Crônicas do Pesadelo {Interativa} escrita por Dama dos Mundos, Kaline Bogard


Capítulo 60
De volta às raízes: o Vale.


Notas iniciais do capítulo

Yeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei
Eu to viva. Não to bem mas to viva, gente. Não me xinguem, e tentem não me matar com suas mentes afiadas, porque a abstinência já tá me deixando com aparência de zumbi. -q
Bom... eu não vou citar que estou sem net outra vez (acho que dessa vez vai ser por um longo, longo, loooooooooooooongo tempo, mesmo)- ops, já citei - e infelizmente não deu pra eu trabalhar em nada especial para o aniversário de CdP de novo. Isso me frustra pra caramba, mas não há muito o que eu possa fazer, então vou ficar devendo-lhes, mais uma vez. Mas aceito se vocês quiserem me dar algo, viu? -q
Esse capítulo é o primeiro de três (ou quatro, se eu for fazer um com os Seguidores também), mostrando o pessoal retornando para casa. Espero que gostem.
Boa leitura pra todos vocês. ^^



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O grupo adentrou a mata fechada fazendo um verdadeiro escarcéu, principalmente vindo dos membros mais novos. Nyx precisou dar soquinhos no topo da cabeça dos outros para que parassem com aquilo antes que atraíssem a presença de alguém indesejado. Já haviam cruzado com alguns grupos de mercenários pelo caminho, mas deram conta deles com muita facilidade, ainda que seu poder estivesse reduzido pela falta dos outros. Frosty já conseguia andar novamente, e era ele que guiava-os, já que sua noção do próprio território era excelente. Parecia ter memorizado cada árvore, independente do fato de não pisar por aquelas bandas por, pelo menos, dois anos.

Anne, Neco e Ryan continuavam exaltando-se com as coisas mais ínfimas, como alguns animais mágicos que cruzavam seu caminho. Ao avistarem uma quimera, ficaram tão vidrados que precisaram de empurrões para que continuassem o caminho. Sean silenciosamente observava tudo, as mãos apoiadas nos cabos de suas lâminas gêmeas caso surgisse qualquer imprevisto. Nyx ficara na retaguarda, exalando um inusual nervosismo, enquanto voltava os olhos esverdeados de um lado para outro, como se temesse que algo pulasse sobre ela vindo da floresta. O irmão de consideração estava mais tranquilo, mas as frequentes exclamações dos adolescentes faziam-no arrepiar-se.

— Pessoal, vamos tentar nos movimentar de maneira menos chamativa. — ele disse a um certo ponto do caminho, passando os olhos por uma teia de aranha esticada entre uma folha e outra de uma sequoia.

— Concordo plenamente. — a mestiça franziu o cenho, parando de andar para ouvir os sons da floresta. Os pios de pássaros vinham de muito longe.

— Você parecem um pouco cismados. — Sean puxou assunto. A atitude de ambos o deixara curioso.

— Pois é, estamos em local seguro, não estamos? — Ryan cruzou os braços, inclinando a cabeça para a direita. — Os outros caçadores ainda estão na nossa cola?

— Dificilmente eles conseguiriam se guiar no meio de tanto verde. — Anne tropeçou numa pedrinha e fez um esforço tremendo para jogar o peso do corpo para trás, de maneira que não caísse numa inclinação que abria-se ao lado deles. — Ops…

Neco apenas arregalou os olhos, puxando a parceira mais para seu lado, num gesto para que tomasse cuidado. Uma aranha que descia de um fio de teia balançou perigosamente perto de seu rosto, o que a fez dar um gritinho assustado, dando passos rápidos para trás e trombando com Sean.

— O que foi?

Ela apontou para o aracnídeo, e o rapaz encarou-o por um tempo, antes de passar os dedos pela linha prateada, cortando-a e levando a sua tecedeira para uma folha mais próxima.

— Qual a parte de “fiquem em silêncio” vocês não conseguem entender? — suspirou Frosty, descendo os olhos para ver se ainda estava na “trilha”. Só então respondeu as conjecturas dos acompanhantes. — Estou tentando evitar um encontro direto com a guardiã deste lado da fronteira.

— Guardiã? — questionou subitamente Anne, andando ainda mais próxima ao elfo. — Que tipo de guardiã? Aliás, que raio de guardiã é essa? — seu primeiro contato com um “guardião”, ou melhor, com Samira, ainda estava fresco o bastante em sua mente para preocupá-la.

— Para evitar invasões dos mal-intencionados, foram posicionados guardiões nos quatro pontos-chave nas fronteiras do Vale das Estrelas. — Nyx explicou sucintamente, em voz baixa.

