Crônicas do Pesadelo {Interativa} escrita por Dama dos Mundos, Kaline Bogard


Capítulo 68
Como fazer uma boneca /Parte II


Notas iniciais do capítulo

Yei, galera, eu voltei!
Viram, nem demorei muito (só 2 meses, 2 meses não são nada. q).

Antes de tudo, contento-me em dizer que CdP passou as 9.000 visualizações! O que, para uma fic que não tinha muita pretenção além de provar que Interativas poderiam ter roteiros complexos e personagens bem trabalhados, é bastante incrível.
Mais uma vez eu agradeço cada um que acompanhou, favoritou ou simplesmente passou por aqui.
Talvez CdP chegue aos 10.000? Só os Deuses sabem! A única coisa que posso afirmar categoricamente é que vou terminar isso aqui.
Nem que leve mais dois anos. Rsrs


Bem, esse capítulo realmente demorou para sair, ele ficou bem grande e eu fui escrevendo por pequenas partes de cada vez, ora por causa da falta de tempo ora por conta da inspiração ir passear no meio dele umas vinte vezes.
Enfim... eu espero que gostem.
Boa leitura para todos vocês ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/548522/chapter/68

Vale das Estrelas.

 

 

Nyx ficou calada por alguns segundos, como se estivesse degustando aquela resposta, uma que ela certamente não gostaria de escutar, visto sua expressão. Gravor podia entender em parte aquela indisposição de envolver-se em uma guerra… ele não era tão antigo quanto muitas pessoas que conhecera, mas todos que o eram diziam que a Era de Pesadelo e o que veio depois fora terrível. Muitas vidas foram perdidas, e aquela aparente “paz” que havia nos dias atuais era uma farsa, apenas um prelúdio para algo pior. Se Pesadelo retorna-se a Meroé, saindo de sua prisão, ele poria facilmente fim a tudo, já que as raças tinham tendência a não se entenderem.

Estando ali, no Vale das Estrelas, aquela ansiedade ficava ainda mais compreensível. Gravor pisara ali com os próprios pés e respirara aquele ar, se perdera naquele pedaço tão tranquilo do mundo, tão diferente das coisas horríveis que ocorriam o tempo todo em quase todos os outros pedaços de Meroé. Era óbvio que Nyx, Frosty ou qualquer um dos outros não quisessem envolver aquele povo, aquele refúgio, em uma batalha. Mas Anamorph era uma vidente. E ela deixara claro que uma guerra aconteceria, independente do que fosse feito.

Ele podia quase escutar engrenagens metafóricas girando na cabeça de Nyx, tentando encontrar alguma solução, qualquer que fosse. Ela mordeu o lábio inferior, balançando a cabeça logo em seguida. — Que seja, então.

Os olhos peculiares da guardiã se fixaram por alguns segundos na mestiça, após os quais ela assentiu com a cabeça, voltando a recostar-se naquele divã improvisado.

— Você não aceita tal coisa.

— Acha mesmo que eu aceitaria?

— Considerando que sou eu que estou dizendo e que veio até aqui procurando justamente essa resposta, é… previsível. — a guardiã deixou vagar sua atenção para Gravor, as asas gigantescas farfalhando com suavidade. — E você?

— Eu concordo totalmente com ela, tipo… nada de guerras por aqui.

— Não é sobre isso que estou falando. Quero saber se há algo que deseja saber, criança shifter.

Gravor deveria ter se acostumado com essas criaturas muito mais velhas do que pareciam e que tendiam a tratar ele e muitos dos outros como se tivessem nascido no dia anterior. Bom, é claro que a experiência que esses seres haviam adquirido era incomparável, mas aquela atitude deixava-o ligeiramente incomodado.

A despeito disso, o sutil rubor que surgiu em sua face pela primeira pergunta que viera a sua mente, deixando tudo aquilo de guerras, Pesadelo e salvação mundial de lado, o fez ficar calado por bastante tempo antes de gaguejar um “nada” e virar o rosto para uma direção oposta a que as outras duas estavam.

— E depois eu que pareço uma garota virgem…

— Não vou ouvir isso de você, Senhorita Eu-só-estava-curiosa.

