Crônicas do Pesadelo {Interativa} escrita por Dama dos Mundos, Kaline Bogard


Capítulo 50
Quebre as correntes. II


Notas iniciais do capítulo

Éeeeee, eu acho que não demorei tanto assim no fim das contas - não me lembro qual foi o ultimo dia que atualizei e não quero saber, então apenas aceitem que postei super rápido.
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Para aqueles que não ficaram sabendo, eu decidi realmente escrever o spin off dos deuses, que será postado no seguinte link -> https://fanfiction.com.br/historia/662577/CompendiodoDestinoAlamentacaodosdeuses/
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Por enquanto, é só isso. Boa leitura ♥



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Ele não parecia muito melhor do que antes… estava enterrado até o peito, e já não sabia o que fazer para retirar-se dali. Imaginar que “aquilo não era real”, uma coisa que funcionava muito bem quando lutava-se contra si mesmo, não adiantava de nada naquele lugar. Porque Samira controlava a realidade, o espaço e a matéria, possivelmente até mesmo algo relativo como o tempo… não, aquilo realmente estava acontecendo, o que era terrível para ele, afinal Liam era um mestre em jogos com a mente, e seu poder só estava restrito àquela área.

Não possuía força sobre-humana ou resistência. A única coisa que podia contar, além de seu controle mental, era sua agilidade e inteligência. E por mais que pensasse, não conseguia formular um plano útil. Não havia mais nada ao seu redor, nada que pudesse usar. Salvara as mãos de ficarem presas naquela areia movediça ou algo que o valesse, mas apenas isso.

Era claro, no começo certo desespero tomou conta e fez com que se debatesse, o que acelerou o processo e fez com que afundasse ainda mais. Agora, porém, ele estava estático, fazendo a menor quantidade de movimento possível.

Pense, Liam…

Foi preciso muito esforço para que ele retornar-se ao seu estado normal de espírito. Se a intenção de Samira era enlouquecer todos os visitantes que ousavam pisar em seu território, sem dúvida ela fazia tal coisa perfeitamente bem.

Não evitou amaldiçoá-la pela milésima vez desde que havia caído naquela armadilha. Com movimentos cuidadosos ao extremo, voltou a tatear. Não que já não houvesse tentado tal coisa antes, mas por não ter nada melhor para fazer, levando em consideração os recursos existentes – que se resumiam a absolutamente nenhum.

Mas aqueles meros movimentos acabaram cobrando seu preço, e ele afundou ainda mais, fazendo com que deixasse escapar mais uma imprecaução.

— Morte e danação!

Ela está forçando a sucção.

Óbvio que estava… que inocência a dele, acreditando que ficar parado seria uma bela solução. Aquela guardiã ia afundá-lo de um jeito ou de outro.

Liam engoliu em seco, a lama chegando agora até o queixo. Agora, o processo havia acelerado novamente, independente dele estar mexendo-se ou não. Ele não queria ser enterrado ali dentro, sufocar até a morte não lhe parecia um fim adequado. Um terror mudo acossou-o de repente, e forçou-se a aguentar firme.

— Ótimo… se é isso que você quer, é isso que você terá.

Alguns vão dizer que ele desistiu, mas afirmo, aquilo que o moveu naquela hora foi coragem. Uma coragem deturpada talvez, mesmo assim, coragem. Afinal, quem se entrega para ser dragado até as profundezas da terra de boa vontade? Ainda mais sem saber se há alguma coisa lá em baixo, em vez de puro sofrimento e falta de oxigênio, um dos pilares fundamentais da vida?

Foi nesse momento que Liam deixou-se ser levado… afundou e afundou, até que a matéria tampasse seus ouvidos, boca e olhos, e ficasse cego, surdo e mudo.

Mas isso não durou muita coisa, no fim… e daquele jeito meio corajoso, meio estúpido de enfrentar a situação, acabou surgindo algo bom. Porque havia de fato algo abaixo, além da morte esperada.