— São híbridos, bastante competentes. — Frosty uniu as sobrancelhas, sinal de que estava lembrando-se de algo, mais sacudiu a cabeça para espantar o pensamento. — O problema é que não é muito fácil lidar com eles.

— Híbridos? — um monte de olhos voltaram-se para Nyx, que apenas retribuiu o olhar com apatia.

— Híbrido é uma designação para seres distintos de mestiços, só para constar.

— Sim. Mestiços são filhos de uniões entre raças diferentes. Híbridos são mais como metade animais, ou algo do tipo. — Ryan deu de ombros. Ele viveu bastante tempo na floresta, então conhecia muito sobre o assunto. — São raros. Dizem que todo humano ligado à natureza tem um cerne animal. Quanto mais próximo desse cerne ele estiver, mais parecido com a criatura se tornará. Mas também é diferente de nós, shifters, porque não podem se transformar de uma forma para a outra. Eles apenas mesclam as características de ambos os mundos.

— Humanos como xamãs? — Anne ergueu uma sobrancelha.

— Hum, sim. Xamãs estão entre os que podem atingir esse estado, pois estão em conexão direta com a natureza. Acho que uma boa parte dos Híbridos já foram xamãs, mas nem todo xamã se entrega tanto ao lado animal. Outra característica dos Híbridos é que envelhecem muito lentamente, como os elfos, e seu grupo é composto mais por gente jovem. Depende muito do despertar do cerne e o quão profundamente o indivíduo se mescla com ele. Mas os jovens geralmente tem mais força pra suportar os atributos físicos que vem junto à transformação gradual, e por isso os xamãs mais antigos evitam tomar essa decisão.

— Eu sempre pensei que os xamãs fossem bem instruídos… não querendo dizer que os jovens não podem ser, mas…

— Bom, eu disse que nem todos os Híbridos já foram xamãs. Esse caminho apenas facilita um pouco as coisas. E muitos jovens que são ligados às pequenas vilas nas florestas recebem um treinamento adequado para se conectarem à Deusa Mãe. E também, como eu disse, eles são…

— Tudo bem, tudo bem, eu já entendi, não sou uma idiota. — Anne fez uma careta para ele, mostrando a língua.

— Muito raros. — completou Sean, sabendo que quando Ryan se empolgava, não se calaria por algum tempo. — Então são quatro guardiões… que tipo de Híbrido temos nesse ponto da fronteira?

— Vriska. — murmuraram quase que ao mesmo tempo os irmãos, como se o nome definisse o ser perfeitamente bem. Um tanto quanto alheios à conversa, haviam estacado e agora olhavam em torno.

Um barulho de pisadas sobre folhas foi ouvido, e isso fez com que os outros se calassem. Agora eles recuavam, formando um círculo conectado por suas costas. A movimentação estranha agora chegara ao alcance da visão, e um inspirar coletivo anunciou a aparição da guardiã. Duas garras negras abriram caminho para que um rosto aparecesse, logo dando passagem para o resto do corpo.

A cabeça já era uma visão aterradora por si só. Os traços eram femininos, sem dúvida, mas era dotada de oito olhos, dois fixados nos locais naturais para os humanos, enquanto os outros iam diminuindo gradativamente de tamanho, fechando um arco em sua testa. O globo ocular era negro, com as íris douradas iridescentes. O pequeno nariz ficava sobre uma boca carnuda que seria sedutora, não tivesse presas brancas aparecendo, ameaçadoras. A pele, absurdamente pálida, deixava ver as veias azuis, como uma teia.

Mas, de fato, o pior de tudo era seu corpo: até a cintura mantinha a forma humana, e dali para baixo começava um abdome de aranha, negro com detalhes em amarelo, mantendo-se suspenso por seis pares de pernas finíssimas. As garras que cortaram seu caminho eram suas mãos, metamorfoseadas eternamente em estruturas afiadas e letais, as quais ela usou para retirar uma mecha do ondulado cabelo castanho de frente dos olhos, para visualizar melhor os intrusos.

Com a expressão que fazia, dava a impressão de que lançaria sua teia sobre todos ali e os devoraria bem devagar. Então abriu ainda mais todos os olhos, chegando perto o suficiente para que sentissem um cheiro repugnante vindo dela. A visão de suas pernas tão finas cobrindo a distância não era nada tranquilizadora. Parou em frente a Frosty, fazendo-o parecer um anão. Ela tinha, pelo menos, o dobro da altura dele. — Então o jovem príncipe retorna ao lar.

— É bom revê-la, Vriska.

