Crônicas do Pesadelo {Interativa} escrita por Dama dos Mundos, Kaline Bogard


Capítulo 54
A breve aventura de Ryan e Anne.


Notas iniciais do capítulo

Gente do céu, to de volta o/
Não vou nem me demorar explicando as mil e uma razões da demora, só vou dizer que o cap hoje está meio insano... e grandinho.
Tenho que compensar pelos meus sumiços, no fim das contas, não é?
Desejo uma boa leitura pra vocês, seus lindos (Se é que ainda tem gente que me acompanha com todos os meus sumiços -q) ♥



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Para Ryan, o teletransporte era algo extremamente divertido, opinião que discordava em peso do resto de seus parceiros. De maneira que, ao aparecer na entrada de Hathea, no meio de um monte de civis que ficaram observando-o de maneira aparvalhada, apenas espreguiçou-se e preparou-se para encarar a missão que teria de levar a cabo sozinho.

Devidamente guardada dentro de sua bagagem, a flor de Etherea aguardava o momento para ser usada. Lembrando-se vagamente das instruções sobre o local onde ficaria a Taverna do Grifo, o garoto moveu-se para tentar encontrá-la.

Nos últimos dias, a sensação de petrificação estava cada vez mais desagradável. O shifter queria resolver aquilo antes que não conseguisse mais se mover, afinal se tal coisa ocorresse, seria tarde demais. Não havia mais ninguém com quem pudesse contar por perto. Ele caminhou em silêncio pelas ruas da cidade, observando tudo ao seu redor com entusiasmo, já que Hathea era território proibido para os Beast Hunters.

A primeira coisa que reparou foi que haviam muitos caçadores de recompensas por aquelas bandas. Independente de haver um Posto de Recompensas na redondeza, o número era incomum. Eles estavam em intenso tráfego, alguns dando a impressão de sair da cidade, enquanto outros pareciam chegar. Ocasionalmente, podia ver cartazes de “procurados” pregados em murais. Foi fácil para ele reconhecer os rostos com maior recompensa, agora beirando às 200 moedas de ouro, cada um. A JusticeBlade continuava na mira de todos os mercenários do continente, e se aquela situação não fosse contornada, logo não haveria lugar onde pudessem descansar em paz.

Ele deu de ombros por hora. Aquilo não lhe dizia respeito, ele precisava achar Anne. Felizmente, não precisou andar muito para encontrar seu antigo local de trabalho. A Taverna do Grifo era um estabelecimento grande, construído em madeira e com um balcão que chamou imediatamente sua atenção. Deveriam ter todo o tipo de bebidas ali, Ryan pensou, mas descartou tal ideia ao lembrar-se que ainda era menor de idade. As mesas eram todas redondas, e estavam ocupadas. Não parecia ter nenhum caçador por perto, mas preferiu não chamar a atenção.

Dirigiu-se para o balcão, onde um homem de aparência jovem e roupas sociais preparava um drink para outro cliente. Seus olhos eram de um azul vívido, assim como os cabelos, dando um excelente contraste com o terno preto e a blusa vermelha que usava por baixo. Ryan viu quando ele empurrou a taça alta com líquido fumegante e não identificado para o homem que estava ao seu lado e virou a cabeça para observá-lo de sempre. — Nós não vendemos bebidas alcoólicas para crianças. — Foi logo dizendo, girando nos calcanhares e disposto a ignorar o shifter.

— Er… mas eu não queria nada forte, é sério.

— Bom… então o que faz em um lugar como este? — questionou, olhando-o por cima do ombro. De alguma forma, seus olhos azuis eram perturbadoramente intimidadores.

— Estava buscando algumas informações… a respeito de uma pessoa que trabalha aqui.

— Não posso ajudar. — o rapaz disse com indiferença, e quando se preparava para atender outro pedido, uma jovem extremamente parecida com ele passou pela porta que havia atrás do balcão, a qual provavelmente levava à adega, estoque e outros possíveis cômodos da taverna. A única diferença entre ambos eram os traços femininos da moça, e os cabelos excessivamente longos, presos em marias-chiquinhas. Chegando exatamente em boa hora para ouvir parte da “conversa”, lançou um olhar enviesado ao seu parceiro, resmungando.

— Pare de espantar os clientes, Morpheu.

— Ele não é um cliente, e eu não estava espantando ninguém!

Ela ignorou-o, caminhando até mais perto de Ryan e abrindo um sorriso absolutamente agradável para o mesmo, o suficiente para fazê-lo corar sem motivo algum. — Ignore-o, ele não sabe lidar muito bem com as pessoas. — apoiou o corpo sobre o balcão, que estava praticamente vazio ao contrário das mesas, e continuou. — Em que posso ajudá-lo, garotinho?

— Ah… — Ryan esqueceu-se momentaneamente do motivo de estar ali, e só a sensação desconfortável de peso fez com que voltasse a falar. — Eu soube que era aqui onde uma das integrantes da Justice Blade trabalhava… aquela que foi petrificada.

— Hum… Anne Skyter. — algo passou pelos olhos da garota e ela endireitou-se para trás, ficando de pé. Puxou uma garrafa com vinho de mel para frente, enchendo uma caneca e empurrando-a na direção dele. — Beba.

— Mas eu sou…

— Beba, vamos lá… um pouco não vai fazer mal.

— Nem mesmo um idiota beberia algo que um estranho oferece. — protestou o rapaz, Morpheu, lançando-lhes um olhar apático.

— Esse é o tipo de pensamento fortuito que passaria pela sua cabeça e não pela minha. — retrucou a moça, jogando seus rabos-de-cavalo para trás. — Não há uma razão para eu embebedá-lo ou envenená-lo, garoto, fique tranquilo. A propósito… você é um daqueles caçadores chatos que estão atrás da Justice Blade?

— Não… não… digo… — Ryan olhou de um lado para o outro, aflito, perguntando-se qual seria a resposta correta a dar. — Quero dizer… sim, eu sou. É, essa recompensa me deixaria tranquilo pelo resto da vida.

Morpheu abriu um sorriso ácido. — Desse jeito você não vai enganar ninguém. De qualquer forma, sugiro não responder quando se encontrar com caçadores de verdade, ou vai ter problemas.

— Oh, isso que ele disse… você pode levar a sério, dessa vez. — ela alegou, num tom zombeteiro, batendo levemente com a unha na borda da caneca. — Escute… a maior parte, se não todos os caçadores disponíveis estão atrás da Justice Blade… em parte por causa da recompensa, em parte por causa de moralismo vazio. Se eles encontram alguém a favor do grupo, sem sombra de dúvida somem com a pessoa.

