Maybe Someday escrita por SomeKilljoy


Capítulo 10
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Chegamos ao capítulo 10! o// Dois dígitos, finalmente! ~faz dancinha da vitória~
Acho que vocês já viram que nunca vou tomar vergonha na cara para parar de pedir desculpa pelos atrasos iminentes o3o Aconteceu a mesma coisa que o capítulo passado e cismei de reescrever tudo quando já tava com 3k, huahsuahuas.
Mas enfim! Devo agradecer a todos os leitores (mesmo os fantasminhas, adoro vocês também!) que continuam a me acompanhar apesar dos trancos e barrancos, especialmente à Lariez (Comentou em todos os capítulos! lindona sz), ao KaiKun e à Karol Fernandes (pelas mps - eu não esqueci delas, viu? sz).
O capítulo ficou enorme, I know. :v Mas espero que gostem!~
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/553622/chapter/10

Não era nenhum segredo que Tyler tinha lá suas dificuldades.

Quando era mais novo, ainda na época do fundamental, seus pais armavam complôs com professores para arremessarem-lhe conselhos nas salas de coordenadores dos colégios. Todos eles eram cognoscíveis e óbvios, até para crianças de sua idade. Ele sabia que era crucial sua participação nas aulas e maior interação com os colegas de classe. De alguma forma, já tinha uma mentalidade para compreender que era pura sorte não ter sido vítima de bullying e que não se tratava de uma overdose de bonomia dos outros garotos da turma. Todas as vezes, engolira o que gostaria de retrucar, mesmo quando lhe perguntavam e tentavam com afinco extrair dele como se sentia quanto a isso – esclarecer que ele sabia se enturmar sim, e que também conhecia meios de autodefesa caso necessário. Só não via a razão de ter de conversar com todo mundo – se ele não tinha interesse, por que precisaria dar-se o trabalho de articular palavras o tempo todo?

Além do mais, e se ele dissesse algo errado?

Claro que aqueles comportamentos se amainaram notoriamente com o decorrer do tempo – na verdade, seus pais ficaram muito felizes em saber, eles se transmutaram em apenas espectros do passado quando começara o segundo fundamental. Tyler parecia outra pessoa em questões de socialização, e não tinha sido necessário nenhuma passagem por psicólogos nem nada do tipo. Já havia adquirido maior amigabilidade – muito maior, aliás – e, embora talvez não tivesse tanta facilidade em formar elos quanto outras pessoas, se encontrava muito bem assim.

Talvez entendesse por que havia se recordado daquilo justo naquele momento.

As memórias estavam nítidas demais e apenas serviram para lembrá-lo de que, se aqueles comportamentos de infância eram apenas fantasmas distantes, ele realmente não estaria tão autoconsciente deles depois de tanto tempo, sendo que nem era a primeira vez que isso voltava para atormentá-lo.

Tyler sempre fora ruim com respostas imediatas. E ruim com palavras no geral. E ruim para lidar com massas de preocupações pululantes.

Mas ele odiava, sobretudo, agir sob pressão.

Podia ser exagero ou drama por parte dele, mas sentia como se todos seus defeitos pueris quanto a essas coisas estivessem sendo colocados à prova no exato momento. Podia estar beirando o ridículo, mas, se acabasse sofrendo um acesso de pânico, ele tinha seus motivos.

Por sorte, Gray parecia entender. Ele mostrou um sorriso compassivo, abrandando a atmosfera meio impaciente em volta dele, quando o moreno tentara dizer alguma coisa a mais, entreabrindo os lábios a fim de emitir algum som, e a única coisa que saíra por entre eles foi um suspiro frustrado.

— Vou esperar, então. Pacientemente. — garantiu-lhe, também, emendando a última parte com um leve trejeito, e Tyler compreendeu tratar-se de uma meia-verdade. Ele riu, grato por Gray conseguir (quase) sempre soar um tanto apaziguador. Se dependesse dele, aquele clima tenso perduraria para sempre. No entanto, isso não o deteve de suster inconscientemente a respiração quando o mesmo se adiantou em direção a ele e repousou uma mão em sua cintura, perigosamente próximo. Relanceou-o enquanto Gray esticava o pescoço e olhava para os lados, que nem ele mesmo tinha feito minutos atrás, para depois depositar um beijo rápido e casto em seus lábios e se apressar em informar: — Olha, não esquenta. Ninguém precisa saber.

Tyler se afastou um passo, tanto para ter espaço para capturar o oxigênio requisitado quanto para se prevenir no caso de alguma aparição inesperada. Depois que foi se tocar que tal ação pudesse ter sido um tanto fria e destoante com “o clima” que se formara ali.