Ele sentiu o corpo cruzar o ar por algum tempo e abriu os olhos para visualizar seja lá o que fosse que o esperava. Tudo escuro… uma caverna? Quando foi mesmo que ele começou a esperar alguma lógica daquele lugar? A queda livre continuou até o momento que sentiu uma corrente de ar vinda de baixo, o que estabilizou-o e diminuiu gradativamente a velocidade que caia.

Ainda não era capaz de ver coisa alguma, mas ao menos aquele vento o impediria de estatelar-se completamente no chão. O que foi que Loke dissera-lhe certa vez mesmo? Algo sobre cair em desgraça não ser nada elegante.

Bom, se aquilo não era cair em desgraça, ele não saberia dizer o que mais seria…

E então uma luz ofuscante e desagradável invadiu sua visão, fazendo com que seus olhos fechassem instintivamente. As lufadas de ar que subiam cessaram completamente, e ele sentiu o impacto contra o chão… aliás, contra a areia. Os minúsculos grãos fizeram com que escorregasse do monte – ou duna – que se encontrava, e Liam estreitou os olhos, na esperança de ver algo. De fato, estava sobre um acumulado de areia extremamente branca. A luz que o cegara vinha do salão amplo a sua frente, sem nada de especial, a não ser que era completamente aberto, não tendo teto. O sol incidia violentamente sobre ele, esquentando o ambiente. Deveria ser circular, mas não tinha como ter certeza, afinal não enxergava praticamente nada a distância sem seus óculos – e já havia perdido-os em algum lugar entre o afundar na lama e a queda vertiginosa que sofrera – chegando a essa dedução meramente ao observar o ângulo das colunas que dirigiam-se ao céu, bem próximas a ele.

Bem no centro do lugar, uma estrutura estranha erguia-se. Não soube definir de quê era feita, poderia ser de calcário ou alguma rocha semelhante. Lembrava muito chaminés esburacadas, e o vento constantemente lançava=se contra as mesmas, produzindo um som melódico, como o de um instrumento de sopro – muito similar, principalmente, a uma melodia de flauta.

Busquem a pior coisa que temestes

O som os guiará até seu tesouro”.

Mentalmente, Liam declamou o último enigma dito por Pesadelo em sua mente, referente à Chave do Ar… estava perto, podia sentir. A relíquia deveria estar em algum lugar daquela estrutura, possivelmente naquele mesmo salão. E Samira era uma estúpida em não ter ficado ali para guardá-la.

Mesmo que tenha pensado isso, arrependeu-se imediatamente. Suas mãos foram para frente e pararam, tocando o vidro que o separava do resto do salão. Pelo canto do olho, ainda era capaz de captar a areia que caía lentamente atrás de si… e o fato daquela sua pequena prisão parecer muito com uma ampulheta não estava lhe agradando nada.

O som de passos distraiu-o por completo de sua preocupação. Uma figura indistinta vinha em sua direção, e ele já preparava-se para um encontro imprevisível. Poderia ser Samira. Poderia ser um do grupo dos Relicários. Poderia ser um de seus parceiros. Nunca desejou tanto a presença de Kenai em sua vida, como naquele exato momento. Temia ficar soterrado outra vez, a areia de tom excessivamente claro já alcançara seus joelhos.

O par de olhos verdes que vislumbrou fez com que um alívio sem discrição inundasse seu peito. Primeiro porque era um aliado, segundo porque não era Kenai. Não precisaria dever mais nada para aquele mokolé miserável. Ainda assim, o sorrisinho debochado de Cedric o incomodou tremendamente. Quase pode ser capaz de captar seus pensamentos só pela expressão.

É, mestre, você me parece bem mal… devo usar a palavra inútil?

Devo fritar seus miolos com um olhar quando voltarmos?

Sabia que era inútil. Ele não sabia ler pensamentos. Mesmo assim, Liam não externou a ameaça, e pressionou ainda mais as mãos contra o vidro.