— V… vocês são a favor?

A garota trocou um olhar com Morpheu, e ambos abriram um sorriso misterioso. — Não exatamente.

Ela fez mais uma vez um gesto para que ele bebesse. Ryan pegou a caneca entre as mãos e tomou um gole. A bebida era realmente gostosa e doce, bastante leve. Havia visto várias vezes os outros membros de seu próprio grupo beberem, então sabia que não podia virar o conteúdo da caneca de uma vez só, como se fosse água. Tomou mais um gole pequeno e desceu-a novamente sobre o balcão. — Vocês estão sendo caçados por isso, talvez?

— Não, não. Você entendeu errado. Na verdade, nós estamos neutros nessa situação. Seria até interessante caçá-los, sabe, mas nós temos uma dívida com um certo Príncipe Élfico, então… não podemos agir diretamente contra eles. Seria antiético.

— Não que nos preocupemos tanto assim com a ética, de qualquer forma. — Morpheu agora estava placidamente enxugando um copo para servir outro cliente, ainda mais afastado dos mesmos. A conversa entre os três fluía em tom baixo, mas alguém que prestasse bastante atenção já poderia ter escutado os fragmentos e somado dois com dois.

— Mas, de qualquer forma, vocês não tem medo de que os outros saibam que não estão atrás da Justice Blade?

— Eles já sabem. — alegou o rapaz, de maneira seca.

— Mas não ousam fazer algo com relação a isso. — complementou a jovem, piscando delicadamente para Ryan. — No entanto, garotinho, nós somos um caso a parte, então não aconselho que fique alardeando suas intenções por ai.

Ele segurou o próprio queixo, pensativo, e observou-os por alguns instantes. — Hum… se vocês são caçadores… o que estão fazendo trabalhando num lugar como esse?

— Ossos do ofício. Mais importante… não sei o que pretende com relação a garota petrificada, mas devo afirmar que ela não está mais aqui. Foi movida para a mansão do Duque de Lerian.

— C., se vai ficar distribuindo informações ao menos cobre por elas. — Morpheu repreendeu, observando-a de esguelha.

— Confie em mim, irmãozinho. Não seja tão ranzinza.

De toda forma, Ryan não fazia a menor ideia de onde ficaria a Mansão de Lerian. As únicas informações certas que foram lhe passadas continham a localização da Taverna do Grifo e o lugar que deveria ficar longe custasse o que custasse: A Mansão Saint Ignis.

Minha mãe tem intuições certeiras e desconfia com muita facilidade. Não quero nem imaginar o que faria a ti se o encontrasse… evite o território dos Saint Ignis o quanto puder. — aconselhara-lhe Nyx, antes de enviá-lo para Hathea. — Caso cruze o seu caminho, sem sombra de dúvida irá reconhecê-la. Neste caso, desvie o olhar e procure uma forma de deixar sua presença o mais rápido possível.

Bem… ele podia dar conta daquilo, acreditava. Na pior das hipóteses assumiria sua forma lupina e rasgaria sua garganta. Embora tivesse dúvidas se a líder dos Justice Blades se chatearia com tal decisão. Bebeu mais um gole do líquido oferecido e endireitou-se. — Eu agradeço pela ajuda.

— Não tem de que. — A moça, ou “C”, piscou-lhe novamente. — Pode dar um recado ao Príncipe Élfico?

— Posso. — bem, ele não estava com uma boa impressão com relação àquilo.

— Espero que isso diminua nossa dívida. — ela disse pausadamente, o suficiente para que o garoto conseguisse guardar as palavras. — Quanto a ti, desejo-lhe boa sorte.

 

oOo

 

Ele demorou um bocado para descobrir a localização da dita mansão. Claro, podia ter pedido a informação diretamente aos pretensos irmãos, mas ficou receoso que “C” levasse em consideração a opinião de Morpheu sobre “não oferecer dados de graça”. Até porque, achou que já estava abusando demais da sorte com aqueles dois.

Decidiu invadir na parte da noite, utilizando-se do restante de seu tempo livre para bolar um plano de ataque. Havia feito isso uma dezena de vezes junto a seus parceiros, quando tentava capturar um criminoso com esconderijo seguro. Olhando de fora, a Mansão de Lerian não parecia muito diferente de todas as outras da região, se fosse ignorada a quantidade fora do normal de guardas. Alguém parecia temer alguma coisa, afinal… Levando em consideração que o Duque estava com a última integrante de um grupo procurado em seu poder, era até compreensível.

Não conseguiria plantas da casa ou a localização certa de Anne. Isso lhe dava apenas duas opções, que se resumiam em:

Número um, gastar ainda mais tempo reunindo informações e só então resgatá-la.

Número dois, invadir usando o conhecimento que tinha e torturar alguém no meio do caminho para lhe dar as respostas que faltavam.

Como esperado do inconsequente Ryan, era óbvio que ele escolheria a segunda opção. De maneira que, quando o sol já havia descido no horizonte e as estrelas pontilharam o firmamento, pôs-se a agir.

Driblar os guardas não foi tão difícil quanto previra a princípio. Ele preferia não matar ninguém sem justa causa, mas devido às circunstâncias era inevitável. Seu machado encontrou a cabeça de um cara com um olhar ranzinza, rachando-a e abrindo, assim, uma fenda no bloqueio humano que o impedia de entrar na residência. Puxou o corpo para um canto para deixá-lo fora de vista e remexeu na mochila para puxar os ganchos e as cordas para escalada. As paredes eram visualmente planas demais para que ele pudesse subi-las da maneira tradicional, então ficou satisfeito consigo mesmo por ter trazido equipamentos para arrombamento.

Ele lançou a corda, fazendo-a enganchar-se em uma saliência no telhado. Virou a cabeça de um lado para o outro para ter certeza que nenhum outro guarda passasse por ali e pôs-se a escalar. Desde que mantivesse silêncio, não corria muito risco de ser descoberto, afinal era sabido que raramente pessoas focavam sua atenção acima, a menos que estivessem em alerta. A julgar pelo homem que acabara de abater, aquele grupo estava bem tranquilo.

Ryan deixou o corpo suspenso pela corda próximo a uma janela do que parecia ser o segundo andar, e forçou-a silenciosamente para testar a tranca. Estava aberta, e cedeu rapidamente à pressão. Saltou para dentro, tomando o cuidado de não atropelar nenhuma mesa ou móvel que fizesse barulho. Com um puxão bem-dado, fez com que o gancho da corda soltasse novamente, capturando-a e puxando-a para dentro. Só então, ergueu seus olhos para visualizar onde estava.