Isso o fez lembrar que não fora exatamente assim que atuara quando beijara o outro pela primeira vez em frente ao shopping...

Meneou a cabeça ligeiramente, varrendo tais pensamentos para os escanteios. Tinha que considerar que o pai de um deles poderia ser a “aparição inesperada” na situação atual.

— Eu sei. É só que... — Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça e balançou-se nos calcanhares. — Só quero ter certeza de que vá dar tudo certo.

Curiosamente, isso pareceu prontificar Gray a proclamar alguma coisa.

— Escuta, Thay. Não tem essa de sim ou não e certo ou errado. — Tyler ergueu as sobrancelhas. Ele pareceu ponderar por um instante se devia ou não proceder. — Sabe, você não pode ter medo de tentar, porque isso já te impede de sair bem-sucedido. Se você for olhar para onde pisa toda hora, vai tropeçar e cair. E não vai ter andado nada, e muito menos aproveitado a caminhada. — Ele deu um sorriso meio embaraçado, como se descresse que acabara de fazer um discurso daqueles, mas mesmo assim concluiu: — Você tem que viver. Entende o que digo?

A pergunta não deixava de ser retórica, mas Tyler assentiu, calado. Não saberia o que responder naquelas circunstâncias. Se olhasse em retrospecto, admitiria que qualquer um teria aplaudido, mas no momento estava embasbacado demais internamente para ter quaisquer palavras para dizer que era exatamente aquilo que precisava ouvir. Então só retribuiu o olhar que tinha sobre si, meio com vontade de se enterrar, meio com vontade de exigir que Gray parasse de surpreendê-lo, porque ele sinceramente não via a necessidade de ficar debilitado toda santa hora, Deus.

Com um timing incrível, um carro estacionou junto à sarjeta e uma buzina soou alta em seus ouvidos, despertando a ambos do estupor coletivo. Tyler até tinha um pouco de sorte por não ter de ser ele a intervir naquele silêncio. Eles olharam para o automóvel e gastaram um tempo razoável até que caísse a ficha.

— É meu pai. — Gray segredou o óbvio, encaminhando-se até o veículo e acenando a Tyler, sem faltar um sorriso. Ele acenou e sorriu de volta, assistindo-o abrir a porta dianteira do carro, adentrar a cabine, dar-lhe outro aceno de despedida e desaparecer gradativamente de seu campo de visão quando o carro se pôs a andar e ganhar velocidade, até que contornasse a esquina à direita.

Tyler soltou um longo suspiro pela boca, e pressionou as mãos uma contra a outra para refrear o tremor por causa do frio – uma hora estava frio, outra calor, não sabia dizer se isso era obra do aquecimento global ou se ele que tinha algum problema de saúde mesmo. Já tinha se acalmado e domado razoavelmente o coração, mas levaria um tempo para digerir todos os acontecimentos dos últimos dias, como sempre levava.

Ele sorriu, porém. E, enquanto girava nos calcanhares e por fim entrava em casa, subindo a leva de escadas até o quarto, exultava-se em perceber que estava até se divertindo com o novo rumo que sua vida estava tomando nesses últimos dias.

 

 

Mas, como tudo que é bom dura pouco, o fim de semana se dava um fim e agora precisava enfrentar a montanha de tarefas de casa deixadas sem fazer e adiadas pra última hora.

Aaaaargh — reclamou a altos brados, jogando-se na cadeira em frente à escrivaninha, onde havia separado por ordem de urgência os trabalhos para a escola. Era quase uma pilha, e essa visão fazia com que pontadas de dor eclodissem por trás dos olhos. — Eu sabia que estava esquecendo alguma coisa. Devia ter feito isso mais cedo. Merda merda merda...

Claro que, em meio a toda aquela surrealidade espontânea de um medíocre fim de semana, ele se esqueceria que a vida exigia obrigações também. Francamente? Queria arrancar todas as páginas das apostilas para amarrotar até deixá-las no formato de esferas perfeitas e, então, usá-las para praticar sua precisão ao mirá-las na lata de lixo na outra extremidade do quarto. E depois podia usar a desculpa que o cão comera o dever. Se pelo menos tivesse um cão.

