Na Melodia do Amor escrita por J R Mamede
Em casa, meu pai estava com o tio Bill e com o tio Jack. Os três são músicos, fazem composições para grandes gravadoras e para comerciais.
O tio Bill e o tio Jack não são meus tios de verdade. É que eles estão sempre presentes trabalhando com o meu pai no estúdio que ele criou no porão de casa. Desde que eu me entendo por gente, tio Bill e tio Jack pertenceram à família.
Eu não tive e nem tenho uma presença feminina em casa; cresci com três marmanjos cuidando de mim. Minha mãe morreu quando eu tinha apenas cinco anos, deixando meu pai e eu sozinhos neste mundo.
Eu não me lembro muito dela, e isso me deixa triste. Meu pai sempre está me mostrando fotos dela, deixou uma na mesinha de cabeceira do meu quarto para eu olhá-la e conversar com ela a hora que eu quiser. Às vezes ele conta histórias que, para muitas pessoas são inúteis e insignificantes, mas para mim, são como tesouros do Rei Salomão.
As histórias são mais descrições como, por exemplo, o caminhar dela, o jeito de mexer no cabelo, o arquear de uma das sobrancelhas quando estava brava.
Os meus pais se conheceram na faculdade. Minha mãe estudava História da Arte e meu pai Música. Apaixonaram-se à primeira vista em uma festa universitária.
Após o término dos estudos, se casaram e, dois meses depois, eu já estava me formando no ventre de mamãe.
É difícil não ter uma presença materna por perto, principalmente quando eu estou crescendo e surgem os problemas femininos.
Lembro-me da primeira vez em que fiquei menstruada e fui falar com o meu pai e com os meus tios. Eu estava tranquila, já sabia como agir, pois na aula de Sexologia da sétima série ensinara às meninas a usarem absorventes e o que a menstruação significava para o corpo da mulher. Então, quando eu disse que havia menstruado, meu pai e meus tios receberam a notícia de forma desesperadora.
– Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – gritava meu tio Jack.
– Ela está sangrando pela vagina, Bruce! – gritava meu tio Bill para o meu pai.
– Eu sei, Bill! Eu sei! – dizia o meu pai. – Precisamos levá-la ao médico... Chame alguém... Faça alguma coisa, Jack!
– Ai, meu Deus! – continuava meu tio Jack.
Deixei os três na sala andando desesperados de um lado para o outro, e fui para o meu quarto com a consciência tranquila de ter contado a eles. Já havia me precavido comprando absorventes para quando isso acontecesse.
Após algumas horas, os três surgiram no meu quarto mais calmos. O tio Jack carregava o seu violão e o tio Bill e o meu pai seguravam um pedaço de papel.
– Jujuba, - começou o meu pai. – Os seus tios e eu queremos pedir desculpas pela nossa reação quando você disse que... Você sabe...
– Quando eu disse que menstruei, pai. – completei para ele. – Não precisa ter medo de dizer isso.
– Eu sei, eu sei. – concordou. – É que é difícil ver que você está crescendo.
Eu assenti com a cabeça, compreendendo que era mesmo difícil para o meu pai e para os meus tios também verem que eu estava me tornando uma mulher.
– Então viemos aqui, - continuou o tio Bill. – para lhe dizer o que é a menstruação...
– ...e as transformações que ela faz no seu corpo. – completou o tio Jack, começando a tocar o seu violão em uma melodia animada.
– Não tenha medo da menstruação – começou a cantar o meu pai olhando o papel que carregava.
– Ela não passa de uma transformação. – continuou meu tio Bill.
Cada verso intercalava entre o meu pai e o tio Bill, e o resto da letra era a seguinte:
“O seu corpo está se desenvolvendo
Isso só mostra que você está crescendo.
A menininha está se tornando mulher,
Só não dá bola para qualquer mané.”
E o refrão os três cantavam juntos:
“Todos os meses o sangue vai descendo
Da sua vagina, sentirá algo se movendo.
Só muito cuidado com a gestação,
Pois gravidez indesejada, não é mole, não”
E voltava para os versos intercalados:
“O sexo só é seguro quando não feito
Mas se fizer, que seja de um bom jeito.
Para se proteger de doenças e contaminações,
As camisinhas são as soluções.”
E voltava para o refrão.
Eu ri muito na hora, me diverti cantando a nova música que meu pai e meus tios comporam para mim.
A música ficou grudada na minha cabeça por mais de um mês. Eu me via cantarolando-a ao tomar banho ou ao fazer minhas tarefas domésticas.
– Como foi o primeiro dia de aula, Jujuba? – perguntou o meu tio Bill quando eu entrei em casa.
– Normal, tio Bill. – falei. – Nada de extraordinário.
– Vai lavar as mãos para almoçar. – disse o meu pai. – Temos lasanha hoje.
–Eba! – comemorou o tio Jack.
Almoçamos a deliciosa lasanha que o meu pai fizera. Tio Jack repetiu três vezes; era impressionante como uma pessoa tão magra comesse tanto.
– Cada dia mais bonita, hein, Jujuba. – comentou o tio Jack.
– É sim. – concordou o tio Bill. – Cada dia mais parecida com a Jane.
Falar da minha mãe era sempre um choque para mim, como se o simples pronunciar de seu nome me desse um frenesi estranho. Era falar de alguém que eu amo tanto, mas que eu não lembro.
– Já sabe o que vai fazer ano que vem quando sair da escola? – perguntou tio Jack, metendo outra garfada de lasanha na boca, despertando-me do meu transe.
– Já sim. - respondi. – Farei História da Arte, igual a minha mãe.
– É uma pena, – brincou o meu pai. – pois toca piano como ninguém e tem uma linda voz.
Não acreditava muito quando o meu pai dizia que eu cantava bem. Para mim, ele só era um pai que coloca sua filhinha no topo do mundo, engrandecendo-a e exaltando-a.
Quanto ao piano, eu sei tocá-lo bem, mas não sou nenhum Mozart como o meu pai pensa.
– Ela me ajudou na canção do comercial da ByeGripe. – falou meu pai orgulhoso.
– É mesmo, Jujuba? – disse tio Bill. – Então toca lá para ouvirmos.
– Ai, gente!
– Toca! Toca! Toca! – um coro surgiu das três vozes masculinas que davam murros com as mãos fechadas com garfos e facas na mesa.
Fui até o piano, toquei e cantei a melodia animada que o meu pai produzira:
“Se você não está legal,
Com ByeGripe sua vida volta ao normal.
A dor e o mal estar
Não irão mais te perturbar.
Com ByeGripe a gripe some geral
E você fica sensacional.”
Os três me aplaudiram com entusiasmo, como se eu houvesse cantado uma ópera.
– Cada dia mais afinada, hein, Jujuba. – exaltou tio Jack.
– É mesmo. – concordou tio Bill. – Deveria ir para este ramo, como o seu velho pai e seus tios maravilhosos.
Realmente, eu fiquei muito em dúvida qual carreira seguir ano que vem quando o colégio acabasse. Música era a minha paixão, entretanto, cheguei à conclusão de que História da Arte era o meu amor, assim como a minha mãe.
Talvez eu estivesse tentando me conectar com ela de alguma forma.
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