Era muito provavelmente um quarto de hóspedes, mobiliado de forma suntuosa. Ryan só vira uma vez tal luxo, e fora nos quartos da família Oliver. Observou uma penteadeira azul-turquesa com um espelho mediano e detalhes dourados, que ele cogitou se não seriam banhados a ouro. A mesa de cabeceira e o dossel seguiam o mesmo padrão, este último com véus também azulados. Um lustre de cristais estava pendurado no teto. As paredes e o piso eram pintadas de alguma cor clara e indefinida, enquanto o teto fora decorado para parecer um céu estrelado.

Fosse quem fosse que estava hospedado ali, Ryan agradeceu por não estar presente no momento, e então ele deixou o quarto, atento. O corredor extenso mostrava ainda mais três portas, todas fechadas. Ele desviou seu olhar para adiante, onde desciam escadas. Também deveriam haver escadas que subiam em algum lugar.

Porão ou Sótão?

Qual o melhor lugar para esconder o corpo de alguém?

Decidiu que iria para os andares inferiores.

Depois de se esconder de alguns guardas e desacordar mais alguns – afinal, tempo para matar não havia – logo havia chegado ao que parecia ser o subsolo, após descer uma escadaria que parecia não ter fim. Lá em baixo tudo parecia escuro, frio e úmido, completamente diferente da parte posterior da mansão. Ryan deduziu que ali deveriam ficar as masmorras. Um gotejar incessante e longínquo lhe dava nos nervos, e o cheiro de mofo afetava seu olfato de uma forma desagradável. Não havia nenhuma alma viva lá em baixo, e ele começou a questionar se as pessoas que cuidavam do casarão tinham alguma coisa na cabeça além de vento.

Ele andou um pouco mais, até as celas começaram a surgir no seu campo de visão. Foi olhando pelas aberturas entre grades de uma por uma. Não havia nada lá dentro, se excluísse as duas que tinham restos de ossos humanos. Franziu o cenho, começando a ficar absolutamente nervoso. Se Anne estivesse no sótão, não teria como alcançá-la a tempo dos guardas nocauteados serem descobertos.

Por via das dúvidas, andou até a porta no fim do corredor. Não era uma cela, mas uma passagem para uma segunda câmara, e foi observando pelas frestas que Ryan conseguiu encontrar aquilo que buscava. Era um salão arredondado, mas relativamente pequeno. No centro havia uma estátua de pedra presa ao chão por correntes. Ele não sabia muito bem a razão das correntes, considerando que Anne estava petrificada, mas não ficou pensando muito no assunto. Precisava abrir aquela porta.

Sua aparência era de madeira reforçada, então pôs-se a procurar grampos para tentar arrombá-la sem precisar usar o machado. As primeiras tentativas foram infrutíferas, afinal de contas ninguém havia lhe ensinado a arte da ladroagem. De maneira que acabou se irritando com aquilo e minutos depois estava pondo a porta abaixo com machadadas. O que levantava um novo problema, afinal o barulho deveria chegar aos andares superiores.

Bah… tanto faz…

Atravessou o batente destruído, colocando a mochila para frente do corpo e puxando Etherea lá de dentro. Com passos calculados aproximou-se da estátua. Sua cor era acinzentada, ela estava encolhida como se estivesse tendo crises de dor, a mão estendendo-se para cima na tentativa de agarrar alguma coisa. Seu olhar era aterrorizado, a tal ponto que fez Ryan ficar penalizado. Ele olhou da flor para a garota, enquanto retirava-a de dentro do recipiente que utilizava como proteção.

— Como… — ele parou por alguns instantes, assumindo um tom avermelhado na pele, e segundos mais tarde levando as mãos aos cabelos como se fosse arrancá-los. — Como diabos vou fazer com que beba isso? Colocar sobre o corpo não vai adiantar… não tem como injetar. O que eu…?

Voltou a observar a careta contorcida de horror, a boca entreaberta e os olhos vidrados. Lançou mais um olhar a flor e estremeceu, fazendo uma careta e colhendo suas pétalas e amassando-as aos poucos. — Só espero que funcione, ou Lady Nyx vai me matar…

 

oOo

Ela tinha a noção de que não podia se mover. Algo como uma escuridão densa e pesada apoderara-se dela. Sua última lembrança era de um rosto muito, muito belo observando-a de cima, e logo após atirando algum manto escuro sobre si. E então, tudo virou um borrão. Seus próprios pensamentos e existência pareciam embaralhados numa sopa caótica e ininteligível. Ela não via nada, não sentia nada, não ouvia nada.

Possivelmente, não era mais que nada, também…

Até que houve um instante em que algo mudou.

Algo voltou a sua mente.

Sua mente voltara a ser mente, na verdade. Uma lembrança vaga subiu pelas estruturas, gravando-se como um facho luminoso em sua cabeça.

Havia um garoto. Um rapaz mais novo do que ela. Os olhos eram claros, num tom entre azul e o verde, olhos que derramavam lágrimas de profunda tristeza. Os cabelos curtos eram prateados como a luz do luar.

— Você não vai me deixar sozinho, vai? — questionara, enquanto passava os braços em volta dela, parecendo desamparado, assustado. — Irmãzona…?

— É lógico que não, eu não irei a lugar algum…

 

Anne abriu os olhos, sugando o ar imediatamente, como uma vítima de afogamento faria. Eles giraram de um lado para o outro, procurando saber onde estava. Seus braços e pernas estavam um tanto quanto endurecidos, presos por grilhões ao chão. Ela conseguiu reparar que aos poucos esses tomavam uma coloração normal, perdendo o aspecto acinzentado, e já conseguia senti-los novamente. Outra coisa notável era o gosto indefinido e doce que sentia na língua. Realmente gostoso, embora não conseguisse identificar sua origem. Virando a cabeça completamente para a esquerda, vislumbrou uma figura conhecida.

De onde?

Na verdade ele estava de costas para ela, mas aquele cabelo ruivo parecia familiar. Pelas sacudidelas que seu corpo dava, devia estar com ânsia de vômito.

— Ei… você! — Forçou-se a chamar, estranhando a voz rouca que saia de sua garganta.