Além disso tudo, outra coisa se mostrava ali presente para sobrecarregá-lo – se não se enganava, o prazo para entregar o desenho para o concurso que havia se inscrito era dali a dois meses. Ele só se lembrara da existência desse detalhe agora, o que fazia jus a sua característica de esquecido. Podia parecer um espaço de tempo abissal para a execução de um mero desenho aos olhos de terceiros, mas Tyler sabia melhor do que ninguém que, quanto mais se precisa do tal do “tempo”, maior a propensão dele te deixar na mão.

“Vou ter que me organizar em planos” realizou-se ele, resignado. “Vão vir alguns testes antes do recesso de natal e preciso me concentrar. Se não tiver outro jeito, vou ter de desistir desse concurso – não posso me distrair demais com meu hobby.” Embora se sentisse com o rabo entre as pernas, ater-se a comentários irônicos sobre si mesmo era bem atrativo: “Mesmo sabendo que minhas distrações sejam outras.”

Ele fisgou o celular do bolso traseiro e, destravando o monitor, viu que podia ter respondido algumas questões das páginas demandadas dentro desses dez minutos que gastara de não fazendo absolutamente nada. Mesmo assim, sentindo-se um rebelde, decidiu ir para a lista de contatos, clicou na aba dedicada ao número de Gray e, após uns instantes devaneando, enviou-lhe um recado com os dizeres “Você não me disse o que diabos aconteceu com Mikey ainda, seu besta.”

Depois disso, acomodou o aparelho de volta ao bolso da calça e se viu desafiando a si mesmo a concluir todos aqueles deveres antes de cair no sono.

 

# # #

 

Gray não somente não respondeu a mensagem como também não a visualizou, nem mesmo mais tarde – se o conhecia bem, pensava que havia conseguido o mesmo problema que Tyler e precisara dedicar algumas horas a fio para o fruto de sua irresponsabilidade.

Foi razoavelmente fácil acordar de manhã. Ele estava até com bom-humor, o que era uma espécie de milagre universal, no que se dizia respeito de manhãs de segundas não somente a ele, mas a todo o resto do mundo. Tyler tinha se imaginado despertando de um sono ferrenho com a cara nos livros, com uma baita dor nas costas e com torcicolo. Alguns materiais estariam espalhados pelo chão, também, porque ele se mexia durante o sono e teria derrubado a maioria dos objetos ao seu redor. Apenas uma página dentre as mil e uma estaria feita e ele estaria irrevogavelmente ferrado. No entanto, dessa vez, sua realidade não condizia em nada com suas previsões derrotistas.

Quando os olhos se abriram naturalmente, sob a única influência de seu relógio biológico e não de um alarme revoltante, ele se achou deitado na cama, debaixo de no mínimos três camadas de cobertores. E a seus pés, Esther, virada ao avesso na cama, acolhia-se com travesseiros e lençóis cor-de-rosa trazidos do próprio quarto, por pouco não se esborrachando no chão, dado ao fato de Tyler não ser lá muito generoso quanto à área disponível ali.

“Como foi que eu não notei ela vindo dormir aqui?” ele se perguntou, perplexo. Recolheu as pernas estiradas espaçosamente sobre o colchão com cautela, para não perturbar o sono leve da irmã. Depois, retirou as cobertas de cima do corpo sorrateiramente, tentando fazer o menor barulho possível. Assim que se levantou, evitou bocejar ruidosamente como de costume, checou o horário no relógio em cima do criado-mudo – estava meia hora adiantado ao alarme do despertador –, e decidiu que não tentaria recuperar o sono.

Deparou-se os de materiais escolares espalhados pela escrivaninha (tá, isso já não era nenhuma surpresa) e, quando obrigou-se a arrumá-los, folheou algumas das páginas exigidas pelos professores e foi abordado por uma grande onda de satisfação ao vê-las todas adequadamente – ou não tão adequadamente, partindo que “legibilidade” certamente não era a serventia ali – preenchidas por sua caligrafia. Não fazia ideia de como fora capaz de aplacar o próprio desafio (que lhe parecera impossível, de verdade), e o fato de as últimas horas da noite anterior estarem totalmente eclipsadas não ajudava muito a entender isso tudo. Mas, com uma nota mental de que podia se estimar um pouco mais, decidiu relevar a situação.

Enquanto realizava o ritual metódico de sempre para ir à escola (foi bem difícil encontrar o uniforme no armário estando o quarto no maior breu, apenas com a luz vinda do banheiro de porta aberta como auxílio, já que não queria ligar as luzes por causa da garota ali presente – tateara todos os cabides e fizera um monte de mudas de roupas caírem de onde estavam e se amarrotarem, deixando-o com a terrível constatação de que não adiantara pra nada ter “organizado” o guarda-roupa. E ainda batera a cabeça na porta, porque, claro, um dano físico não podia faltar tratando-se dele), não teve como não pensar no porquê da irmã caçula ter se socorrido em seu quarto. Ou em como; tinha quase certeza que mantivera a porta trancada.