— Poupe-me dessa sua fala mansa, elfo. Se você fizesse o trabalho que nasceu para fazer, eu não teria tanta mão de obra acumulada. — ela fez um sinal apático, com as garras, para a direção de onde havia vindo. Dava para se ver casulos de teias, cujo conteúdo misterioso ninguém parecia muito animado em desvendar. — Mas é ótimo ver que tomastes juízo.

— Amável como sempre. — Nyx revirou os olhos encarando a figura lá de baixo. — Seu trabalho, pelo que sei, é guardar as fronteiras, independente da quantidade de intrusos que aparecem por essas bandas. Aliás, você não deve nem passar fome.

— Definitivamente não. — As patas agacharam-se para que a cabeça da aberração ficasse o mais próximo possível da mestiça, e suas garras alisaram com falsa delicadeza o pequeno rosto de porcelana. — Mas meu apetite é extenso o bastante para eu adicionar mais uma pequenina iguaria na minha refeição. Ou talvez… — seus oito olhos piscaram, fixando o grupo mais atrás, como se contasse seus integrantes. —… quatro.

— Sinto informa-lhe, caríssima dama, que eles não são “comida”. — Frosty uniu as palmas das mãos, o ar esfriando consideravelmente ao seu redor. — Não quero entrar numa briga contigo. Apenas abra a passagem, estou retornando para casa. Faz tempo demais que estou afastado.

Um ruído baixo de ameaça misturada a resignação surgiu da boca dela. Voltou a erguer-se em toda a sua altura, dando passos apressados para trás e abaixando o tronco numa mesura estudada, mas nem um pouco honesta. — Como vossa majestade desejar…

As garras rasparam o ar a sua direita, levantando um manto invisível e deixando à mostra um muro de cor pálida revestido por hera, assim como um portão, em formato de arabescos delicados, enroscando-se como se estivessem vivos. Ela saiu do caminho, ainda com olhares escusos, de maneira que o grupo pudesse atravessar o portal sem nenhum impedimento. Este se abria lentamente, mais convidativo do que a sentinela que o guardava.

— Agradeço muito sua compreensão. — o elfo disse, e fazendo um sinal breve com a cabeça, instigou os outros a segui-lo. Nyx ficou para trás, observando os companheiros entrarem no Reino Élfico, por fim passando a encarar Vriska. Os ameaçadores olhos dela piscaram, nauseantes.

Calamidade. Sua chegada sempre traz más notícias.

— É verdade que o número de intrusos tem aumentado? — a mestiça ignorou a alfinetada, mantendo o controle da situação.

— Tu mesma dissestes que eu estava bem alimentada, não? — As garras de Vriska dedilharam no ar, como num tique nervoso. — São tempos sombrios. Coisas despertam, coisas se extinguem. Sinto o cheiro de guerra no ar.

— Ela não chegará até aqui.

— Não. Espero que não. — ela viu quando Nyx começou a atravessar o portão, e continuou, antes que esta sumisse de vista. — O Vale das Estrelas é um Oásis. E nem todos podem se dar ao luxo de refrescarem-se sob sua sombra…

 

Todo o mal estar que vinha da presença de Vriska ficou para trás quando eles atravessaram os portões, que fecharam depois da entrada de Nyx e tremeluziram suavemente. A frente deles se descortinava uma paisagem dos sonhos, onde a harmonia era tão sublime que até mesmo Sean relaxou completamente, coisa que não acontecia a tempos. Estavam sobre uma colina pontilhada de flores douradas, vermelhas e azuis, e uma estradinha branca descia por um bom pedaço de terreno até o início de uma outra floresta. A partir dela era possível reparar que a trilha se dirigia para mais três pontos distintos, de maneira que formasse uma cruz para alguém que sobrevoasse o lugar. Provavelmente, elas levariam aos outros três portões e suas devidas sentinelas.

Os troncos daquela floresta central eram de uma brancura impecável, e as folhas de um amarelo-ouro belíssimo. Haviam também cogumelos gigantescos, com os chapéus pintados de todas as cores possíveis. Foi observando-os que os visitantes puderam perceber pela primeira vez que aquela era a cidade do reino. A árvore maior – na verdade, o conjunto de árvores que formavam aquela construção gigantesca – era o palácio. Era possível ver as janelas e entradas talhadas com delicadeza nos troncos pálidos, assim como chaminés que foram construídas sobre os cogumelos.