— Ainda com isso, até faz parecer…

— Seria conveniente para ti. — cortou Anamorph, mais uma vez soprando fumaça para o alto, os olhos estreitos fitando distraidamente as próprias formas que acabara de fazer no ar, nada vagamente reconhecível. Suas íris extraordinárias fizeram um movimento lento em direção a Gravor, sem que ela de fato virasse totalmente seu rosto para olhá-lo, o que fazia-a parecer um tanto intimidadora. — Questionar.

Ele engoliu em seco, coçando a parte de trás da nuca e assumindo uma expressão mais relaxada à base de muita força de vontade. Ele tinha certas dúvidas sobre aquele “questionar” se tratar da situação atual, a híbrida não deveria estar dizendo-lhe para interrogá-la. Indiferente a essa pequena dúvida, a voz macia de Anamorph penetrou nos ouvidos de ambos, desta vez falando diretamente a eles.

— Reúnam-se e discutam sobre o que está por vir… a resposta que vocês procuram está no passado. Alguns eventos tendem a se repetir, por necessidade ou carma.

— Do que exatamente você está falando mesmo? — Gravor sentia que o assunto havia acabado de mudar bruscamente de novo. Era impressionante a sensação de confusão que a maior parte das chamadas videntes causava quando decidiam olhar para o futuro, e compartilhá-lo em fragmentos minúsculos.

— Não perca seu tempo, ela não vai explicar. — suspirou Nyx. Ela fez uma mesura respeitosa, apesar de tudo, para a criatura, que retribuiu com um suave menear de cabeça. Gravor imitou-a por prudência, e só teve tempo de ver Nyx girar nos calcanhares para retornar ao caminho em que estavam anteriormente, quando a guardiã apontou para um ponto qualquer, indicando uma direção.

— O que está procurando fica para lá.

O rosto inexpressivo da Mestiça por um curto período de tempo tornou-se contrariado, enquanto girava novamente para acertar o rumo e agarrava o braço de Gravor com sua mão livre, puxando-o na direção apontada por Anamorph. As flores permaneciam presas e protegidas pelo outro braço, um cuidado deveras peculiar.

Carregado por aquela pequena impaciência, Gravor limitou-se a lançar um último olhar para a criatura, que fez as asas dobrarem-se lentamente sobre o próprio corpo como antes, lançando um aro de fumaça em direção ao céu e deitando novamente a cabeça em seu antebraço. Era como ver a primavera adormecendo sob a chegada do verão, escaldante e implacável.

Ser um guardião deveria estar ligado a uma certa solidão, ele pensou.

E então os dois se afastaram da terceira híbrida daquelas fronteiras… Não era a mais impactante, mas certamente até o presente momento era mais bela e sábia.

 

oOo

 

Enquanto Skylar era derrubado mais uma vez por Kyria, situação que demorava cada vez mais para ocorrer durante aquele “treino demonstrativo”, Selene havia sido recrutada para lidar com as… salamandras.

Com a aproximação do Festival das Flores, haviam dois tipos de elementais que se aglomeravam por perto das festividades. Os primeiros eram fadas, atraídas pelos perfumes da flora e pelas danças, pequenas amantes do frescor da primavera. Então, quando as fogueiras começavam a ser elevadas nos campos, chegavam as salamandras, criaturas diminutas e feitas de pura chama, com corpos vagamente humanoides. Travessas e agitadas, elas precisavam ser observadas com frequência, para que não incendiassem mais do que era devido. Como eram seres que precisavam estar em movimento a todo momento, foi atribuído a elas a função de acender cada uma das fogueiras… mas apenas no dia do Solstício, em que o festival de fato se iniciaria.

Selene não era do tipo que ficava parada por muito tempo também, então aquela tarefa viera bem a calhar…

Como era de se esperar, a elfa estava perdendo o resto da paciência que tinha, e essa nunca fora das maiores. Ela havia acabado de reunir com muito custo as criaturinhas em único ponto, ordenando de uma maneira não muito simpática para que ficassem ali. Apenas para que Lidrin, que parecia ocupado montado uma estrutura deveras complicada, pragueja-se qualquer coisa ininteligível e gritasse que havia uma delas subindo pelos seus cabelos.

— Eu diria que fica muito bem em você. — argumentou a elfa, enquanto capturava a salamandra fujona entre suas mãos. Como era imune a fogo, todo o esforço que a criaturinha fazia ao tentar queimá-la era em vão.

— Dispenso um chapéu de fogo, não é o meu estilo. E mantenha essas pestinhas longe de mim ou nunca vou conseguir terminar isso aqui.