— Como conseguiu escapar da influência dela?

O rapaz deu de ombros, com simplicidade. — Eu sei lá, talvez ela tenha se encantado com o meu charme…

— Eu duvido. — Liam mais resmungou do que respondeu, fazendo uma careta. — Preciso que me tire daqui… a chave está próxima.

— Eu poderia simplesmente procurá-la e deixá-lo ai para morrer. — ele colocou ambas as mãos na cintura, erguendo uma sobrancelha. — Assim eu ficaria livre para fazer o que achasse melhor… não é mesmo?

Houve um momento de silêncio, enquanto Liam mantinha o contato visual com o outro. E Cedric, de uma hora para a outra, viu-se apontando uma das lâminas que trazia consigo em direção a sua própria garganta, um misto de surpresa e horror. Como aquele cara conseguia ter um poder tão influenciável mesmo naquela situação?

— Tire-me daqui agora, ou garanto que não morrerei sozinho.

Momentaneamente intimidado, Cedric engoliu em seco e forçou as mãos a abaixarem, já de posse completa dos próprios movimentos. Sua cabeça começava a doer terrivelmente. Era sempre assim quando Liam forçava seu controle mental, e mesmo que não o fizesse com frequência, o rapaz sabia que não era capaz de subjugá-lo enquanto estivesse presente.

Era um fato que Cedric não conseguiria fazer frente com Liam, ao contrário do pai. O homem nunca soube exatamente o porquê. Ou Kenai tinha uma mente muito forte, ou era estúpido o suficiente para que o controle fosse, na maioria das vezes, anulado. Fosse o que fosse, ele nunca poderia ter feito aquilo se fosse Kenai que estivesse ali, do outro lado do vidro.

Se o mokolé-pai não quisesse ajudá-lo, sem dúvida nenhuma estaria condenado.

Liam, incapaz de afastar-se, precisou subir os braços em direção ao rosto para evitar que este fosse ferido. Cedric havia mirado estralado os dedos, muito a contragosto, e começara a lançar sobre a barreira seus melhores socos. No terceiro o vidro começou a rachar. No quinto, os cacos choveram para todos os lados, principalmente em direção ao corpo de Liam.

Ele sentiu os cacos acertarem os braços e causarem cortes nos mesmos, mas preferiu não comentar. Então abaixou os membros e observou o estrago feito pelo companheiro. Havia um rombo tão grande na estrutura em que estava preso que daria para passar por ele com facilidade. A areia escorreu para fora, abaixando o nível da parte interior e finalmente libertando-o para que pudesse erguer as pernas e caminhar.

Liam balançou a cabeça, livrando-se assim dos cacos de vidro que caíram sobre o cabelo, e andou alguns passos, voltando-se para observar sua antiga prisão. Era de fato uma ampulheta, muito grande, mas só a parte de baixo era visível. A superior estava escondida em pleno ar, como se houvesse uma porta dimensional bem ali. Enjoado de fitar essa visão, mais uma vez girou nos calcanhares, dirigindo-se às chaminés de calcário no centro do salão.

— Não tem de que… — praguejou Cedric, irritado por não ter ganhado nem um agradecimento. Mas Liam parecia alheio demais a ele para escutar.

oOo

A coisa caiu pesadamente sobre Kenai, e até mesmo ele que não se achava fresco como Liam – em sua própria concepção, é claro – precisou admitir que aquilo era demais. Afinal, o monstro em questão era uma gigantesca, grotesca e nojenta aranha. Suas oito pernas eram cobertas de pelos negros que espetavam, terminando em garras. O abdome inchado balançava de maneira nauseante enquanto ela tentava enlaçá-lo com sua teia. As mandíbulas, de onde provinha o veneno, eram também enormes, e o mokolé teve de se esforçar para desviar delas. Oito olhos focaram-se nele quando conseguiu saltar para trás, saindo do julgo da criatura por um tempo. E então, a aranha negra voltou a correr em sua direção.