Os olhos de Anne brilharam de empolgação. Era tudo tão grande, tão adorável! Um rio caudaloso corria pela direita da cidade, cortando ao meio uma das trilhas e seguindo através das montanhas que formavam a paisagem mais adiante. Um trecho de floresta onde pinheiros cresciam era visto entre a encosta e o rio, mas fora isso tudo a volta das habitações élficas era descampado, coberto por flores coloridas, cujas pétalas voavam ao menor sinal de vento. A exceção à regra era um espaço vazio bem extenso que ficava entre a colina que eles estavam e a cidadela, com alguns alvos de madeira e amontoados de troncos.

Ali era possível notar uma intensa movimentação. Aparentemente um grupo de jovens treinavam arquearia e luta com espadas, sob o olhar atento de um casal de elfos. Algo na postura que adotavam ou na aura que emanava deles lhes dava um aspecto mais maduro, antigo. Ambos tinham a pele negra como carvão, destoando absolutamente de seus jovens pupilos, e seus cabelos descorados e longos causavam um efeito exótico.

Quando um dos esgrimistas parou o duelo por um minuto para descansar, ergueu os olhos para a estrada e deparou-se com os recém-chegados. Os lábios moveram-se para dizer algo, que chamou a atenção dos outros recrutas, e não demorou muito para que todos estivessem correndo em direção a colina, uma horda de elfos efusivos e animados, trazendo consigo montes de abraços, beijos e lágrimas de mais sincera alegria. — Vocês voltaram!

Antes que pudessem pensar em qualquer coisa, Nyx e Frosty já haviam sido pegos pela turba e era tarde demais para se esgueirar. Só após os dois elfos negros subirem a colina e dispersarem seus alunos que a dupla conseguiu respirar direito, e agora os outros integrantes do grupo também eram alvos de uma curiosidade insaciável. Neco sofria para se fazer entender, dada a sua incapacidade de ouvir, mas com um pouco de custo conseguiu manter um diálogo na língua universal de sinais, a qual alguns de seus interrogadores eram versados. Sean era apenas olhado com admiração, já que ele nunca fora de muitas palavras. Já Anne e Ryan haviam se enturmado rapidamente e não demorou muito para que estivessem trocando informações com os outros jovens.

— É verdade que vocês fugiram de uma cidade inteira? Que incrível!

— Eu não sabia que Hathea estava numa situação tão ruim…

— Vocês são todos caçadores de recompensas?

— Vamos, contem-nos mais!

— Sim, sim, é difícil receber notícias em primeira mão por aqui.

Os olhos brilhavam para eles, como se fossem detentores de uma incrível quantidade de sabedoria. Nyx não podia negar o quanto se surpreendia com a juventude élfica, sempre tão vibrante e faminta por informação de qualquer tipo. A caçula dos Justice Blade era a que mais demonstrava essa faceta, levando em consideração que Neco era retraída, Frosty já havia passado dessa fase e Selene era mais antiga do que qualquer um deles. A própria mestiça era curiosa por natureza, embora nunca tenha sido considerada uma entusiasta.

Decidiu que os mais jovens estariam bem por hora, e voltou-se para Frosty, que mantinha uma conversa mais baixa e educada com os dois treinadores. O primeiro, Helbrand, era mais sério e sisudo, enquanto a segunda, Kyria, mantinha um sorriso feroz no rosto. Ainda que os traços delicados naturais aos elfos estivessem presentes em ambos, seus corpos eram mais desenvolvidos, musculosos e bem torneados. Elfos negros eram guerreiros natos, bem mais agressivos que os outros, e tal poder cobrou seu preço, dizimando boa parte de sua população durante as longas guerras que já atingiram Meroé.

Aqueles dois eram uns dos poucos sobreviventes, abrigados pela família de Frosty a gerações. Suas táticas de guerrilha foram essenciais para a vitória contra os Seres das Trevas, antes do Príncipe deixar o reino. Apesar dos modos bruscos, pareciam realmente contentes em ter os irmãos entre eles novamente.

— Eu não esperava que vocês dois fossem voltar tão cedo. — Kyria abraçava Nyx como se ela fosse algum tipo de pelúcia humana. As marcas de batalha que compartilhava com Helbrand maculavam sua beleza, principalmente uma cicatriz que começava no meio da testa e terminava no lado direito da mandíbula, formando um arco.

— Já vai fazer três anos, isso é muita coisa.

— O que são três anos para quem viveu séculos? — ela deu uma gargalhada estrondosa, soltando um dos braços para passá-lo no pescoço de Frosty também, de maneira que mantivesse os dois perto dela. — É bom ver meus pestinhas desordeiros novamente.

— Pestinhas desordeiros? Sério, queria que as pessoas demonstrassem o amor delas por mim de uma forma mais normal. — Frosty abriu um sorriso, rindo baixinho, mas logo sentindo-se enforcado pelo aperto.