Esther já havia passado de sua fase de pesadelos ou de temor da solidão do próprio quarto fazia tempo. Sim, ela era do tipo de criança que alegava ter um monstro no armário ou embaixo da cama (ao contrário de Tyler, que nunca tivera aquele tipo de problema e sempre fora aficionado por filmes de terror), mas essa etapa da vida dela durou no máximo alguns meses. Nela, ela geralmente ia dormir junto aos pais, porque Tyler, por mais próximo que fosse da irmã, não se sentia muito à vontade com outra pessoa no quarto dele. Contudo, em casos extremos, Esther o importunava dizendo que preferia ali e ele cedia, estendendo o colchonete confortável com o qual a irmã se apegara – às vezes, ela optava por dormir nele em vez de sua razoavelmente enorme cama de dossel – no chão ao lado de sua cama. E ela dormia feito um anjinho, tão em paz que ele sinceramente cogitava que o lance dos pesadelos fosse apenas um pretexto para ela não dormir sozinha.

A conclusão mais concebível era a que seus pais andaram brigando de novo, e suficientemente para atormentá-la e induzi-la a se afugentar ali, com ele. Tyler praguejou baixinho. Se fosse por isso, gostaria de não ter dormido feito uma pedra, porque, se as coisas houvessem sido graves demais, poderia ter sido necessário intervir.

Assim que finalizou sua arrumação, apagou a luz do banheiro e enganchou as alças das mochilas nos ombros. Antes que abrisse a porta do quarto, ele direcionou seu olhar e o facho de luz do celular à irmã. À meia-luz não dava para ter certeza, mas sabia que ela devia estar ressonando pacificamente. Engoliu em seco com o pensamento de que, se o estado do relacionamento de seus pais agravasse, seria ele a cuidar dela de fato.

Ponderou uma última vez se não seria melhor se ele acordasse Esther, para que ela lhe desse uma breve explicação, ou só para que ela pudesse ir ao próprio quarto mesmo, mas isso seria maldade. Não era só porque considerava uma injustiça ter de acordar de manhã que devia descontar nela, né?

“Mas e se ela mexer nas minhas coisas...?” Ele pôde ver seus lápis de colorir com as pontas quebradas e as lascas deles presas no apontador diante de seus olhos – isso sem contar os muitos que sumiriam – o que quase o fez choramingar. Mas se absteve a soltar um suspiro resignado, com a promessa que perdoaria sua irmã só dessa vez se ela o fizesse e saiu do quarto, fechando a porta com cuidado para não fazê-la ranger.

A garagem eletrônica já havia sido acionada quando ele olhou pela janela da cozinha, depois de ter chegado ao cômodo no andar inferior, e sua mãe estava no banco do motorista do carro; sua silhueta indicava que estava debruçada sobre o volante, os cabelos loiros escoando sobre o rosto – provavelmente, estava cochilando. Como não queria fazê-la esperar mais, esquadrinhou a cozinha rapidamente para ver se tinha algo ao alcance e pegou apenas um pacote de snacks de cima da bancada, para comer no carro.

— ‘Dia, mãe. — disse, a voz engrolada, quando enfim alcançou o automóvel e adentrou a cabine, já com o pacote aberto em mãos, após ter enfiado um punhado de salgadinhos na boca.

— Bom dia. — respondeu ela, se recompondo. Seus cabelos estavam tampando o rosto, então Tyler não podia ver sua expressão. Ela fungou e esfregou o nariz com o dorso da mão antes de perguntar: — Dormiu bem?

— É, aham... — Ele terminou de mastigar, atando o cinto e descendo o vidro. — E você?

Ela apenas anuiu com a cabeça antes de levar a mão à ignição, onde a chave já estava conectada. Enquanto dava partida no motor, ela olhou para ele com olhos vermelhos que contradiziam a resposta anterior, e depois para o saquinho de snacks em suas mãos, comentando despretensiosa:

— Pensei que não gostasse de comer de manhã.

Tyler deu de ombros.

— Sim, mas... não sei. Hoje me deu fome. Não faz mal.

Ela apenas assentiu de novo, virando a cabeça para dar marcha à ré e sair da garagem sem maiores problemas. Podia ser apenas uma impressão, mas sua mãe parecia mais contida naquela manhã. Ela não era tão silenciosa. Na verdade, mesmo cansada, conseguia ser um tanto tagarela, e Tyler era a melhor testemunha de seu falatório infindável (e normalmente meio invasivo, por sinal.)