Deixando um rastro de muco ou qualquer coisa igualmente gosmenta atrás de si.

— Que Surm a carregue… — ele deixou escapar, mergulhando para um dos lados para evitar um segundo bote. Uma patada fez com que desequilibrasse, e as presas vieram novamente em sua direção.

Kenai ergueu as mãos, fechando-as nas duas extremidades, mantendo a cabeça da coisa longe dele, assim como seu veneno. — Ah, você acha que vai ser fácil assim, é? Pois deixa eu dizer uma coisinha. Eu. Não. Sou. Uma. Maldita. Mosca! — e começou uma sequência de socos, acertando-a em cada pausa que separava uma palavra da outra.

A força dos golpes fez o monstro afastar-se com um salto para trás, acabando por embolar as pernas uma na outra e escorregando no próprio musgo. O mokolé bateu uma mão na outra, visivelmente satisfeito, imaginando se as armadilhas teriam um fim com aquilo.

A resposta é: não.

Guinchos e sons sibilantes irromperam de cima, na mesma direção que a primeira aranha havia vindo. E de lá começaram a descer mais. Muito mais, aparentemente, algumas até mesmo maiores. Mas haviam menores também, e estas levavam vantagem sobre as demais. Afinal conseguiam chegar perigosamente perto, e ele não sabia até que ponto eram venenosas, ou se suas presas afiadas conseguiam furar sua pele. Mesmo semi-transformado, aquilo era uma dúvida que martelava. Ele rasgou mais algumas aranhas com as próprias garras, fechou a mandíbula em outras que ficavam tão próximas a este ponto e girou nos calcanhares, preparando-se para o que Liam chamaria de “retirada estratégica”.

Ele desenredou-se das aranhas que ainda cismavam em tentar pegá-lo pelas costas e apressou-se, começando a correr… mesmo assim, o caminho era difícil. Haviam aquelas teias super-resistentes por toda parte, e algumas aranhas conseguiam correr mais que ele. De maneira que a cada período menor de tempo, ele era derrubado, ou apanhado, e precisava rasgar mais alguns daqueles monstros para se libertar.

Quem fora mesmo que alegara que uma “retirada estratégica” era sempre a melhor solução? Ah, ele ia realmente trucidar com aquele quatro olhos miserável. Notou o muco que espalhava-se pelo chão a sua frente, tarde demais. Seus pés escorregaram nele e patinou, indo contra uma parede de teias. — Filhas de uma…

E então ele sentiu… algo perfurar suas costas, na altura do pulmão.

É… elas de fato conseguiam perfurá-lo, afinal.

Ele desvincilhou-se da aranha com um safanão, conseguindo erguer as garras para cortar os fios exagerados em que ficara preso. Seus olhos buscaram uma saída, qualquer que fosse… uma certa tontura fez com que cambaleasse, uma dor infernal espalhando-se a partir do local atingido.

Venenosa… sim, sem dúvida nenhuma.

Enquanto praguejava, como era de praxe, mesmo que estivesse prestes a morrer, captou algo de diferente além da barreira que o prendera por último. Aquilo era uma fenda? Um buraco? Uma toca de aranha? Foda-se aquilo tudo, se fosse um lugar que podia ao menos se resguardar já era o bastante. Ele lançou mais alguns golpes para trás, mantendo as aranhas mais próximas afastadas, e então deixou seu corpo cair naquilo que parecia ser o seu túmulo.

Mas que, afinal, não era mais que uma saída…

oOo

Lyla tinha motivos de sobra para começar a berrar. Mas o pânico que a envolveu tirou-lhe completamente a fala, ou qualquer habilidade de raciocínio. No começo, pelo menos. Quando a dúvida tornou-se uma certeza incontestável, ela de fato gritou, e tentou enfiar as unhas no piso, visando parar seu avanço. Basicamente inútil. As correntes não paravam nem com isso, e ela sentiu nitidamente suas unhas quebrarem, Precisando retirá-las antes que fossem arrancadas. Forçou-se a ficar de bruços, pressionando os dedos e os joelhos, assim como os pés, com força no chão. Esse ainda era afetado por sua força.