— Kyria, você vai esganar eles se continuar. — avisou o outro elfo, erguendo uma sobrancelha. Seus rosto também era um amontoado de marcas, mas no seu caso parecia que tinha caído na briga com algum animal muito grande. Levando em consideração a cicatriz de três garras no lado esquerdo de sua face, parecia um milagre o olho por trás delas ainda estar intacto. — Talvez devêssemos levá-los a presença de Levih.

A elfa soltou-os automaticamente, logo batendo suas palmas em frente ao corpo. — Isso! Levih vai gostar de saber que vocês chegaram!

— Ele deve estar me amaldiçoando por todo o trabalho que deixei pra ele. — Frosty passou a mão pela nuca, ligeiramente envergonhado, ao passo que Nyx segurava o próprio pescoço, a cata de ar.

— Que blasfêmia, nosso idioma não foi feito para se xingar alguém. — protestou a mulher, unindo as sobrancelhas em reprovação. Mesmo que estivessem conversando na língua geral por causa dos visitantes, era comum que o élfico fosse a língua mais utilizada no reino. Ela focalizou seus alunos e bateu palmas mais uma vez, mas para chamar a atenção deles. — Ei, ei, vocês! Parem de mordomia, vamos voltar ao treinamento.

Um coro desanimado foi escutado, e ela fez questão de ignorar. Sean e Neco pareciam prestes a seguir caminho, mas Anne e Ryan estavam entretidos demais com o grupinho de recrutas para deixá-los tão rápido.

— Ei, Nyx, deixa a gente ficar!

— Por favoooor! — o shifter estendeu a última sílaba da frase, piscando os olhos adoravelmente.

— Nós temos que prestar homenagem ao regente da cidade, seus encrenqueiros. — Nyx retrucou. — Depois disso vocês ficam livres pra fazer o que quiserem, desde que não atrapalhem ninguém.

— Vamos, antes que ela arraste-os pelas orelhas, sim? — Frosty piscou um dos olhos para eles. Kyria assentiu com a cabeça, logo dando um bruto tapa nas costas de Nyx e do Príncipe para que ambos andassem. Um tapa forte o bastante para quebrar os ossos.

— Vamos lá! Helbrand, cuide dos aprendizes no meu lugar.

 

As ruas da Cidade Branca não eram mais que trilhas, como se ramificassem a cruz inicial e a estendessem ao redor das árvores e cogumelos. De perto era ainda mais imponente e dantesca, com um perfume fresco que nunca se extinguia. Os habitantes botavam suas cabeças para fora dos troncos de árvore, onde escadarias circulares subiam até perder-se de vista, e batiam palmas, mostrando simpatia ao seu querido príncipe. Canções pareciam ecoar pelo lugar, uma cantiga alegre sobre jornada e retorno.

Um grupinho de crianças elfas havia se juntado ao cortejo, rodeando seus integrantes. Ainda que tenham conturbado um pouco a passagem, foi divertido vê-las tão próximas aos recém-chegados, abraçando suas pernas ou pulando em seus braços. Frosty se revezava para dar ao menos um pouco de atenção para cada uma, agora carregando nas costas uma elfa de adoráveis olhos azuis, enquanto Nyx se esforçava na tentativa de pegar de volta sua boina, raptada por outro moleque. Sean, que em algum momento do caminho havia dado o braço à Neco para que esta não se perdesse, aguentava em silêncio o riso contido dela, destinado muito provavelmente aos outros dois jovenzinhos que penduraram-se nele. Ryan e Anne disputavam curtas corridas com algumas crianças, indo e voltando pelo caminho. Obviamente ganhavam fácil, e obviamente já estavam exaustos quando chegaram aos portões do castelo.

Kyria conseguiu de alguma forma juntar os pequenos elfos e deixá-los do lado de fora, alegando que a partir dali os adultos tratariam de assuntos importantes. Depois de promessas veementes de que voltariam mais tarde para brincarem com eles, os visitantes finalmente adentraram o palácio, onde o ambiente era mais silencioso.

— Eles são bastante empolgados. — comentou Sean, quando os portões fecharam atrás de si. Frosty e Nyx trocaram um olhar, antes de assentirem com a cabeça.

— Eles gostam de receber visitas.

— Isso também… Creio que tenham gostado da nossa volta…

— É lógico que gostaram. — a elfa negra piscou um dos olhos, logo cruzando os braços e batendo o pé no chão. — Sério, onde está aquele regente preguiçoso?