— Eu estou tentando. — Selene lançou um olhar frio para ele, enquanto caminhava novamente até as outras salamandras. — Além disso, você está montando o estande errado.

Lidrin encarou a estrutura com certa dúvida, notando que realmente, haviam partes dela fora do lugar. Ele rapidamente retirou-as e iniciou o trabalho todo outra vez. Haviam pelo menos umas dez daquelas para serem erguidas, elas funcionariam como barracas para alimentos e jogos. Estranhamente, o Djinn não conseguia nem sequer sair da primeira, parecendo estar totalmente alheio ao trabalho que estava incumbido.

Selene retornou para perto do resto das salamandras, todas presas abaixo de um emaranhado de ligas de metal, e pôs a criatura fugida junto com as outras, abaixando o objeto com o formato de cuia novamente. Ela contentara-se a simplesmente manter-se de olho nelas no começo, mas tal método tornara-se inviável, e a elfa precisou pedir a Alyss aquela coisa que mais parecia uma jaula.

Bem… não podia dizer que a culpa era totalmente da personalidade inquieta das salamandras. A cabeça de Selene estava tão dispersa quanto a de Lidrin. A diferença entre ambos era que o Djinn estava claramente mau-humorado, ao passo que ela estava… aliviada? Não saberia pôr em palavras o que estava sentindo desde os eventos da noite anterior, ainda que esses não tivessem lhe dado resposta alguma sobre como deveria agir.

Havia uma clara dificuldade para Selene se amarrar a alguma coisa, ainda mais porque prezava muito sua própria liberdade. Ela conseguira-a com muito custo, séculos antes, e não aceitaria ver-se presa a qualquer coisa, fosse lugar, objeto ou pessoa. Entretanto…

A elfa suspirou, apoiando o cotovelo sobre a cuia e sentando-se no chão. Sentiu um suave pinicar no curativo em seu flanco… aparentemente o esforço durante a noite abrira o machucado. Não era nada problemático demais, apenas doía. Ela praguejara insistentemente com Frosty quando percebera tal coisa e só ficou satisfeita quando ele refez o curativo. Ele fizera outras coisas também, com mais cuidado dessa vez…

Lembrar disso fez com que ela levasse as mãos ao rosto e massageasse-o freneticamente.

— Pensando no resultado do show de luzes que vocês dois fizeram ontem? — Lidrin não olhara para ela ao perguntar, ele parecia mais uma vez focado em montar o estande, desta vez direito.

— Como sab… — ela parou pela metade da pergunta, percebendo que a resposta era meio óbvia, mas é claro que o Djinn faria questão de apontar isso do mesmo jeito.

— Todo mundo viu as labaredas e as lanças de gelo à distância. Bem… quase todo mundo.

— Não é como se isso fosse da sua conta. Eu não fico me intrometendo nos assuntos de vocês, seria ótimo que não o fizessem comigo. Aliás… eu não estou questionando a rejeição que você levou de certo alguém, ou estou?

— Como você sab…

— Está escrito na sua testa. — vingança ser um prato comível frio? Por favor… a vingança só era bem servida quando estava escaldante… instantânea. Selene sempre preferira coisas quentes. Ela deu algumas pancadas sobre a cuia, calando as criaturinhas ali dentro que começavam a produzir sons de chiado, em súplica para serem libertas. — De qualquer forma, só nos resta uma chave.

Lidrin assentiu com a cabeça, concordando. Ele endireitou a estrutura de madeira a sua frente, com suas partes perfeitamente conectadas, e puxou as partes de uma outra um pouco para longe de onde estava, deixando um espaço razoável entre ambas e pondo-se a trabalhar na segunda barraca.

Parecia uma mudança brusca de assunto da parte de Selene, mas na verdade, não o era. Quaisquer planos que tivessem, qualquer tipo de vida que gostariam de levar… isso só seria decidido no final daquela jornada. Apenas quando a Chave Principado do Metal estivesse segura e, olhando um pouco mais adiante, as Chaves Principado de Água e Terra fossem recuperadas, os integrantes da JusticeBlade e dos BeastHunters poderiam considerar seu trabalho feito. Mas tudo o que passaram desde o começo daquela caminhada os mudara… alguns bem pouco, outros muito. Nenhum dos Relicários, ou dos seres mais próximos deles, era o mesmo àquele momento. E, quando aquela missão acabasse, não importasse de qual forma isso ocorresse… nada seria como antes.