O máximo que conseguiu, contudo, foi cavar trilhas no piso de alabastro pelo qual era puxada, rasgos profundos e desesperados. Também já tinha essas partes do corpo em carne viva, uma dor atroz percorrendo-as, mas o que mais poderia fazer? Não aceitaria aquilo, não mesmo.

Ainda assim, se viu próxima as bordas do caixão que a esperava, e abriu os braços para agarrá-las, conseguindo deter as correntes por alguns segundos. Era algo doloroso, pois os lugares em que estas se enroscavam também reclamavam de dor, assim como suas mãos já feridas. Lógico, Lyla aguentava muito bem a dor, mas ela não era uma deusa ou algo que o valesse… no fim, o sangue que escorria de suas mãos fez com que escorregassem das bordas, e ela caiu na escuridão. A tampa do sarcófago fechou-se com um estrondo sozinha, e ela notou-se completamente presa.

O cheiro que havia notado antes, de coisas velhas e esquecidas, fez com que sua agonia aumentasse consideravelmente. Ele sufocava-a, e nesse estado era difícil reparar que as correntes haviam desamarrado-se dela, que estava livre, em parte. Apenas lacrada ali dentro.

Foi com extremo esforço que seu cérebro voltou a funcionar direito e conseguiu perceber isso. Não que fizesse muita diferença. Chutar, remexer-se e socar a tampa que a selava não havia adiantado de coisíssima nenhuma.

— Maldição… maldição, maldição.

As palavras rasgavam o ar saturado e morto que havia ali dentro. Ainda conseguia respirar, o que era um pequeno milagre… talvez houvesse alguma abertura que possibilitava a renovação do oxigênio ou sabe-se lá o que…

Lyla voltou a jogar o peso do corpo contra a tampa. O ambiente apertado a impossibilitava de fazer dos seus movimentos mais amplos, cortando sua força mortífera pela metade, praticamente. Tentou virar o corpo na direção do outro lado, ou o que seria o fundo. Mais uma vez, seus esforços eram inúteis.

Depois de um tempo que pareceu extremamente longo, em que gastara suas energias tentando despedaçar o caixão, pareceu-lhe que alguém estava presente. Começou a ouvir as batidas rítmicas do lado de fora, como um código. Aparentemente, a voz dela não conseguia atravessar aquele material, nem a do visitante, mas os golpes chegavam quase surdos a seus ouvidos.

Lyla voltou a bater, na esperança de manter a atenção do desconhecido. Ele poderia tirá-la dali. Ficaria extremamente feliz, nem que fosse Loke. O idiota mesquinho e traiçoeiro mereceria até mesmo um beijo se a tirasse dali – e não sabia exatamente porque achava que era ele, para começo de conversa.

Os barulhos do lado de fora aumentaram consideravelmente. Ela viu o fundo do sarcófago começar a ser desprendido, separado do resto do receptáculo, e então viu o que o puxava… uma borboleta de grande porte. Ela voou, largando a chapa com estrondo no chão, e então sumiu de vista, seguindo por um túnel que saía do teto. A figura familiar que a salvara acenava com simplicidade para a criatura, parecendo estar alheia a sua presença.

Lyla sorriu de canto, um sorriso tipicamente maligno. Mesmo com todos os machucados, aquela mulher não mudava nunca. Ela andou com cautela na direção da pessoa, e quando esta finalmente virou-se para observá-la, julgando tratar-se de algum amigo, era tarde demais para fazer qualquer coisa que fosse. A mulher prendeu-a com as mãos machucadas pelos braços, puxando-a em sua direção e colando seus lábios contra os dela, num beijo absolutamente violento. Logo, porém, dava um salto para trás, escapando por pouco da adaga que havia sido puxada e quase fora cravada nela.