A pessoa girou a cabeça para observá-la, com uma profunda careta de desagrado, que logo tornou-se uma expressão surpresa. — Nossa, funcionou mesmo! Eu devo ser um gênio…

— De que diabos você está falando? — ela uniu as sobrancelhas por sua vez, remexendo-se na esperança de se soltar. — Eu… acho que conheço você de algum lugar…

Flashes de cenas surgiram em sua memória. Cabelos ruivos, um machado, um lobo-negro… ah, só podia ser brincadeira.

— Você é… você é o pirralho dos Beast Hunters! — ela se chacoalhou ainda mais, como se isso fizesse com que ficasse o mais distante possível dele. — Você veio pra me devorar? Porque se veio, eu vou socar essa sua cara!

Ela observou ele fazer uma careta de tédio e levantar-se, balançando o machado de um lado para o outro. — Pensando bem… você não deve ser tão útil assim… — A lâmina desceu, e instintivamente Anne fechou os olhos novamente, imaginando que perderia alguma parte do corpo. Ou que uma dor terrível explodiria em algum ponto dela. Mas nada aconteceu.

Reabriu os olhos e observou as correntes que aprisionavam seu lado esquerdo partidas, enquanto o rapaz erguia-o novamente para destruir as do outro lado. — É brincadeirinha. — ele voltou a apoiar o machado no ombro e ergueu uma das mãos para que ela segurasse. — A história é meio longa, mas te conto no caminho. Vamos embora daqui, os guardas já devem estar chegando…

 

oOo

 

Os dois estavam tranquilamente atendendo os clientes noturnos da Taverna do Grifo quando a gritaria, muvuca, confusão – ou o que for melhor chamar – iniciou-se, espantando fregueses, chamando a atenção de outros e, é claro, fazendo os caçadores de recompensas nas redondezas começarem a “farejar o ar” com extrema satisfação.

— Vocês ficaram sabendo?

— Parece que uma criança invadiu a mansão do Duque de Lerian.

— Oh, sério?

— E alguma coisa importante foi roubada?

— Não digo bem roubada… na realidade, pelo que parece, a garota saiu andando com as próprias pernas…

— Que garota!?

— A elfa que foi petrificada na Noite de Máscaras, se não me engano. Anne Skyter.

“C.” desviou a atenção do grupo que conversava animadamente sobre as últimas novidades para observar o irmão. — Parece que o filhote de lobo conseguiu…

— Não é da minha conta, de qualquer forma. — Morpheu mantinha sua expressão apática de mais cedo, parecia que ele definitivamente não gostava de estar ali ou meramente de trabalhar servindo drinques. Ou ele simplesmente vivia aborrecido vinte e quatro horas por dia.

— Ah, mas as coisas parecem estar tão divertidas. — Ela alegou por sua vez, sentando-se no balcão vazio e juntando as mãos de maneira atraente. — Ei… nós não vamos observar um pouco mais de perto?

— Cecil…

— O que foi? Estou realmente interessada. Além do mais, quanto mais cedo quitarmos nossa “dívida”, mais cedo estaremos livres pra fazermos o que quisermos com relação a Justice Blade.

— Pensei que você simpatizava com eles.

— Ahn, eu simpatizo, é claro. Mas dinheiro é dinheiro. Não posso me responsabilizar se essa recompensa continuar subindo. Seria bom se eles simplesmente resolvessem todo o mal entendido – considerando que haja mesmo um – o mais rápido possível.

— É sério, você é incompreensível… — com um movimento leve ele posicionou a garrafa que tinha em mãos junto a tantas outras que haviam atrás do balcão e ergueu a voz para furar o barulho das conversas, dirigindo-a especialmente na direção da passagem que levava a outros cômodos. — Senhor, estamos saindo! Peça a alguma das meninas para nos cobrir!

Uma voz masculina e velha respondeu qualquer coisa parecida com “boa caçada” e os dois saíram por uma porta lateral no próprio balcão, enquanto uma outra garçonete de traços élficos tomava posição atrás deste e lhes acenava com uma expressão receosa. Minutos depois dos gêmeos terem cruzado a porta de entrada, uma figura que parecia isolada de todos os outros, usando cartola e um casaco longo e escuro, desencostou-se do canto em que estava e estendeu a mão para capturar uma bengala deixada ao seu lado. Endireitou a aba do chapéu para que ninguém observasse seu rosto e pôs-se a caminhar, mancando ligeiramente, também em direção à saída.

 

oOo

A alguns metros dali, coisas voavam pelos ares, armas eram atiradas e explosões se sucediam, tendo como alvo um par de jovens: uma garota de alvos e longos cabelos brancos vestida de forma que atrapalhava bastante uma fuga e um rapazinho ainda mais novo com madeixas cor de fogo e um machado muito maior que ele sendo arrastado pelo caminho.

— E agora, o que faremos?

— Eu não faço ideia.

— Você veio até aqui sem um plano de escape!? É sério mesmo isso!?

— Ora, cale-se, eu vim, não vim… e olha aqui, você não pode falar comigo desse jeito não!

Anne praguejou qualquer coisa ininteligível e apressou o passo, rasgando seu uniforme de babados com as mãos, de maneira que conseguisse correr melhor. Ofegante, foi-lhe difícil recomeçar a conversa. — Eu preciso… das minhas manoplas…

— Onde elas estão? — Ryan questionou, virando uma esquina e agarrando a mão dela para que viesse junto.

— Na sede… no nosso esconderijo, mas se formos para lá agora…

— Eu sei, eu sei… bom, temos que pensar que eles já possam ter encontrado o local também.

— Não mesmo. Todos nós trabalhamos nos feitiços de ocultação, inclusive o djinn informante… seria quase impossível alguém furar o bloqueio.

Nesse caso, por que eles fugiram pelos labirintos do subsolo? — chegou a questionar mentalmente, mas já parecia antever a resposta. Além do fato deles estarem ilhados lá dentro se ficassem, a probabilidade do local secreto ser revelado a pessoas de fora era muito grande. Abaixou a cabeça para evitar um pedaço de qualquer coisa muito grande que passou rente a ela. — Precisamos chegar até lá.

— Não tem como, tem uma multidão atrás da gente!

— Bem, você é a dominadora do vento, dê um jeito nisso…

— Ora, seu… — Anne parou em meio a frase ao notar alguém familiar no meio das pessoas que visualizavam a cena da perseguição de fora. — Oh… merda.

— Que boca suja você te… — coincidentemente, ele havia focado sua atenção na mesma pessoa, alguém que nunca tinha visto mas que podia reconhecer com facilidade. — Oh… merda, ela é quem eu estou pensando que é?