Eles já estavam na metade do caminho e seu pacote de snacks já estava chegando ao fim quando ele notou um detalhe, quando ela tirara o cabelo do rosto e pusera uma madeixa atrás da orelha. Não era qualquer um que notaria, e nem ele se não estivesse tão atento às reações da mãe, como que em busca de uma confirmação de sua tese – mas estava lá, um detalhe que passara despercebido antes, bem em sua maçã do rosto.

— Mãe — insinuou-se, enfim. Ela olhou para ele espantada, como se só agora se desse conta de que estava ali com ela. Ele indicou seu rosto com um movimento de cabeça. — O que é isso?

A mulher automaticamente levou uma mão à ferida, roçando dois dedos nela, e disse um “Não é nada”.

Tyler começou a sentir o sangue fervilhar.

— Ele fez isso com você, não foi?

— O quê?! — indagou sua mãe, surpresa, girando o volante violentamente para desviar de uma moto que se materializara do nada, que saiu buzinando, fazendo o corpo de Tyler dar uma guinada repentina pro lado.

Mãe. Eu sei de tudo, tá? E, só pra constar, Esther também sabe. A propósito, sabia que ela está dormindo no meu quarto nesse exato momento? Os berros a assustaram. — Estava falando da boca pra fora, surpreso com a condescendência na própria voz. Não era intenção dele contar, principalmente por não ter certeza de nada e por não querer aborrecer ninguém. Mas, pelo modo como sua mãe pareceu do nada comovida e culpada ao mesmo tempo, viu que acertara em cheio.

— Está se referindo às discussões, suponho? — Ela suspirou. Acabavam de parar em um semáforo. — Elas tinham de acontecer algum momento, Thay... desculpe. Mas esse machucado aqui é realmente nada. Seu pai jamais bateria em mim! O que te fez pensar numa coisa dessas?

Ele vacilou.

— Eu... eu não sei.

— Ele me falou sobre como você o tratou, sabe? Como um conhecido qualquer, ou como uma droga de um adversário. Ele é seu pai, Tyler. Só quer o seu bem. Eu também fiquei chocada, aliás, chocada e cateadíssima com a notícia da viagem dele, mas nem por isso... — Ela meneou a cabeça e apertou o volante com mais firmeza.

— Mas isso foi a causa da briga de vocês! Não foi?

— Às vezes, as brigas são inevitáveis, Thay! — Ela disparou; Tyler quase pôde ouvir o troar da espingarda. Ela começou a gesticular efusivamente, ululando, e ele teria se preocupado com o volante e a segurança dos dois em outras circunstâncias. — Eu estava com raiva na hora. Joguei tudo para cima dele, e isso só alimentou o que quer que ele pensava sobre a situação, e ele arremessou tudo para cima de mim também. Foi um acúmulo de insatisfações extravasadas, okay? Por ambas as partes. A culpa não é só dele.

— Você não pode se culpar, mãe! Ele que- — tentou rebater, defendendo-a, o corpo já todo voltado para ela, a tira do cinto contra seu ombro incomodando-o e mantendo-o preso; mas foi cortado na mesma hora.

Basta. Tente encarar isso com um pouco mais de maturidade. — O semáforo liberou e ela fez uma pausa forçada, respirando com dificuldade, em êxtase. Ele estava da mesma forma, só que ainda mais abalado por dentro. Aquela fora a discussão mais acalorada que já tivera com a mãe, e ele categoricamente não se sentia bem com isso. — Essa conversa está encerrada.

Ele se endireitou na cadeira, cruzando os braços, enquanto ela integrava sua atenção na rua com um olhar fixo e um silêncio absoluto.

O pior era que Tyler sabia ser o errado ali. Só não estava a fim de admitir.

“Tudo bem” se viu pensando. “Isso não pode durar por muito tempo.”

Mas o tempo já tinha dado sinais de ser um pouco cruel nesse tipo de ocasião.

 

# # #

 

Se Tyler realizara a proeza de acordar de bom-humor, todo e qualquer resquício deste já tinha sido mandado às favas depois daquilo.

No entanto, tentou dosar a aura indesejada de “Não-se-aproxime” e até esboçou um sorriso. Não queria que Gray acabasse levando para o lado pessoal, nem que interrogassem o porquê da carranca, então manter o semblante suave era a melhor das opções.