— Ha… dessa vez não, minha suculenta shifter. Não tenho a menor intenção de deixá-la me matar outra vez, e aliás, nem sei se eu poderia voltar depois disso tudo. — ela abriu ambas as mãos, com a clássica expressão de “fazer o quê?”, e voltou a sorrir, passando a língua com ansiedade pelos dentes. — Ah! Muito obrigada por me libertar, espero que minha gratidão tenha sido bem-vinda.

Trixia passava a mão vazia pelos lábios, absolutamente irritada, apontando a adaga para ela ao mesmo tempo. — Por todos os deuses! Que raios está fazendo aqui, afinal? E eu não queria compensação alguma, pare de ficar me agarrando!

— Oh, mas você parece gostar…

— Não gosto de nada, e isso não é da sua conta! — a shifter bateu o pé, frustrada. Claro, ela tinha uma queda por mulheres de corpo bem-feito como aquele, mas Lyla – era esse mesmo o nome dela? - era uma inimiga. Uma inimiga declarada. Não podia confiar.

— Uh… você parece estar muito pensativa. Já que temos uma inimiga em comum, por que não nos unimos? — aquela frase soara com um duplo sentido evidente, que Trixia preferiu ignorar.

— Não. Se eu soubesse que era você que estava lá dentro, teria deixado-a lá.

— Mas você parece ser tão boazinha. — a humana juntou as palmas das mãos, mordendo com simplicidade o lábio inferior. — Já que é assim, não posso fazer nada, então. Quando voltarmos a nos encontrar, lá fora ou aqui dentro, seremos novamente inimigas.

— Nós já somos inimigas. — Trixia balançou a cabeça, um tanto quanto corada, e baixou a guarda. Seu instinto dizia que a rival não a atacaria por enquanto, realmente, talvez estivesse mais preocupada em reunir-se ao seu grupo original. A própria Trixia estava preocupada com Lidrin e os outros. Muito preocupada, e talvez fosse mais por essa razão que negara a ajuda da mulher e decidira seguir por um caminho diferente. E também evitara de começar um duelo com a mesma naquele mesmo instante.

Era sempre melhor prevenir do que remediar.

Com um aceno Lyla afastou-se na direção contrária, e pôs-se a caminhar novamente. Se lhe perguntassem o porquê dela não ter batido de frente com aquela shifter, diria que era uma compensação. Deveria ser grata, por hora. O que aconteceria depois, quando a Chave estivesse em jogo realmente e os dois grupos estivessem cara a cara, seria outra história…

oOo

Liam ainda observava as chaminés quando uma fenda de proporções gigantescas, cuja qual a luz não atravessava, abriu-se exatamente por cima dele. Saltou para o lado, evitando de ser acertado pela coisa que fora jogada dela. Aquilo era um corpo… aliás, aquele era…

— Só pode ser piada.

— Ora, ora… parece que essa Guardiã está mesmo acabando com vocês…

O rapaz ignorou Cedric completamente, agachando-se ao lado do corpo de Kenai. Havia caído de costas para cima, e era notável a ferida que a aranha que o picara deixara. Liam precisou praticamente ficar com o nariz a um dedo do ferimento para chegar a conclusão do que o causara, mas isso bastou. — Francamente… o que eu faço contigo?

Balançou a cabeça de um lado para o outro e tateou as roupas, esperando que não houvesse perdido as coisas que trouxera nos bolsos quando ficara preso. Aparentemente, não. Espalhados por toda a sua vestimenta haviam pequenos vidrinhos, ou ampolas, e de um bolso mais escondido ele retirou uma agulha. Demorou pouco tempo para que montasse tudo, juntando substâncias com outras, até que finalmente estava com um composto pronto para ser injetado no corpo do mokolé. Só esperava que a agulha atravessasse sua pele.

— Retire suas defesas externas, lagartixa.