 

oOo

 

— Minha mãe não ficou nada feliz quando eu nasci… tendo a acreditar que ela não desejava de fato uma criança, mas de qualquer forma… foi ainda pior quando percebeu que eu não era como ela desejava… ou melhor, que ela não era uma Filha da Ganância, como sua progenitora. — Nyx deu de ombros. Depois de deixarem a clareira de Anamorph para trás, a jovem voltou a contar seu relato. — Sabe por que os mestiços são evitados? Por que a miscigenação entre raças é tão mal vista?

— Todos os mestiços, sem exceção, nascem fracos… as particularidades de cada raça acabam entrando em conflito e seu desenvolvimento é prejudicado. Mesmo que consigam sobreviver até a idade adulta, eles…

— Não podem se reproduzir. São estéreis… além disso, a fraqueza permanece durante toda a sua vida. Mas, graças a maldição implantada por Bernkastel, este corpo manteve-se forte. E vivo. Uma grande ironia, mas considerando que cabia a ele ser um dos receptáculos, até que faz um pouco de sentido. — Nyx estalou a língua, pensativa. Essa era uma teoria bastante atual, levantada após as muitas informações que descobrira, depois da Noite de Máscaras. Até então, a jovem mulher só podia definir que nascera ou com muita sorte, ou com muito azar. E ela apostava na segunda opção com todas as suas fichas. — Quando Meredith pariu este corpo, a primeira coisa que ela sentiu foi medo. Eu sei… apesar de não existir naquela época, eu posso quase imaginar o que ela pensou. “Como isso pode ser possível?”, “Um tabu foi quebrado?”, talvez o mais importante: “Ela é mais forte que eu. Não posso deixá-la viver.”

Gravor arregalou os olhos com aquela última frase. Ele já percebera que o relacionamento entre Meredith e Nyx nunca fora dos melhores, e era marcado pelo ódio da parte de ambas. Mas aquilo… aquilo passava dos limites…

— Obviamente, ela não teve sucesso, seja lá o que foi que tentou fazer contra a Emissária. Incapaz de destruí-la, Meredith contentou-se em trancá-la no porão da mansão Saint’ Ignis, com todos os selos e maldições que era capaz de encontrar. Os senhores que a adotaram começaram a suspeitar que havia algo de errado, a criança já nascera mas não era vista na residência, nem seu choro de bebê era escutado. Então, minha mãe uniu o útil ao agradável e deu-lhes de presente para “O Monstro no Porão”. E, enquanto os dias tornavam-se anos, eventualmente alguém era enviado lá para baixo… para ser devorado vivo. O boato de que gritos eram ouvidos no subsolo da mansão espalhou-se por Hathea, os habitantes começaram a acreditar em uma fera, e no fundo, eles não estavam errados.

A garganta de Gravor apertou. Ele não podia julgá-la, afinal ele era um shifter. E sua parte fera era, naturalmente, uma predadora. Enquanto permanecera com Skylar, caçando criminosos, devorara muitos deles. Esse era o lema dos BeastHunters, afinal de contas: apenas caçar aqueles cujos cartazes possuíam o termo “Vivos ou Mortos” estampado. Mas uma coisa era fazer aquilo por “justiça”, distribuindo a sentença merecida por seus atos. Outra, bastante diferente, era fazê-lo por ser tratado como um animal… ou por estar faminto.

— Ela acabou deduzindo que deixá-la morrer de fome seria um desperdício, é claro. Imagino que tenha chegado a mandar refeições pelos empregados… e já naquela época, Meredith era cheia deles, e todos eles tinham alguma parte do corpo faltando. Eu já lhe disse que minha querida mãe é especialista em tortura? Bem… ela tornou-se uma, de alguma forma. Sua tendência gananciosa consegue ser, muitas vezes, bastante sádica. — mais uma vez, Nyx piscou os olhos, apaticamente. — Alguns desses empregados acabaram aproximando-se mais que o esperado. Talvez fosse por empatia, ou meramente aproveitaram a chance de desobedecer Meredith… um dia trouxeram um pouco de luz, em outro trouxeram livros e em algum ponto o Monstro do Porão havia aprendido a ler.