Ele cumprimentou alguns colegas e sentou-se na cadeira designada, não muito satisfeito com o prospecto de ter que assistir aula. Registrou imediatamente Gray do outro lado da sala, que acenou e já estava encaminhando-se em seu rumo quando Lana, que já havia dado um “Oi, cara. Bom fim de semana?” a Tyler, o interceptou, fazendo o moreno erguer uma sobrancelha. Sentiu-se meio apreensivo; não se lembrava dos dois terem se aproximado ou algo assim, e não sabia dizer sobre o que falavam. Então se recordou que era com ela que Gray havia saído naquele "sorteio" de duplas, e, quando viu que a conversa entre eles estava até simpática – presumindo a partir das expressões faciais e gestos triviais –, deixou de se preocupar.

O sinal do intervalo pareceu levar uma eternidade para bater, e Tyler, com as mãos doloridas pelas anotações afobadas sobre a matéria nova recém passada, estava tão avoado pensando se tinha dinheiro o suficiente para comprar lanche no refeitório que nem notou Gray se aproximando até o mesmo barrá-lo na saída da sala. No fim, acabaram passando o tempo do intervalo juntos pela primeira vez propriamente dita, com a companhia de Cameron, que perguntou se estava tudo bem entre os dois – “Vocês pareciam ter criado uma rixa da última vez que os vi; tem certeza que não era nada?” Depois de afirmarem que fora só um desentendimento bobo, Cameron, meio incerto, acabou aceitando a explicação e os três recorreram a assuntos corriqueiros até o sinal bater novamente.

Com uma presença a mais, não houve nenhuma brecha para os dois se comunicarem da forma como Tyler supunha que queriam. Gray e ele só conseguiram ficar a sós – ou tão a sós quanto poderiam em um colégio – após o término das aulas e, como o último não podia perder o ônibus escolar, mal tiveram tempo para trocar algumas palavras.

Foi frustrante, e não aliviador, como Tyler esperara que fosse. Sentia alguma coisa comichando para sair, e era como se estivesse abrindo mão de todas as oportunidades para tal. Não havia lacunas a serem completas com o tipo de conversa que pretendia ter no colégio.

Que coisa? Uma resposta.

A verdade era que Tyler não tinha pensado na questão da forma como julgara ser necessário antes; mas ele não queria mais ter de pensar. Tinha medo de dar com o rabo entre as pernas e recuar caso o fizesse, dar com a boca na botija. E com motivos. Para chegar à conclusão de que realmente não queria ficar refletindo, precisara lembrar-se de que seria apenas um experimento a princípio, de conhecimento apenas dele e de Gray. Se não funcionasse... era só desatar. Não custava nada tentar. E... se não aceitasse logo, se hesitasse e pusesse adiante, estaria somente adiando. Pendências nunca são a melhor opção.

Havia questões revoltantes ali, também: Gray agora parecia querer arcar com a palavra dada, porque estava de fato "esperando pacientemente" pela iniciativa de Tyler. Nem sequer abordara o assunto. Sem pressão, barra totalmente limpa. Ele que estava se sentindo à espera ali. "Meu amigo, isso aqui é com você; você que me meteu nessa, então colabora" - estava quase a ponto de esclarecer-lhe isso. Quase.

Assim, esse esquema do não-tem-como-eu-falar-agora-melhor-mais-tarde estendeu-se ao longo de três torturantes dias. Podia ter contatado Gray online, com um torpedo ou uma chamada telefônica, mas perderia o efeito; falar pessoalmente parecia preferível, ainda que houvesse os contras de ele acabar travado ou engolindo o queria dizer.

Na quinta-feira, teve uma ideia. Não era a mais brilhante e ele não sabia porque não pensara nisso antes, mas lhe parecia bastante razoável para que ele pudesse se encontrar efetivamente com Gray e nem se assemelhava a um daqueles pretextos esfarrapados.

Por não saber exatamente os horários nem as datas do turno do outro, precisava ao menos deixar combinado tacitamente com ele de que pretendia vê-lo lá. Já foi bem intrincado ele conseguir insinuar-se sem soar suspeito, mas, claro, nem mesmo esse seu fiapinho de esperança podia sair incólume dessa.

— Ahn, você... — começara, depois de refletir muito se deveria. Os dois aguardavam Cameron sair da fila de espera do refeitório, escorados na parede a alguns centímetros dela; parecia estar se tornando um hábito gastarem os poucos minutos do intervalo juntos, dando voltas pelo pátio e, principalmente ,jogando baralho (por encheção de saco de Cameron, o qual Tyler nem sabia que gostava desse tipo de passatempo.) Ponderou mais um pouco, numa escolha minuciosa de palavras. Como verbalizar o que queria sem explicitar demais? — Como vão indo as vendas, você sabe, daquela loja? — “Qual o nome dela mesmo?” — Ahn... rentável?