Não soube dizer se ele estava consciente ou não naquele instante, mas de fato não teve problema algum em espetá-lo, fazendo questão de acertar uma veia exatamente no local ferido – talvez por pura pirraça – logo massageando-o brevemente com a palma da mão.

Cedric observava a cena com visível desgosto. — Por que não deixa ele simplesmente morrer?

— Eu lhe disse, todos são necessários para o resultado final da missão. Afinal, eu escolhi-os a dedo. — Liam franziu o cenho, passando a mão pela testa, enxugando-a. Um leve estremecimento das pálpebras de Kenai fez com que ele revirasse os olhos.

— O que desgraça você injetou em mim, rato de livros?

— O antídoto, criatura mal agradecida. Fique contente por eu ser um rato de livros, ou então teria sufocado até morrer, ou algo que o valha.

— Tsc… vou ficar te devendo essa…

— Esqueça. Considere uma compensação por aquela situação no Templo da Água. Agora estamos quites. — Liam bateu algumas vezes nas costas dele, provavelmente aproveitando que o mokolé não estava em condições de revidar no momento, e ergueu-se. — De qualquer forma… estamos bem perto.

— Ora, estou ouvindo o “mimimi” entre vocês de longe. — a voz feminina chegou a seus ouvidos, e Lyla adentrou no salão, vinda de um corredor que parecia ser extenso pra caramba. — Por que não podem falar mais baixo? Ei, esse é a lagartixa? Você está realmente péssimo…

Kenai, que mantinha os olhos abertos e virara a cabeça na direção da voz também, fez uma careta de fúria mal contida. — Olha só quem fala, praga…

— Não vamos começar com isso outra vez. — Liam protestou, chamando a atenção de ambos. — Temos um trabalho a fazer, e vamos fazê-lo logo, antes que o grupo de Relicários apareça e nos cause problemas.

— Tarde demais. — Lyla deu de ombros. — Eles já estão aqui… acabei de encontrar com a garota pantera. — Seus olhos escuros captaram um movimento vindo do lado oposto do salão, quando uma segunda dupla chegou no mesmo. Um tigre branco, com o pelo coberto de sangue e detritos, marchava com suas patas possantes ao lado de uma pequena elfa.

Liam proferiu uma maldição em baixo tom. Aquela garota outra vez! Mas seu estado não parecia melhor do que qualquer um dos outros, com exceção de Cedric. Talvez conseguissem dar cabo deles afinal, mesmo com um Kenai abatido, uma Lyla estropiada e ele mesmo acabado. — Isso vai ser complicado. — murmurou para ninguém em especial, preparando-se para a batalha.

oOo

Ele ainda estava em choque, quando deixou a foice cair no chão. Sentia nitidamente as coisas desmoronarem abaixo dos seus pés, mas não conseguia mover um músculo sequer. Sua dor mental parecia física, neste ponto. Ele havia cortado-o…

Cortado seu lado ifrit.

Era como se seu próprio corpo tivesse sido partido ao meio, separado em dois.

E então ele começou a cair… e cair. E já não importava que fosse se destroçar completamente na queda. Contanto que a dor passasse…

Que aquela dor sufocante passasse.

Arrependimento, remorso. Nunca pensou sentir tais coisas por mandar seu outro lado embora, por perdê-lo para sempre. E no entanto, os sentimentos estavam ali.

Um fato… nunca se deve desfazer-se de um lado de si mesmo.

Nunca.

Sentiu o impacto num repente, fazendo com que mudasse a trajetória da queda, ficando mais perto das paredes quadriculadas de preto e branco, que passavam velozes por ele. Tão velozes que era difícil definir seus contornos e padrões.

Braços quentes envolviam-no.

Braços de quem?

— Lidrin… Lidrin, nós vamos morrer, faça alguma coisa!

Aquela voz… inconfundível.