“E assim, contra todas as probabilidades, a criança mestiça sobreviveu e cresceu. Tendo apenas a escuridão como amiga, sem conhecer nada sobre o mundo do lado de fora da cela, além das gravuras que podia observar vagamente nos livros que traziam para que lesse. Mas isso mudou quando estava próxima de completar dez anos… porque os boatos sobre sua existência deixaram Hathea, e acabaram chegando aos ouvidos sensíveis de um certo elfo que a muito procurava sua amada.”

Nyx prosseguiu, seus passos atravessando lentamente a trilha que seguiam. Ela parara de recolher flores àquela altura, mas mantinha-as bem seguras sobre seus braços. Ao longe, por entre as árvores, Gravor poderia notar certos pontos luminosos atingindo um ou outro ramo, como se houvesse alguma superfície extensa e baixa refletindo os raios do sol.

— Meu pai já havia recolhido informações o bastante para encontrá-la, e ele era alguém inteligente. Mas quando ele chegou às portas da mansão Saint Ignis, se deu conta do quão terrível era toda a situação. Do quanto Meredith havia descido e tornado-se perversa. Ele chegou ao porão e viu o Monstro, e seu coração encheu-se de compaixão e temor. Até mesmo ele conseguia ver nos olhos dela a marca de uma amaldiçoada, e de um tipo de amaldiçoada que jamais existira em toda a história de Meroé. O pior, indiferente da mente aguçada que ela havia desenvolvido por conta dos livros que lhe eram trazidos pela criadagem, a Emissária da Loucura estava enfurecida. Ela passara dez anos presa naquela masmorra, e queria sua liberdade… não apenas sua liberdade, como vingança.

“Mas meu pai era bom. Ele era bom demais para o próprio bem. E mesmo com a situação do jeito que estava, não permitiria àquela criança matar Meredith. Mas também não podia deixá-la daquele jeito. Ele descobrira-se pai de um ser único demais, brutal demais… e por alguns segundos não soube bem o que fazer. A inspiração acabou vindo, no entanto… e enquanto Meredith continuava fora, sem saber o que acontecia dentro de sua própria casa, ele fez o improvável: selou a maldição dentro do próprio corpo da Emissária… deste corpo, falando mais apropriadamente. E eu nasci.”

“Essa pessoa que está ao seu lado agora… essa personalidade, é apenas a ausência da Emissária. Eu fui gerada porque a individualidade dela não havia sido devidamente construída. Ela não teve um crescimento normal, não foi tratada como um ser vivo em desenvolvimento. Era uma arma, ou melhor, um monstro, que eventualmente despertou algum tipo de compaixão dos humanos numa condição tão precária quanto a dela própria e recebeu o mínimo de instrução. Tão mínimo que apenas a inteligência foi refinada, e ela era, por concepção, algo que ia contra a razão. Eu sei, é bastante difícil de compreender o fenômeno, mas faça um pequeno esforço.”

“Quando foi selada, apenas esse conhecimento literário ficou gravado na consciência… então quando eu passei a existir, descobri-me capaz de entender muitas coisas cuja origem não conseguia rastrear. As informações apenas estavam ali. Igualmente, eu era tão oca quanto ela fora, até mais… eu sabia os conceitos de amor, dor, tristeza e alegria, mas nunca havia experimentado-os, não sabia como lidar com eles.”

“Minha mãe retornou para casa quando eu estava sendo levada para a superfície. Não foi uma cena muito agradável de se assistir. Eles brigaram, meu pai insistiu em levar-me embora e Meredith, provavelmente vendo a chance de livrar-se de seu problema, acabou aceitando. Ele bem que tentou convencê-la a vir junto e recomeçar, mas tratava-se de Meredith… você pode bem imaginar que era inútil argumentar com ela.”

Nesse ponto, Nyx calou-se. Ela ergueu novamente a mão livre para afastar alguns ramos baixos das árvores de seu caminho, e deu mais um passo, adentrando outra pequena clareira. Desta vez, porém, havia algo menos condizente com a natureza ao redor em seu centro. Era uma sepultura simples, trabalhada em gelo, com palavras gravadas em élfico em sua superfície lisa. A moça encarou a construção e um suspiro audível escapou por entre seus lábios.

— Frosty realmente é um bom escultor.

— Você… não havia vindo aqui antes? — Gravor questionou, seguindo-a de perto. Havia algumas folhas mortas sobre a sepultura, e Nyx aproximou-se dela, retirando-as com a mão livre. Ela ajoelhou-se a frente do túmulo e deixou as flores lentamente sobre o chão a sua frente, separando uma parte delas e colocando-as sobre o gelo. A outra permaneceu sobre o solo, e Nyx passou a pegá-las, uma por uma, para trançá-las em algo que parecia uma coroa de flores.