— É mesmo, eu não te falei. — Gray disse, tirando um dos fones de ouvido. — Não tem como eu saber. Me demiti.

Alguma coisa dentro de Tyler esmoreceu. Provavelmente, era sua massa visceral deixando de engrenar.

— Por quê...?

— Ah, você tinha me perguntado outra coisa também, sobre o Mikey. Tá tudo bem agora. Ele ficou perdido por um tempo. Encontraram a criatura segunda-feira e, por incrível que pareça, estava ileso. Na verdade — Ele riu e olhou de viés para Tyler, que ainda estava embaralhado nas próprias conclusões. —, não sei como não avistou nenhum panfleto de “procurado” dele por aí.

— Tá, mas... Espera aí. Por que você demorou tanto pra me falar? Tá, tá, não importa... Só explica melhor esse negócio da demissão, e vê se larga de ser evasivo, porque depois eu quero sim esclarecimento sobre esse caso do Mikey e...

— Já entendi, Thay, calma. Vou te deixar a par de tudo, se quer tanto saber. — Gray deu um sorriso torto, fazendo com que Tyler quisesse dizer-lhe para parar de ser tão exibicionista, porque, meu Deus, ele não merecia aquilo, mas o restante da fala foi ainda pior: — Tá assim tão interessado em mim, hum?

Ele piscou, aturdido.

— Interessado o caramba. — resmungou, forçando-se a dirigir o olhar fixamente a um ponto qualquer à frente, de braços cruzados, de forma a não conseguir enxergar qualquer que fosse a reação de Gray pela visão periférica. — Para de falar merda.

— Você é uma figura, Thay.

— E você é muito implicante.

— Você gosta.

— É insuportável.

Mas você gosta.

Tyler atirou as mãos para o alto, se conformando.

— Tem razão, eu gosto.

Não pôde evitar dar uma espiadela na imperdível reação de Gray – descrente e, cara, como era bom ter esse gostinho, aparentemente sem palavras.

Parecendo se conter, o loiro soltou um misto de suspiro com bufo, enfiando as mãos nos bolsos da calça jeans, ainda não totalmente sério.

— Tyler...

Agora era sua vez de retribuir o sorriso enviesado.

— Eu?

Somente recebeu um ligeiro menear de cabeça como resposta. Tyler jogou um punho no ar como celebração de sua vitória. Mentalmente, claro.

“Como não gostar, não é?”

 

 

O rapaz estava quase aderindo ao movimento “Situações desesperadoras pedem medidas desesperadas”, após muito pensar e decidir parar de filtrar o que falar de acordo com o ambiente e a hora para deixar tudo sair aos borbotões mesmo, quando o destino se posicionou em sua causa. Ou quase isso.

Depois dos dez minutos restantes de intervalo reduzidos a um Tyler confuso tentando compreender as regras excêntricas de um novo jogo de baralho de invenção de Cameron e ao amigo alternando entre desvendá-las para ele e irritar-se por ter de perder o tempo com isso, enquanto Gray ria em surdina às custas de ambos, o anúncio do sinal do segundo período de aulas foi música para seus ouvidos. O que foi um bom presságio, porque, depois de alguns minutos, nenhum professor ainda havia dado as caras para lecionar o que quer que estivessem vendo em Física.

Assim que o horário livre se evidenciou e as conversas paralelas culminaram para uma arruaça interna, com pessoas deambulando de um lado para o outro e papeando com quem lhe dessem na telha, Gray se achegou, escolhendo a carteira mais próxima – pertencente a alguém mas no momento desocupada – para arrastar e colocar ao lado da sua, ignorando os materiais escolares alheios em cima do tampo da mesa. Antes que Tyler pudesse falar um “oi” ou algo assim, ele se acomodou no assento, ficando cara a cara com ele, e professou:

— É o seguinte. — O moreno se aprumou na carteira, ansioso. Só não sabia se positiva ou negativamente. Gray levantou três dedos da destra. — Amanhã, em primeiro lugar, eu vou ter, ahn, bolado algum evento legal para a gente ir. Nem que seja a maior trivialidade do mundo. Em segundo tópico, eu vou te convidar formalmente para sair. Em último, mas não menos importante lugar, você vai aceitar. Capisce?