De fato, o salão estava vazio. Se é que poderia ser considerado um salão… Era bem extenso, escavado diretamente na madeira dos diversos troncos, iluminado por luzinhas laranjas flutuantes, que pareciam estar vivas. Do centro subia um tronco mais fino, intacto, servindo de base para outra daquelas escadas de madeira e corda em espiral. Olhando bem, ela parecia levar a outros níveis bem elevados, já que o teto da sala era suficientemente alto.

As paredes eram cobertas de arabescos em baixo-relevo, com quatro símbolos se destacando. A direita do portão, havia o que parecia ser uma chama. À esquerda, uma gota estilizada. Diretamente a frente deles podia ser visto algo parecido a uma brisa e também um círculo perfeito.

Sabia-se, desde sempre, que o Panteão de Ordem e Caos era relegado aos humanos, sendo criado por eles e fortificado da mesma forma. Ainda que indivíduos de outras raças ocasionalmente optem por rezar a eles, e que suas lendas sejam ministradas em toda Meroé, sua primazia era humana. Elfos, shifters, e outros tantos povos mais ligados à natureza, prestavam suas honras aos deuses primordiais, os quatro elementais que deram vida à terra esquecida pelo tempo. Os símbolos no salão principal remetiam a isso.

Haviam longas mesas e cadeiras de madeira branca no local. Talvez fosse ali que Kyria visava encontrar Levih, intento que foi facilmente frustrado. No entanto, o som de passos descendo a escadaria chamou a atenção de todos. Principalmente quando uma voz masculina e sonolenta passou a protestar, dirigindo-se a algum outro alguém. — Eu entendo sobre prioridades, Alyss. Estou apenas esticando as pernas, não sabia que isso era proibido também…

— Não é proibido, meu senhor, mas há muito trabalho a ser feito… e os sentinelas estão reportando um aumento na quantidade de invasores. — a segunda voz era feminina, metódica. — Existe um desequilíbrio…

— Eu sei, um desequilíbrio de forças fora daqui. Já conversamos sobre isso antes. Não posso interferir nos assuntos de fora a menos que… — o elfo que falava, agora já visível, estacou na escada, observando com visível surpresa o grupo parado lá em baixo. — Ichabod? Nyx? — a expressão entediada foi transformada em um sorriso adorável. — Pelos deuses, o que estão fazendo aqui?

Sem esperar por uma resposta e ignorando a exclamação de surpresa da moça que vinha atrás dele, desceu os últimos degraus como um raio e em pouco segundos já estava dando um abraço camarada em Frosty, ambos trocando tapinhas nos ombros um do outro. — Essa é a minha casa, eu volto quando eu quiser! Que raio de boas vindas são essas?

— Foi você que largou tudo nas minhas mãos pra seguir a pirralha, pensei que não queria criar responsabilidades tão cedo! Caramba, o que você arranjou na sua mão?

— É uma história meio longa.

— Não tem problema, eu tenho tempo. — uma tosse fingida interrompeu-o. A elfa postara-se atrás dele, com um dos braços prendendo algo muito similar a uma prancheta na frente do corpo e o outro levantado para cobrir seus lábios. — Oh… esqueça, Alyss está drenando meu tempo vital como sempre.

— Minha função é organizar o seu tempo já que és incapaz de fazê-lo por si mesmo, meu senhor. — não poderia haver duas criaturas tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes ao mesmo tempo. Apesar dos cabelos dourados e dos olhos verdes presentes em ambos, e das feições bem similares (o que podia sugerir certo parentesco, ou não), Levih tinha uma postura bem relaxada, sendo o tipo de pessoa de sorrisos fáceis e que se distraia com muita frequência. Seus cabelos compridos ficavam presos atrás por um laço, e suas vestimentas lembravam mais as de um andarilho do que as de um regente. Alyss, em contra partida, era metódica, aparentemente fria e ordenada, com seus cabelos curtos que mal chegavam ao queixo – um corte muito raro na cultura élfica, principalmente por parte das mulheres – e túnica branca bordada com detalhes verdes.

Talvez fosse a sua personalidade controlada que a impedisse de bater com a prancheta sobre a cabeça do seu mestre, o que já devia ter lhe passado pela cabeça, algumas vezes. Os olhos gélidos correram em direção a Frosty e ela fez uma mesura suave. — É um prazer revê-lo, majestade.

— Continua competente como sempre, Alyss. — O príncipe elogiou num tom moderado, o que levantou uma onda de injúrias de Levih. Kyria meneou a cabeça, chegando a conclusão que xingamentos soavam realmente muito bem na língua élfica. O regente do Vale das Estrelas terminou de lançar amabilidades para seu amigo e concentrou-se em Nyx, calada ao lado dele. Depois de um tempo interminável olhando para a mesma, muito sério, ergueu uma mão para tocar o topo da sua cabeça.