— Não. — a resposta foi simples, e Nyx não parecia ter vontade de implementá-la. — Sente-se, se quiser.

Gravor olhou dela para a sepultura algumas vezes, o que era suposto que ele fizesse naquela situação? A garota não queria ser consolada, era óbvio. Como ele simplesmente impôs sua presença sobre ela, contudo, o mínimo que podia fazer era tornar-se uma boa companhia. Pensando nisso, ele fez um gesto lento em direção à escultura gelada, fechando a mão direita e levantando-a próxima ao coração. Parecia algum tipo de prece silenciosa, por mais estranho que parecesse. Ele também não precisava saber exatamente o que estava escrito no epitáfio do pai de Nyx, já tinha uma ideia formada sobre aquilo. Ele sentou-se ao lado dela e apontou para o montinho de flores que esta usava.

— Posso?

— À vontade. — seus dedos trabalhavam de maneira lenta, mas era difícil para Gravor acreditar que sairia algo vagamente parecido com uma coroa dali. Ele preferiu não comentar e pôs-se a fazer o mesmo, em um silêncio conformado. A história de Nyx não havia acabado ainda, pelo que sabia, e ele não gostaria de interrompê-la.

— Veja bem… eu posso não lembrar do que minha outra eu viveu, mas este corpo lembra. — depois de algum tempo, ela continuou a falar. — Naturalmente, por um longo período após eu ter sido solta, não conseguia ficar em lugares fechados ou escuros. Além disso, como na cela não havia muito espaço para a movimentação, eu não conseguia andar nos primeiros dias. O tempo que meu pai levou para trazer-me a este Vale foi mais longo que o previsto.

— Foi como reaprender a viver.

— É…

Ela parou de trançar os caules por alguns instantes, seus olhos verdes fazendo o caminho das flores em suas mãos até o túmulo.

— Aquele quarto aberto, na sua casa…

— Eu usei-o por anos, mesmo após ter superado o trauma. Acabei acostumando-me a ele, no tempo que morei aqui. Acostumei-me a muitas coisas, arrisco dizer que foi um dos melhores períodos pelos quais passei. Sem arrependimentos ou preocupações, ou sequer tragédias para me assombrar.

Gravor desceu seus olhos dela para a própria guirlanda que estava fazendo. Se pudesse comparar as habilidades de ambos, era difícil prever qual das duas sairia pior. Ele decidiu não se preocupar muito em apontar isso e apenas fez uma pergunta que poderia ser bastante rude, mas tratando-se de toda a conversa que tiveram até ali, era muito válida.

— Como ele morreu?

— Quando os seres das sombras ainda existiam, antes de Frosty e os outros os extinguirem… eles eventualmente conseguiram instalar-se no vale. O guardião do território pelo qual passávamos para fazer uma visita ao exterior não estava fazendo seu trabalho, então…

— Uma emboscada?

— Precisamente.

— Deve ter sido duro para você.

— Foi…

Nyx endireitou sua postura, os olhos verdes deixando o trabalho que estava praticando para fitá-lo.

— O selo foi quebrado, e a Emissária ressurgiu… em alguns pontos poderia se dizer que os mais prejudicados foram eles, mas não é bem assim que as coisas funcionam. Eu achava que não sabia nada de amor naquela época e após perdê-lo, me dei conta de que realmente o amava mais do que qualquer outra coisa no mundo. E não era apenas eu…

Gravor permanecera ouvindo silenciosamente, pensando… ele imaginou seus pais e seu irmão mais novo, mortos sem poderem nem sequer revidar, sem terem culpa de nada. Uma raiva súbita subiu pelo seu interior, mesclada a uma tristeza sem igual. No lugar dela ele teria feito o mesmo. Mas, pensando a fundo sobre aquilo, não fora Nyx que efetivamente destruíra seus inimigos… fora a Emissária da Loucura.

— Ela…?

— Meu pai a selou, ele poderia muito bem retirar isso quando quisesse. A hora que quisesse… até mesmo quando eu não estava desperta.

— Hum… quando ela foi liberta no Santuário do Ar, a Emissária amaldiçoou muitas vezes Meredith e até mesmo você, mas não disse nada sobre seu pai.