— Não sei sobre quem você está falando, mas se conhece Meredith de Saint Ignis, você não deve ter sido muito feliz.

— Não exatamente. — ele confessou, um tanto sem graça, antes de tropeçar e recuperar o equilíbrio por muito pouco. Outro bloco de concreto – agora ele conseguia definir bem o que era – foi lançado na direção deles, e um pulou para cada lado para escapar de sua trajetória. Quem estava atirando-os era um cara tão magro que aquilo tudo parecia um belo paradoxo. Sem sombra de dúvida, outro maldito caçador de recompensas. — Esses caras nunca acabam?

— Nunca vi tantos mercenários juntos em um só lugar, o que diabos está acontecendo aqui?

— Como eu disse, é uma história bem longa.

— Dane-se que seja, eu quero saber!

— Bom, então eu sugiro que vocês parem num lugar mais calmo para debater sobre ela. — uma voz feminina cantarolou, e do mutirão que se reunia para cercá-los por trás, saíram Cecil e Morpheu, ambos caminhando calmamente. Contornaram os dois fugitivos e pararam emparelhados, de maneira que fosse difícil para quem estivesse de fora capturá-los.

— Um bem distante daqui, de preferência… estão atrapalhando nossos negócios. — o rapaz completou, passando as mãos pelos cabelos, jogando-os descuidadamente para trás. Uma boa parte dos caçadores que estavam mais a frente recuaram, assim como outros tantos guardas.

— Saiam da frente, vocês dois, eles vão ser capturados.

— Principalmente essa garotinha ai, ela vai ser nossa isca viva.

— Tsc, que baixos… — Morpheu resmungou de seu lado, lançando um olhar oblíquo para os dois que tentava proteger. — Vão logo, vocês dois, esses retardados estão falando sério.

— Vocês estão realmente passando dos limites, não acham? — Cecil se dirigia diretamente a multidão, enquanto fazia seus dedos das mãos estalarem. — Talvez eu deva ensinar-lhes um pouco da boa e velha educação.

Nessa altura, Anne já havia se recuperado do susto, agarrado Ryan pelo braço e convocado seus ventos para erguê-los do chão, formando uma parede de névoa branca que lhes possibilitou escapar ao mesmo tempo em que “C.” começava suas aulas, de maneira que não conseguiram ver exatamente o que ela fizera àqueles que insistiam em ficar no seu caminho. A elfa puxou-se junto só shifter cada vez mais para cima, até riscarem as nuvens e saírem completamente do campo de visão. Ryan agora conseguia ver um tapete branco abaixo dele, enquanto os braços de Anne seguravam-no pelas axilas, o que não era lá muito confortável.

— Ohhhhh, que coisa mais legal!

— Pare de se mexer, você é pesado, sabia?

Ele ignorou-a temporariamente. — Ei, está tudo bem deixá-los para trás desse jeito?

— Tsc… eles são os Gêmeos Montrevor, é lógico que está.

Ryan assumiu uma expressão que beirava a admiração misturada à surpresa. Haviam outros grupos que tinham em seu currículo feitos tão incríveis que seu nome era mencionado em todos os Reinos. Os Beast Hunters, os Justice Blades e até mesmo a falecida Dançarina das Lâminas fazem parte desse seleto grupo. Assim como os Gêmeos Montrevor, ou mais amplamente conhecidos como Misfortune Twins, os Gêmeos de Infortúnio. Isso porque, fatalmente, aqueles dois causam um estrago considerável quando estão em um trabalho, o suficiente para que nenhum dos outros grupos quisesse arranjar briga com eles.

Os Beast Hunters não fazem prisioneiros.

Ninguém fica no caminho da Justice Blade e continua inteiro para contar a história.

Nunca arranje uma briga com os Misfortune Twins.

Era mais ou menos como as coisas costumavam funcionar. Mas já vimos que muito foi mudado, desde que este “jogo” começou…

 

— Mais importante… — Anne recomeçou a falar. — Precisamos entrar no esconderijo para ficarmos seguros. Dessa forma posso recuperar minhas manoplas…

— E eu poderei teleporta-nos para onde os outros estão.

— E isso também, pelo que parece. Temos um ótimo plano de ação!

— Sim, mas pra que lado fica?

Ela desceu a cabeça em direção ao tapete feito de nuvens que mexia-se abaixo deles, focalizando os pontos em que elas se separavam, e estreitou os olhos. — Creio que seja por aqui!

E, sem nem ao menos avisar, jogou-se lá de cima, carregando-o consigo.

 

oOo

 

Para ser justo com a jovem, Ryan teve que admitir que aquela forma de viajar era bem prática. Não demorou muito para que atingissem o local onde ela dizia estar a antiga sede da Justice Blade: um espaço um pouco mais amplo que um beco comum, escuro e entrincheirado entre duas construções de estrutura questionável. Mas se Anne alegava com tanta certeza que ficava por ali, ele não ia discutir.

A jovem fez um sinal para que ele a seguisse e pôs-se a pisar cuidadosamente, num primeiro instante parecendo andar aleatoriamente. Mas com a concentração que ela o fazia, era fácil imaginar que havia um caminho oculto, o qual ele não podia enxergar no momento. — Pise exatamente onde eu pisar, tudo bem?

— Tá, tá… se você diz.

Ele desceu seus olhos para os pés dela e esperava-a dar um passo a frente para colocar seu pé no local que a garota acabava de deixar vazio. Dessa forma, aos poucos, eles foram infiltrando-se no beco. Ryan podia notar que uma breve luz cintilava quando pisava no lugar certo, e só ergueu sua atenção quando Anne parou de caminhar e ergueu a mão a frente, como se agarrasse alguma coisa no ar. Em seguida, puxou para baixo, revelando uma porta parada em meio ao… nada.

Era de madeira escura e sem muitos atrativos. Não fosse a estranheza de estar pendurada no vazio, com tantas barreiras mágicas espalhadas ao seu redor que senti-la era quase impossível, lembrava uma porta de casa simples sem atrativo algum. Anne usou as mãos rapidamente para tocar em pontos estratégicos sobre a sua superfície, e só então ela se abriu, sugando ambos para seu interior e fechando-se em seguida com um som surdo.

 

Ryan tropeçou e quase foi de cara com o chão por causa do susto que levara na repentina sucção, sendo salvo desse destino pela mão da garota, que havia agarrado-o pela gola da camisa. — Ei, aguenta ai, nem foi assim tão ruim…

— Eu não estou reclamando!