— Você continua minúscula, quando é que vai decidir crescer?

— Cale-se.

— Sejam todos bem-vindos ao Vale das Estrelas! Agradeço-lhes de todo o coração por tomarem conta de nosso querido e problemático Príncipe. E bom… da nossa pequena mestiça que mais parece uma anã. — Ele ignorou-a, dirigindo-se aos outros quatro membros do grupo. Sorriu daquela forma cativante, piscando um olho para eles. Ficou surpreso com sua juventude, com exceção de Sean mal haviam chegado a adolescência. Levih gostava de ajudar e abrir as portas para aqueles que tinham bom coração… o problema era que, nos últimos tempos, a maior parte dos que chegavam às fronteiras do reino não eram criaturas boas nem de longe e, como tais, estavam fadados a serem devorados. Era sempre revigorante receber convidados, ainda mais quando eles tinham um senso arraigado de honra.

Vasculhou cada um dos quatro com atenção, mas quando fixou-se em Neco, seus olhos brilharam e ele saltou para a frente, agarrando as suas bochechas com delicadeza e depois passando a segurar suas pequenas mãos entre as dele. — Céus… uma elfa do entardecer! E tão jovem, vindo das cidades humanas…

Neco assustou-se, dando um passo para trás. Sean rosnou baixo, lançando-lhe um olhar de alerta e segurando o pulso dele para que soltasse-a. Se lhe perguntassem porque fizera isso, o shifter não saberia responder. Havia desenvolvido um instinto protetor para com a elfa, não sabia dizer se por causa do vínculo como relicários ou se havia algo a mais. Notando sua indisposição, Levih rapidamente se afastou, soltando-a e abrindo um sorriso sem graça, enquanto coçava a nuca. — Lamento tê-los perturbado. Acho que me empolguei um pouco.

Frosty suspirou, aliviado por não ter que se meter em confusão logo cedo. Seus companheiros estavam entre a surpresa e a tensão. Conheciam o bastante do shifter para se preocuparem com uma possível briga, embora a reação dele tenha sido inesperada. Kyria nem se intrometeu, julgando que não seria necessário, afinal seu príncipe nunca traria um troglodita para dentro de seu reino. Aquilo logo se resolveria, e estava até sendo divertido. Alyss não fez mais que endireitar a fina armação dos óculos que se utilizava sobre o nariz (sabe-se lá porque ela os tinha, afinal os elfos eram conhecidos por sua ótima visão) e voltou a tossir. — Tenha modos, meu senhor.

— Está tudo bem… mesmo! — Neco percebeu que corara. Muita atenção sobre ela parecia causar esse efeito. Ou talvez fosse outra razão… — Eu não me ofendi. Eu só não estou acostumada a tanto entusiasmo. — Sorriu timidamente. Sua voz saíra murmurada como sempre, quase ininteligível, mas ficara tão nervosa que não pensara em responder com os sinais. Também não sabia se Sean havia dito algo, pelo fato de prestar atenção apenas em Levih quando ele chegara mais perto, lendo apenas os lábios dele. Tinha a clara sensação de que estava perdendo alguma coisa…

O regente piscou, respirou profundamente e inclinou a cabeça. — O que quero dizer é que ficamos felizes em tê-la conosco. Todos vocês, na verdade. — levantou o olhar, mais calmo, englobando todos os presentes. O shifter mais velho notou que fora um pouco desagradável para com o anfitrião e desculpou-se com o olhar, o que bastava para Levih, que apenas balançou-lhe a mão como quem diz “não foi nada”. Disposto a ignorar sua assistente elfa por um tempo, antes que a mesma lhe enchesse de tarefas outra vez, o governante provisório do Vale das Estrelas fez um movimento elegante, apontando para a escadaria. — Por favor, sigam-me para um local mais aconchegante. Temos muito a conversar!

De fato, eles tinham.

Muito mais do que se poderia prever, num primeiro instante.

 

 

Compêndio dos Anciãos

Sobre o povo élfico e seus Reinos.

 

É sabido que os elfos surgiram em Meroé na mesma época que as demais raças originais. Outrora seu número de indivíduos era alto e eram separados em três espécies: os elfos da alvorada, com suas compleições belas, pele pálida e corpos esguios; os elfos do crepúsculo, cuja pele era como carvão, apesar de ainda manter a delicadeza própria da raça, e viviam em lugares onde a luz do sol mal chegava até eles, como em pântanos; e os elfos do entardecer, com seus corpos bem menores com relação aos outros e orelhas peludas e pontudas, mais parecidas com as de um animal.