— Peculiar, considerando que ele foi um dos que a “aprisionaram”, não acha? Eu selei-a novamente por receio, admito… por não saber do que ela era capaz e do que poderia fazer às pessoas ao meu redor. Porém, estou começando a achar que não foi uma boa ideia.

— Mas, se seu pai era a única pessoa capaz de controlá-la, você poderia nunca mais retomar o domínio do corpo.

— Essa ideia te incomoda tanto assim? — ela questionou, ainda observando-o, o que fez Gravor corar automaticamente, constrangimento quebrado no minuto seguinte quando Nyx observou a guirlanda de flores que ele fazia. — Isso está vergonhoso…

— Olha só quem fala!

— É… tem toda a razão. — levantou-se, com seu próprio arranjo terrível, e depositou-o no cristal de gelo mais alto. — Não importa muito, na verdade. Eu sempre achei flores inúteis. Mas ele gostava delas, então trazê-las é o mínimo que eu poderia fazer.

Nyx deixou sua mão sobre o gelo por algum tempo, enquanto Gravor colocava respeitosamente seu próprio trançado de flores sobre o túmulo, e depois de fechar os olhos e murmurar algo que ele não era capaz de entender, provavelmente em élfico, afastou-se.

— Vamos voltar, eu ainda tenho um artefato místico estranho para decifrar.

— Nyx… — Gravor retornou rapidamente para perto da jovem, disposto a não questioná-la sobre o tempo que ficara no local, mesmo depois de terem demorado tanto a encontrá-lo. — Por que você voltou para Hathea? Se você e Meredith não se suportam, não era melhor iniciar seu caminho como caçadora em outro lugar?

— A verdade é que no fundo eu pretendia fazer justiça tirando a vida dela, porém… ele não ia querer isso. Eu posso propositalmente ignorar a vida melhor que meu pai queria para mim, mas não posso ir contra esse tipo de desejo, por mais infrutífero e sem sentido que me pareça. Eventualmente nós duas colocamo-nos em uma situação de convivência forçada que desgastava ambas. Talvez aja uma parte infantil em mim que acha divertido sabotá-la de todas as maneiras possíveis… talvez fosse a influência da Emissária, apenas esperando uma brecha de minha parte para tirar a vida de Meredith. — ela deu de ombros, erguendo a cabeça para fitar as árvores frondosas acima deles, marcando as bordas da clareira. — Eu não sou movida a arrependimentos, Grav. Acredito que, na minha concepção de justiça, eu fiz pouco em Hathea. Ainda assim, foi alguma coisa.

Gravor não podia dizer que a entendia, a mente de Nyx trabalhava de uma forma que achava difícil de decifrar na maioria do tempo. Mas era preciso admitir que o fato dela abrir-se com ele era especial a seu modo. Principalmente por ela ser o tipo de pessoa que não falava sobre si mesma com frequência, algo que a própria afirmara, dias atrás. Sem saber muito bem o que estava fazendo, mais por instinto do que por outra razão, ele passou gentilmente o braço pelo dela, cruzando ambos em um gesto amigável. A resposta de Nyx foi um olhar inquisidor, mas como ela não fez nenhum movimento para se soltar, Grav também não fez questão de afastar-se.

Ambos andaram por algum tempo, adentrando a floresta mais uma vez, antes que Gravor inspirasse profundamente.

— Acho que estou apaixonado por você, Nyx. — ele alegou, com um sorriso contrafeito.

— Se estiver realmente, é mais estúpido do que pensei. — sem chegar a observá-lo, Nyx respondeu.

— Eu sei disso. Sei que é a coisa mais estúpida que eu poderia fazer, porque você praticamente não pode sentir. — e ele riu. Miseravelmente, de sua própria desgraça.

— De fato… e o que pretende fazer em relação a isso?

Gravor ficou em silêncio por alguns segundos. Abriu e fechou a boca, pensando bem antes de responder. — Mesmo que você me rejeite ou continue a me ignorar como sempre… eu não posso mudar esse pensamento. Não agora. Talvez um dia eu simplesmente possa esquecê-la, ou não. Nesse presente momento, contudo, eu estou apaixonado por você, Nyx.

Ela parou seus passos, suspirando de maneira pesada e girando o corpo para ficar de frente para ele, o que acabou quebrando o contato entre ambos. — Isso será doloroso para ti. Eu posso ser bastante egoísta, você sabe.