— Apenas cale-se. — resmungou ela, fazendo uma careta e estalando os dedos. Luzes se acenderam por toda a extensão do local, de maneira que deixasse a vista todo o aposento em que estavam. Ele lembrou-se de chalés e casas simples de madeira, com suas salas medianas de aparência impecável e colunas envernizadas que seguravam o andar superior. Ao fundo havia uma estante abarrotada de livros e confortáveis sofás de tom café abriam-se paralelamente de frente para elas. Uma mesa de madeira extensa estava repleta de papiros e documentos. Uma escada circular subia pelo canto direito da pequena biblioteca para levar a outro andar. Havia um frescor no ar, um cheiro não identificado, mas que o remetia ao vilarejo em meio às matas, no qual passara toda a sua infância.

— Acho que Nyx e Frosty estavam inspirados quando construíram esse lugar. — A moça murmurou, dando de ombros e andando em direção à escada.

— Foram eles que fizeram? — Ryan observava com extrema atenção as janelas grandes e despreocupadamente abertas, que davam para um jardim noturno de flores luminescentes. Parecia que estavam em outro local completamente diferente, aquilo simplesmente não combinava com a Hathea que havia acabado de conhecer.

— A parte da casa, sim. Usaram magia de criação élfica para a estrutura e feitiços de confusão para que ninguém além de nós encontrasse. Aparentemente, os que chegaram depois trouxeram outras coisas. Os jardins, algumas peculiaridades dos cômodos superiores e coisas assim são a contribuição de Neco, Selene e minha. — Cruzou os braços, parecendo ligeiramente nostálgica, apesar de não ter passado tanto tempo assim longe dali. Ocorreu a Ryan a questão dela já prever que não voltaria àquele lugar tão cedo. Talvez, nunca mais. — Lidrin retirou-nos completamente da dimensão quando entrou para o nosso serviço de informação. Há uma outra porta que leva para os prados finitos que ele criou para manter-nos entretidos, mas de dia isso aqui é muito mais interessante.

— Mas… mas… magia de criação? — ele tentou focar na parte interessante e não na melancólica, ou começaria a se arrepender de ter ido para lá. Apoiou o machado no ombro e coçou o queixo, pensativo, o que não ajudava a fazê-lo parecer mais másculo. Não se lembrava de ver nenhum dos dois utilizando magia que não fosse estrita a seus elementos.

— Sim… elfos tem capacidade maior de aprender magia, principalmente ligada à natureza, é uma habilidade inerente da raça. Embora não signifique que possa ser usada toda hora. Como a maioria de nós se especializou em dominar apenas a parte elemental para o ataque, acho que as outras não passam de vislumbres de poder. — uniu as sobrancelhas com certa dúvida, antes de completar. — São bem fraquinhas, no geral.

Ele ficou tentado a admitir que a parte elemental que cada um dos Justice Blades trazia consigo estava um pouco além daquela visão de magia comum, mas preferiu deixar para lá. Anne continuou andando e subiu as escadas, dois degraus de cada vez, o som de seus sapatos fazendo eco na madeira. — Espere aqui, vou pegar as manoplas. Depois poderemos ir.

— Olha aqui, eu não sou um ladrão nem um empregado, está ouvindo! — resmungou ele lá de baixo, e girou nos calcanhares, enfiando a mão nos bolsos com violência e marchando para a estante de livros. Desviou habilmente dos sofás e colocou-se entre o espaço considerável que havia entre a mesa e as prateleiras, passando os olhos pelas obras. Havia de tudo ali, de um exemplar do Compêndio dos Anciões a contos de fadas. Livros educativos sobre ervas medicinais, biologia racial, magia arcana e afins saltaram a seus olhos. Focou sua atenção em um livro que estava ligeiramente fora do lugar, estendendo a mão para tocá-lo.

Ao mesmo instante a estante estremeceu, movendo-se lentamente para a frente e depois para a direita, dando lugar a uma passagem realmente curta, que dava para o jardim mais legal que já tinha posto seus olhos. As flores tinham formas estranhas e brilhavam em tons de roxo, esverdeado e prata. Estrelas despontavam no céu, miríades delas, sobre um azul profundo e circulando uma lua que já começava a minguar. Havia algumas árvores mais longe, e outras flores, aparentemente comuns, pois não brilhavam. Para além do vasto jardim, um prado se estendia indefinidamente.

Ryan perguntou-se, pela enésima vez, se teria coragem de correr até onde as vistas alcançavam e olhar para trás, para o chalé e suas flores, descansados bem no centro de lugar nenhum. Porque definitivamente, aquele mundo não podia ser real.

Aqueles que não tinham lugar para onde ir haviam criado um mundinho só deles, onde ninguém poderia incomodá-los ou criticá-los. Aquilo era mais um “lar” do que uma sede, para início de conversa. Com um sorrisinho aparentemente contente, o shifter deu um passo para trás e retornou para dentro, colocando o livro no lugar e fazendo a passagem fechar em sua frente. Haviam coisas mais importantes no momento para se preocupar.

Foi exatamente nesse momento, porém, que sentiu o primeiro tremor. Automaticamente, já podia ouvir a voz de Anne xingar lá de cima: — O que foi que você fez, maldição?

— Nada, eu juro… — okay, ele havia aberto a passagem secreta, mas isso não deveria causar aquela consequência, não é?

Suas mãos subiram automaticamente para agarrar alguns livros que haviam deslocado-se dos seus lugares, mas o barulho de coisas quebrando vindo de cima já significava que aquele cuidado era quase patético. Um segundo terremoto trouxe uma Anne irritada consigo, já de roupa trocada e ajustando suas pesadas manoplas nas mãos. Ela havia se enfiado em um corpete de couro e um short marrom, jogado um manto por cima de tudo e trazia emboladas de qualquer jeito pelo braço faixas de tecido esbranquiçadas. Lançou-lhe um olhar furioso, que pedia explicações, mas que desapareceu quando algo fez a porta de entrada se estilhaçar.

— Oh, merda…

— Você não disse que era seguro?

— Era pra ser! — ela fez com que as manoplas se ajustassem, abrindo e fechando as mãos algumas vezes, e encarou a figura que havia bombardeado o portal.

