ela sentou-se ao seu lado na cama, com um olhar de algo próximo à empatia. — Ou a segunda. Uma nota ruim ou outra não tem problema, e não estamos exigindo que tire integral em todos os testes. Já falamos sobre isso. Essa sua decaída é preocupante, Gray, e você jurou que iria se esforçar mais.

Gray não disse nada.

— O que está acontecendo, Gray? — interrogou seu pai, compassivo.

Ele simplesmente encolheu os ombros e estendeu o próprio silêncio. Não estava de fato acontecendo alguma coisa, mas sabia que, se dissesse isso, eles não iriam acreditar.

— Se continuar assim, se você não for mais responsável com seus estudos, eu e sua mãe não veremos outra escolha a não ser a de te mudar de escola.

Seus pais provavelmente esperavam que sua reação fosse explosiva, mas ele, na verdade, não estava surpreso. Desapontado, mas não surpreso. Já tinha se acostumado com mudanças contínuas de escola por conta de quando era mais novo, afinal, apesar de os fatores para tal da época divergissem bastante dos atuais.

Por um momento, ponderou se valia a pena contestar. Dizer que isso o prejudicaria mais do que o beneficiaria, e que a lógica deles não fazia sentido.

Por fim, apenas disse, quase num sussurro:

— São só notas. Posso recuperar.

Sua mãe levantou-se.

— Não falta muito para você ir pra faculdade, Gray. Sabe disso. Suas notas são importantes, quer você queira ou não. Você provavelmente terá que fazer algum reforço escolar se continuar assim.

Ele anuiu, mudo.

— Ah, e a propósito... — Ela apanhou seu laptop da cama, segurando-o debaixo do braço. — Sem computador por dois meses.

Gray não encontrou forças para protestar. Assistiu, desolado, sua mãe sair do quarto sem olhar para trás, e seu pai segui-la, sem dizer uma palavra.

Mas então, para sua surpresa, Adam reapareceu à porta quase no mesmo momento, e anunciou:

— Depois também quero conversar com você a sós, ok? De pai para filho. — Ele deu uma piscadela caricata, provavelmente a fim de elevar o bom humor do filho. Dando-se conta de que não obtivera êxito algum, ele partiu, desalentado.

E, finalmente, Gray foi deixado sozinho com os próprios pensamentos, não encontrando melhor solução para seus problemas do que simplesmente deitar-se e adormecer.

 

# # #

 

Gray acordou do sonho como se tivesse estancado em plena queda livre: sentou-se na cama em um rompante, enquanto o coração, insurgente, bombeava sangue para o resto do corpo com uma velocidade alarmante.

Agarrou o aparelho celular depois de tatear às cegas por ele no criado-mudo, e, às pressas, acionou a lanterna que ele disponibilizava. O campo de alcance da luz era o suficiente para que o quarto não continuasse um breu, alquebrando a escuridão, mas Gray não ficou tão aliviado; não era como se tivesse desconfiado que algo o espreitasse ali, resguardando-se na escuridão. Apenas imaginara que alguma luz fosse confortá-lo. Equivocara-se. Debilitado, deixou o dispositivo sobre o tampo do criado-mudo de pé, apoiado na parede, para que continuasse iluminando parcamente o recinto, já que a lâmpada de seu abajur estava queimada.

“Merda, controle-se” ralhou consigo mesmo mentalmente, ao se dar conta de que seu corpo inteiro tremia. Era como se estivesse desgovernado, como se um titereiro manipulasse suas reações. “Para com isso.”

Não demorou muito para que percebesse que chorava, o que não o deixou muito melhor. As lágrimas vertiam, tão incessantes quanto o batimento cardíaco, tão violentas quanto o aperto em seu peito. Depois de desistir de tentar enxugá-las, Gray encostou a cabeça no encosto da cama, fitando o teto desgastado do quarto, à meia-luz. Por que diabos  aquilo estava acontecendo? Por que aquilo voltara à tona tão de repente, depois de tanto tempo, e por que cargas d’água ele estava reagindo assim?

Gray pôs uma mão sobre a boca quando sentiu o primeiro soluço se formar no âmbito de suas cordas vocais. Manteve-a ali, enquanto a outra se espalmava sobre o peito, sentindo as marteladas do coração contra ela, mas no fim desamordaçou-se para que conseguisse estabilizar mais efetivamente a respiração errática; inspira pelo nariz, expira pela boca, inspira pelo nariz, expira pela boca.

“Porra, era para eu ter superado, não era? Então por quê?” Mais um soluço irrompeu de sua garganta, mas não tentou detê-lo dessa vez.

Não saberia dizer quanto tempo transcorreu para que, enfim, pudesse considerar a si mesmo um pouco mais calmo; a respiração já se normalizava e não se sentia mais tão atarantado quanto antes. As lágrimas, porém, continuavam escorrendo por seu rosto, e, embora se sentisse culpado por estar derramando-as por algo tão trivial quanto um pífio sonho, não media esforços para evitar que molhassem a camisa de seu pijama.

Quando finalmente conseguiu clarear a mente, tentou se lembrar melhor dos outros pormenores do sonho: do que se tratava exatamente, onde se passara, que cenas poderiam tê-lo deixado tão abalado. No entanto, apesar de toda sua dedicação, nada, nem sequer um mísero feixe, lhe vinha à mente para sanar essas dúvidas.

Exceto pela certeza de que ele estivera nele.

Por mais que se culpasse por isso, e por mais que um dia tivesse desejado poder honrar sua memória jamais se esquecendo de seu rosto, jamais deixando de pensar nele, Gray, de alguma forma, já se sentira bem por saber que um dia a imagem dele fosse ser obliterada de sua mente, enterrando-se cada vez mais em oblívio; porque, talvez, fosse doer menos se assim fosse.

Depois de tudo, depois de tanto tempo sem pensar nisso, ele se perguntava como podia parecer tão recente naquele momento, como se tivesse o visto pela última vez no dia anterior.

E de como um dia ele fora capaz de pensar que conseguiria se esquecer.

Scott.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então... QUEM É SCOTT O QUE ACONTECEU POR QUE O GRAY TÁ ASSIM QUE ONDE QUANDO QUEM
MONTEM SUAS TEORIAS, GUYS.
E YAY MAIS UMA VEZ POV DO GRAY
UM MONTE DE PERSONAGENS NOVOS SENDO APRESENTADOS YAY Deem boas-vindas à Alyssa, à Tyria e, quem sabe, ao Sky (eu realmente espero que ele venha a ter mais alguma participação nessa história POSKSPOK) sz
Por favor, comentem o que acharam! Esse capítulo também me deixou bastante insegure, devo admitir :'D E sinto muito pela escassa dose de GrayxTyler, again, mas né, não pode ter romance toda hora -q
Próximo cap já ta planejado e vai ser do ponto de vista do Tyler, mas sem previsões de postagem, sorry.
Bom, até mais o/



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Maybe Someday" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.