— E indelicada… e com um péssimo senso de tato. Pra não falar de completamente desagradável e petulante. — ele enumerou com os dedos, antes de franzir a sobrancelha. — Espera… o que você quer dizer?

— Acontece que… esse buraco que tenho dentro de mim parece ficar um pouco menor quando você está por perto. — ela levou a mão ao coração e deu de ombros. — Talvez eu possa me permitir ser um pouco menos vazia.

Antes que completasse o raciocínio, Nyx viu-se cingida por um abraço apertado e acalentador. Fechou momentaneamente os olhos, deitando a cabeça no peito de Gravor. Era-lhe fácil se sentir aquecida – até mesmo protegida – naqueles braços, algo que lhe era nada próprio.

— Essa foi uma ótima resposta.

— Você está brincando.

— Não… eu não estou.

Da posição que estava era capaz de ouvir o coração dele, descompassado, parecia capaz de explodir. Suas orelhas sensíveis captavam o retumbar, fazendo-a se lembrar de tambores. Nyx ergueu os olhos, mal dava para ver o rosto dele dali, devido a sua baixa estatura e ao fato de Gravor não olhar para ela, e sim para algum ponto adiante. Suas mãos seguraram os ombros do shifter para pegar impulso, e ficou na ponta dos pés para tocar seus lábios nos dele.

Um beijo realmente breve. E inusitado, ainda mais se tratando dela. Quando conseguiu descer o corpo novamente, pareceu um pouco mais emotiva que o normal. Ou era apenas impressão? Nyx era um eterno mistério, que Gravor nunca se cansava de tentar desvendar. - Isso… conta como uma prova, não é?

— Passa longe. — a expressão surpresa que ele tinha feito por receber tal presente tornou-se de zombaria quando respondeu.

— O que quer dizer com isso? — a garota soergueu uma sobrancelha, incapaz de entender o que ele queria dizer. Sua expressão demonstrava, mais uma vez, sua neutralidade habitual — Não seja tão anormal.

— Você é a última pessoa que pode me chamar de anormal. - Gravor riu, ainda tentando brincar com ela, saboreando aqueles vislumbres de afeto que conseguia tirar-lhe de vez em quando. — E o que tem de tão anormal assim em mim?

— Essa reação absurda sua, depois de receber um beijo.

— Ah… mas isso não foi um beijo. - ele riu ainda mais, por um curto período de tempo, erguendo uma mão para tocar o rosto dela, contornando-o de maneira que chegasse até a nuca. - Isso é um beijo.

E com essas palavras ele puxou-a para mais perto, descendo a própria cabeça para que seus lábios se tocassem novamente. E se surpreendeu pela segunda vez, pois ainda que este beijo fosse mais faminto e insistente que o dela, os lábios da insensível Nyx permaneciam muito afáveis.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, olá, olá!

Capítulo tá meio grandinho, ia ficar ainda maior, mas eu decidi cortar a cena final que eu tinha em mente e colocá-la bem mais pra frente na história. Por que? É um segredo! Mas certamente vai ficar bem mais interessante desse jeito, vocês vão ver!

Acho que todo mundo já tava imaginando que GravIx era real, então não vou me estender muito no assunto. Acho que o que eu mais queria com esses dois últimos capítulos era mostrar o passado da Nyx como um todo, da maneira mais próxima ao que realmente aconteceu. Tem muito mais coisa, principalmente nesses anos que ela passou no Vale, e no curto período em que viajou até de fato retornar à Hathea. Mas isso não vai ser mais tão explorado, a não ser, talvez, em flashbacks.

E antes que perguntem, logo logo vão saber o que ocorreu para o Lidrin estar "de mal humor", isso será mostrado em um flashback também, provavelmente nos próximos capítulos.

Esse micro arco (que ta virando um macro arco, porque eu sou incontrolável, me desculpem!) está próximo de acabar. Aguentem firme que daqui a uns quatro ou cinco capítulos o bicho vai começar a pegar novamente e a viagem ao Santuário do Metal vai ter início!
Mas, se vocês não conseguirem esperar por muito tempo, não desanimem. Próximo capítulo será dos Seguidores do Pesadelo e acreditem quando eu digo que ele está tenso. Muito tenso mesmo.

Bem, é isso por hora, pessoal!
Até a próxima. :3
Kisses, kisses ♥



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas do Pesadelo {Interativa}" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.