“Você tá falando sério?” pensou Tyler, meio confuso.

— Ah, sim, esqueci de comentar. — Ele ergueu um quarto dedo. — Desta vez, você pode chamar isso de encontro.

O garoto não entendia como uma simples nomenclatura podia deixá-lo todo inibido. Mas conseguiu superar a tortura de ter as bochechas ameaçando corar ao simular um sorriso presunçoso.

— E se eu dissesse que tenho um compromisso urgente amanhã?

O primeiro instinto de Gray, aparentemente, foi perguntar:

— Com quem?!

— Ninguém importante... ah, qual é, estou só brincando. — revelou, dando lugar ao que quer que Gray fosse dizer, que estreitou os olhos em exortação, como se dissesse “Sua criatura asquerosa.” Ele riu e quis saber: — Mas para que premeditar tudo?

Recebeu um encolher de ombros como resposta.

— É meu jeito de garantir que siga o script. — Tyler devia ter feito alguma careta de desentendido sem querer, porque ele emendou: — Ou seja, de perguntar se está livre.

— Acho que sim.

— Ótimo.

E Tyler ficou lá, olhando, nem conseguindo focalizar direito o sorriso que lhe era endereçado por estar perdido demais, tão perdido que nem sabia como ou em qual ponto do diálogo se desnorteara. Esse era um dos fatos que comprovavam que estava mergulhado até o pescoço naquilo tudo. As íris de Gray não estavam tão acinzentadas naquele dia. Certo, ainda havia as nuances cinza, mas elas estavam mais... esparsas. O que predominava estava mais para um tom azul índigo, como o céu quando está apenas no começo de aparentar chuva.

Chuva... Chuva.

— Ei, o que vai fazer?

Tinha apanhado o bloco de desenho de dentro de uma repartição da mochila e passou a rabiscar um dos papéis em branco, depois de vasculhar o estojo à procura do lápis 6H. Não se importava se estivesse sendo espiado por cima dos ombros agora — ele já tinha visto outras obras suas mesmo, que nem eram lá suas favoritas. E ele não teve de rechaçar perguntas sobre o que era nem nada. Gray observava e o agraciava com silêncio, e isso era reconfortante.

Quando acabou o esboço mais primordial do mundo, não achou o resultado satisfatório e não deixou que isso fosse avaliado pelo outro, o que gerou protestos que foram deliberadamente ignorados, guardando o bloco às pressas. Depois o alteraria e daria mais retoques. Além do mais, aquele seria o primeiro dos rascunhos. Se fosse para chegar onde queria, sobreviriam mais no mínimo dois depois desse.

— Gray — chamou, de inopino.

Ganhou uma olhadela incerta, mas com um quê de curiosidade.

— Sim?

Respirou fundo, sentindo calor dos pés à cabeça.

— E-eu pensei naquilo... na verdade, não pensei. Pensei em não pensar. Achei melhor assim... — “Vamos, Tyler, para de balbuciar, seja mais objetivo. Agora você acaba o que começou.” Ele coçou a nuca. Nem sabia por que começara a falar tão subitamente. Tinha a sensação de estar engolindo uma moeda. — Minha intenção não é ser pressuroso, mas... se for para dar uma resposta de uma vez, ela é sim... e... — Como não sabia finalizar a sentença, deixou-a incompleta mesmo.

Gray oscilou a cabeça para o lado, refletindo, enquanto Tyler ficava se remoendo, condoído. Aquelo gesto significava que estava maquinando coisas a seu respeito. Isso lhe dava vontade de se esconder feito uma criancinha amedrontada. Se dar conta dessa vontade era ainda pior.

— Isso é tão estranho vindo de você.

Tyler se retraiu, e quase murmurou um “Desculpe”, mas percebeu que aquilo soaria patético e um tanto auto-depreciativo.

No entanto, o sorriso que se seguiu o fez sentir que tinha valido a pena.

— Eu adorei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Yooou, é isso. Comentários, opiniões? 'u'
Gostei de escrever esse capítulo por ter me aprofundado mais na abordagem do passado do Thay, sendo que ela tava bem escassa até aqui. Digamos que o desenvolvimento da fic tá melhor agora. e-e
Vou estipular um prazo de um mês para vocês não pensarem que a fic foi abandonada se eu demorar demais, tá? :v
~final gay feels~
Até mais, lindezas!~
PS: Eu escrevi uma oneshot original yaoi pro desafio do mês de Abril. Para quem quiser dar uma olhadinha, segue-se o link: http://fanfiction.com.br/historia/607370/Familia/