— Já faz um tempo que não usava isso, porém é sempre bom ter certeza que certos poderes ainda funcionam. Já faz um tempo que não preciso usar isso, porém é sempre bom ter certeza se certos poderes ainda funcionam. — Meredith de Saint Ignis – pois era mesmo ela – jogou os cabelos para trás com um movimento teatral e sorriu malignamente. — Ora, ora, ora… o que temos aqui…

Ela estreitou seus olhos, tão aguçados quanto uma ave de rapina, para os dois relicários, um sorriso maldoso crescendo em seus lábios. Um pouco mais atrás, havia quatro guardas no total, provavelmente advindos de sua coleção de empregados, já que todos tinham, pelo menos, alguma parte de seu corpo faltando. Anne percebeu que um não tinha alguns dedos da mão, enquanto outro usava um amontoado de faixas para tampar o local onde deveria estar seu olho esquerdo. O terceiro era repleto das mais terríveis cicatrizes, e podia jurar que um dos braços do último parecia bastante artificial. — Lady Saint Ignis…

Como raios ela conseguiu destruir a barreira?

— Fu… se acha que sua boa educação vai me fazer ter misericórdia, és muito tolinha. — inclinou ligeiramente a cabeça, juntando as palmas das mãos em frente ao corpo. — Estava me perguntando quando aquela criatura infernal mandaria alguém para buscá-la. Uma pena que o Duque de Leriam seja um bastardo tão imbecil. Se tivessem enviado-a para a minha casa como eu sugeri, claramente não teríamos passado por todo esse tumulto.

— Eu quero realmente saber o que está acontecendo para até mesmo ela estar envolvida! — Anne protestou uma última vez para o rapaz ao seu lado, que parecia extremamente nervoso com a situação. Ou talvez com a bela construção começando a se despedaçar. A área ao redor da entrada estava toda corrompida, como se alguma coisa rastejante e caótica tivesse passado por ali, tirando todas as moléculas do lugar.

— Ahn… que conveniente, estar adormecida por tanto tempo, você perdeu a melhor parte dos acontecimentos. — Meredith abriu ainda mais o sorriso, bizarramente psicopata. — Mas sabe, criança… teria sido melhor para ti se continuasse a dormir. — ela estendeu a mão para um dos capangas, aquele com o braço artificial, que lhe entregou o que parecia ser um papiro. Depois de um breve período de tempo desenrolando-o, a mulher revelou a ambos os cartazes de “procurados vivos ou mortos” da Justice Blade. — Você está sozinha. Seus protetores não estão mais aqui para salvá-la.

Ah… era verdade. Ela entrara na Justice Blade apenas por um golpe de sorte do destino, porque o grupo a encontrou primeiro. Um dia, Anne que fora a presa. Uma criança desesperada, lutando para tentar reencontrar o irmão, procurada por roubar uma Arma Divina, as mesmas manoplas pelas quais ficara conhecida mais tarde.

Se fosse outra gangue qualquer, teria sido jogada na pior cela de prisão possível, ou poderia mesmo morrer, já que caçadores não ligavam muito para o estado que suas presas eram entregues, tendo “vivo ou morto” estampado em seu cartaz ou não.

Não fosse por Nyx e sua companhia, suas chances de estar junto a Ched novamente seriam…

Sacudiu vigorosamente a cabeça, entrando em posição de ataque. — E se você acha que vou me entregar de bandeja assim, está mais velha do que parece.

— Eu jurava que iria se entregar sem lutar. — um olhar furioso bombardeou-a. Meredith não parecia gostar da ideia de envelhecer, no fim das contas. — Melhor assim. Não vão poder me julgar pelo que fazer com ambos depois daqui.

— Considerando que você consiga nos pegar, pra começo de conversa. — Anne provocou, fazendo leves movimentos com a ponta dos dedos indicadores. Seguindo seu caminho, lâminas de vento começaram a cortar ao redor dela e do parceiro, ameaçando sangrar o primeiro que tentasse alcançá-los. — A propósito, você vai pagar por essa zona que fez aqui.

Isso apenas fez com que Meredith fizesse uma expressão de pouco-caso. — Peguem-nos. — ordenou aos seus homens, ao mesmo tempo que seus olhos escuros brilhavam com uma luminescência um tanto quanto estranha. — Ahn, está referindo-se a esse pequeno buraco? Não se preocupe tanto com isso, tola, o que farei ao resto dessa pocilga e convosco será muito pior.

Anne viu algo que lembrava muito um buraco negro surgir sobre a cabeça de Meredith e imediatamente agarrou Ryan pelo braço e jogou-se para a direita, o vento cortando violentamente os capangas dela que já haviam chegado até os dois. Na verdade, eles eram o de menos naquela história toda, porque a trajetória da coisa que a lady invocou, fosse o que fosse, estava completamente deformada. Incluindo, é claro, um dos guardas, que havia ficado na linha de tiro. Preferiu não olhar exatamente para ele, pois sua aparência estava deplorável, e puxou Ryan para trás, forçando-o a ficar de pé.

Infelizmente, estavam presos lá dentro. Meredith bloqueava a saída para a Hathea, e a casa não era grande o suficiente para aguentar um confronto. Eles poderiam recuar para o prado apenas para ganhar tempo, mas nada garantia que conseguiriam chegar lá intactos. Com isso em mente, a mais jovem voltou a arrastá-lo, desviando dos dois capangas que haviam conseguido se reerguer e puxando rapidamente o livro-alavanca. Um segundo ataque de Meredith fez com que metade da estante desmorona-se, o que quase trancou-os ali dentro, mas a brecha que abriu-se nesse meio tempo foi o suficiente para que ela e Ryan escapassem. — Apenas corra, corra como se sua vida depende-se disso!

— E ela não depende!? — o protesto irônico dele perdeu-se em meio a fuga. Ele já estava realmente cansado de ficar correndo de um lado para o outro, e acreditava que invocar seu lobo interior naquele momento não ajudaria muita coisa… ao menos a sensação de petrificação e de peso haviam passado, desde o momento em que a elfa abrira os olhos. — Além disso… que desgraça de poder é esse, essa mulher é um demônio!