Enquanto os deuses vagavam pelo mundo mortal, havia harmonia quase total entre todas as raças e espécies. Os deuses do Caos causavam distúrbios a todo momento, mas os laços permaneciam fortes. Depois da queda de Ragadash e da ascensão dos deuses, contudo, o que vingou foi o ódio e a guerra. A população de humanos aumentou consideravelmente, tornando-se logo a dominante. Os anões foram banidos para as montanhas e é dito que hoje estão quase extintos, é raro encontrá-los na superfície. Os elfos do crepúsculo, aqueles que tinha uma tendência mais violenta, foram massacrados, ainda mais na Era de Pesadelo. Os do entardecer eram capturados e utilizados como escravos, na maioria das vezes sexuais, devido a sua fragilidade e docilidade.

Os elfos da Alvorada mantiveram-se firmes, abrigando muitos dos outros sob seu teto. Nessa época suas tribos unificaram-se e foram criados os dois Reinos Élficos que resistiram por mais tempo, um situado em Zaphiria e o segundo em Shion.

Com o lento arrastar dos anos, o Reino de Zaphiria foi corrompido em sua própria linhagem real, adquirindo o costume bárbaro de escravizar os de sua própria raça, assim como humanos, forçando-os a minerar os cristais de suas minas. Alegando que estavam mantendo a raça pura, não exitavam em matar ou desfazer-se de crianças bastardas. Versados em magia, mas especialistas em tortura e degradação, ficaram conhecidos pela criação dos chamados Guardas-Reais, a elite de protetores da nobreza. Atualmente, é conhecido como o Reino Élfico Vermelho.

O Reino de Shion, apesar de manter a honra e a sabedoria pelas quais eram conhecidos, tiveram também um triste fim. Um dia os Seres das Sombras, criaturas que supostamente teriam vindo do Vazio, ou da dimensão aberta pelos habitantes de Ragadash, viram-se organizados o bastante para investir contra a vida meroense, e resolveram começar com o reino. O ataque foi fulminante e tão surpreendente que poucos tiveram oportunidade de escapar. Os sobreviventes, liderados pelo Príncipe herdeiro, subiram as montanhas da região, chegando à fronteira entre Shion e Hathea, e ali encontraram um vale de difícil acesso, o qual reivindicaram. Dessa forma, das cinzas do antigo reino surgiu o belíssimo e remoto Vale das Estrelas, que perdura até os dias atuais. Sendo constantemente alvo de comparações com o Reino de Zaphiria, ele ficou conhecido, na língua dos homens, como o Reino Élfico Branco.

Depois que Pesadelo foi encarcerado, alguns elfos desgarrados passaram a frequentar a sociedade nas cidades onde os homens dominam. Muitos órfãos conseguiram trabalho nas tavernas, e seus laços com a humanidade estreitaram-se novamente, embora ainda existam muitas pessoas de índole maldosa, que podem acuá-los. Atualmente, estamos na era dos Caçadores de Recompensas, contudo… e essas pessoas são, geralmente, seu principal alvo.


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Notas finais do capítulo

Considerações Especiais:

+ Como sempre, começando pela imagem: sim, este é o Sean... ou uma representação dele. Eu sou a única que acho o Sean meio aterrorizante as vezes?

+ Depois de muuuuuito tempo - e da minha memória voltar a funcionar como deveria - eu retornei com os trechos do Compêndio dos Anciãos. Espero que esse pequeno trechinho tenha sido o bastante para sanar algumas duvidas sobre os reinos élficos e as espécies.

+ Todos os quatro híbridos, ou Sentinelas do Vale das Estrelas são baseados em algum personagem que eu gosto - geralmente fica claro com o nome e a parte animal referente. Os outros três aparecerão em breve. "Vriska" é o nome de uma troll em Homestuck, que se vangloriava de ter seus oito olhos (sete retinas no olho esquerdo, pelo menos) e poder controlar coisas com eles.

+Tem muitos personagens novos,eu sei, alguns são relevantes, outros não, mas eu definitivamente não consigo deixar de detalhar um personagem novo quando ele aparece, por minimo que seja seu papel na história. -q Mas garanto-lhes que todos foram importantes ou serão em algum momento da narrativa.

+É só isso por hora, pessoal. Qualquer dúvida podem perguntar e tentarei postar o próximo o mais rápido que eu conseguir. Kisses kisses para vocês todos e até lá :3