— Não faço a menor ideia, mas correm boatos que… — Anne silenciou-se, soltou Ryan e girou nos calcanhares para dar um soco na cabeça de um dos guardas que havia chegado mais perto. Ele desviou com agilidade (considerando que só tinha um olho), agarrando seu braço, e então ela girou o corpo para o lado contrário, dessa vez acertando um chute em seu abdome, jogando-o para trás. — … filha de…

É lógico que Ryan não estava entendendo patavinas do que ela estava falando, afinal já tinha se atracado com o homem do braço defeituoso, tendo como companheiro o cara das cicatrizes. Seu machado voou na direção do primeiro, cravando-se no membro artificial e fazendo um som peculiar. O homem da cicatriz tentou agarrá-lo por trás, mas ele deu uma cabeçada em seu nariz e um chute – que mais lembrava um coice – para afugentá-lo. — Ahn, deixa isso pra lá, eu preciso de uma ajudinha aqui…

— Só você? — Anne tentou outro soco, que acertou de raspão, ainda que o suficiente para que a habilidade de sua arma ativasse. Unindo a força do oponente com a sua própria, conseguiu mudar a trajetória do golpe que tinha “errado” de maneira que seu braço ainda acertasse o rosto do agressor. Jogou o corpo para o lado, desviando de um novo ataque e contornando mais, ficando atrás dele e colocando as mãos em sua cabeça, finalizando-o com um movimento rápido, seguido de um “crack” desagradável. — Sinto muito por isso.

Em seguida já disparava novamente, estralando os dedos e golpeando sem dó a coluna do homem com o braço artificial, praticamente ao mesmo tempo que Ryan conseguira uma abertura para afundar o machado na cabeça do outro oponente.

Okay… ao menos os serviçais foram vencidos… mas ainda havia Meredith, e ela sem sombra de dúvida era a pior de todos ali. Já era possível ouvi-la resmungar como todos eram incompetentes e que, para que uma coisa fosse bem-feita, era preciso fazê-la por conta própria. Agora haviam três esferas sobre sua cabeça, e mesmo que isso parecesse deixá-la extremamente cansada, ainda era preocupante o suficiente para fazer com que os dois entrassem em guarda novamente.

Anne respirou profundamente, e avançou, desviando por pouco do primeiro golpe e por menos ainda do segundo. Só precisava de alguns centímetros, o suficiente para roçar na pele dela e pegar aquela habilidade para si. Mesmo que pudesse mantê-la apenas por um curto período de tempo, talvez…

Seu pensamento foi cortado na metade por uma movimentação extremamente rápida da parte da lady, que escapou dos seus dedos no último instante, abrindo um sorriso de desdém. — Que lastimável… não lhe cederei meu arrebatamento, e essa tentativa lhe custará sua existência.

Quando o último golpe estava prestes a colidir com ela, aconteceram duas coisas: a primeira e mais óbvia, foi Ryan agarrando-a pelo manto e puxando-a para trás com violência, ao mesmo passo que uma sombra envolveu Meredith, eclipsando-a por completo. A coisa que a prendia manteve-se no ar, flutuante, como um corpo celeste. Depois de algum tempo, era possível ouvir algo movendo-se lá dentro, nanando em gosma escura. E, logo após, os gritos histéricos de uma Meredith de Saint Ignis muito irada. — Loke! Eu sei que isso é obra sua, liberte-me agora, seu traidor miserável!

Ofegantes, tanto Anne quanto Ryan corrigiram a direção de seu olhar para o que fora a porta dos fundos do chalé, ou a passagem secreta. Havia alguém ali, aparentemente um homem, de casaco longo e girando calmamente uma bengala entre os dedos da mão direita. A esquerda estava pousada na borda de uma cartola, fazendo-o parecer um dos aristocratas que o shifter havia notado enquanto andava pelas ruas de Hathea, na esperança de encontrar a mansão onde Anne estava presa.

Ele parou de girar o acessório, pousando sua ponta no chão e piscando tranquilamente para a esfera, onde a mulher ainda protestava. — Está um tanto quanto equivocada, milady Meredith. Aconselho que esfrie sua cabeça ai dentro por um tempo. — Seus olhos passaram aos dois jovens jogados de qualquer jeito no prado e se estreitaram. — Acho que chegou a hora de partirem, crianças. Duvido que conseguirei mantê-la presa por tanto tempo.

Nenhum deles parecia muito convencido. Pareciam estar em dúvida se agradeciam ao estranho ou se achavam sua atitude suspeita… como sabia que estavam lá? Estaria seguindo-os desde o princípio? E, afinal de contas, isso não seria apenas mais um jeito de pular da frigideira para o fogo? Ele podia muito bem ser o inimigo. E algo em seu sorriso ligeiramente cafajeste, como de uma raposa – a única parte realmente perceptível por baixo da aba da cartola – o homem parecia extremamente familiar. O nome que Meredith gritava era “Loke”, não era?

Cheio de dúvidas, Ryan tomou a dianteira e voltou a segurar a mão de Anne, puxando-a um pouco mais para trás. — Vamos sair daqui, não temos tempo pra ficar perdendo…

— Você tem certeza disso?

— Sim. Daqui a pouco outras pessoas podem chegar aqui. Com toda a fama que tem, os irmãos Montrevor não vão conseguir parar todos aqueles caras.

Ela apenas suspirou profundamente, num ar aborrecido, e voltou a observar o estranho. Tinha certeza que já havia visto aquele sorriso antes… lembrava-lhe muito com o da pessoa que havia petrificado-a, pra começo de conversa. De maneira que não lhe deu as costas, mesmo quando o teletransporte havia sido invocado, e ela passou a se desmaterializar lentamente.

A última coisa que viu dele foi seu sorriso que desvanecia, e uma palavra murmurada apenas na intenção de que ela conseguisse decifrar.

“Perdoe-me”

Se tentara dizer mais que isso, era impossível saber… afinal, agora estava em um lugar completamente diferente, encarando um mokolé irado e um monte de gente que nunca vira na vida. Tudo bem… era hora de surrar algumas pessoas.

Era isso o que sabia fazer de melhor, no fim das contas.

 


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Notas finais do capítulo

Yo o/
Sobre a imagem: foi impossível achar uma imagem estilo Legend que calhasse com o Ryan, os personagens de cabelos ruivos sempre eram velhos demais pra ele. Esse é um dos mais jovens que encontrei (acho que é do Magic, mas tá de boa).Também não é ruivo, mas enfim, desde que comecei a postar as imagens eu deixei avisado que não era cem por cento fiel. E esse amiguinho tem cara de Ryan, não tem? -q
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Quero saber quais são suas teorias para o homem misterioso no final. Sobre Cecil e Morpheu, não falarei mais nada sobre esses dois. Deixo para suas mentes ocupadas trabalharem em suas teorias mirabolantes por conta própria.
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Estou na duvida sobre que parte pegar no próximo, o grupo que tá lutando contra os SP ou os que estão contra Samira. Provavelmente vai ser um cap duplo, e isso significa que vai ser ligeiramente longuinho também rsrs.
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Até lá e kisses para vocês ♥