Seus olhos reabriram e ele abaixou-os para observar uma Trixia afobada, abraçada a ele como se nunca, em hipótese alguma fosse soltá-lo. Ainda que estivesse assustada, ainda parecia bonita, com seus impecáveis cabelos negros e os olhos verdes vítreos. A pequena centelha de consolo que essa imagem lhe deu desapareceu, engolida por um mar de preocupação. Deuses, ela ia morrer se continuasse assim. Ambos iam.

Corrigiu a posição do corpo em pleno ar, já que ambos caiam de cabeça para baixo. No momento que ela reparou que estava desperto, soltou-o para que conseguissem nivelar novamente. Lidrin pegou-a nos braços, como uma princesa, como costumava segurá-la quando era apenas uma garotinha.

O vento diminuiu, assim como o atrito com o ar.

Perdeu-se a noção de tempo antes que ele tocasse com suavidade os pés no chão, logo deixando que ela ficasse de pé também. Não conseguiu encará-la, porém. Desviou os olhos, cravando-os num ponto mais a frente do chão. Estava francamente envergonhado, afinal colocara-a em perigo sem a menor necessidade. — Por que pulou?

— Porque era você. Idiota. — Trix fez um biquinho, encarando-o de baixo. — Se eu não tivesse feito isso, você teria se estatelado completamente contra esse chão e só os deuses sabem como ficaria depois disso!

— Sinto muito… — diferentemente do habitual quando ela forçava-o a se desculpar consigo, não resmungara, parecia muito sério. E infinitamente triste.

A garota uniu as sobrancelhas, movendo-se de maneira que conseguisse entrar no campo de visão dele. — O que aconteceu com você?

— Ha… o que será que foi…? — ele não parecia muito certo do que realmente havia acontecido. O sorriso forçado que tentara fazer se perdeu quase automaticamente, e ele deixou-se cair ajoelhado no chão. Trixia, por sua vez, agachou-se em frente a ele. — Trix… eu acho que… acho que fiz algo muito ruim…

— Shhh… — ela pareceu perceber antes mesmo que ele falasse. Talvez a ligação de ambos fosse tão forte a esse ponto. Talvez ela já o conhecesse bem o suficiente para saber que faltava alguma coisa.

Os braços finos dela voltaram a enlaçá-lo, num abraço apertado e carinhoso que era-lhe muito familiar. Independente do seu protesto baixo para que ficasse quieto, ele continuou a falar. E falar, e falar, e falar. E falou muito, por fim terminando com a conclusão óbvia a que qualquer um chegaria. — Eu acabei de matar uma parte de mim mesmo… eu…

— Vai dar tudo certo. Você vai ficar bem. Porque você é Lidrin Mombel. E porque estou do seu lado, e não vou a lugar nenhum.

E mesmo em meio a sua alma destroçada, ele conseguiu ao menos ficar mais tranquilo. Suas mãos subiram para abraçá-la com força, mantendo-a junto consigo por vários minutos, até que conseguisse reunir o resto de sanidade para voltar a ativa. Mesmo assim, foi com certa hesitação que soltou-a novamente. — Precisamos encontrar os outros. Todos estamos tempo demais aqui dentro.

— Deve haver alguma passagem. E isso é o de menos… aqueles caras estão por aqui. Os Seguidores do Pesadelo.

— Viu-os?

— Sim… — ela voltou a corar brevemente, o que ele não entendeu de imediato, e continuou. — Mas estou bem, não precisa se preocupar!

Os dois se endireitaram, ficando de pé e preparando-se para irem. Lidrin deprimido, Trixia pensativa… no fim daquele corredor encontrariam uma nova batalha, quem sabe mais brutal do que as outras. E no fim, cada um só conseguia pensar que estavam juntos, e estavam vivos, e deveriam agradecer por isso.

Mas… ainda não terminamos. Isso é apenas o começo.


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Notas finais do capítulo

Muahahahah, estou um tanto quanto sádica, então se preparem porque tem gente que vai comer o pão que o diabo amassou. Ainda mais do que já comeu. :v
Ame-chan, e o Frosty, e o Loke? Calma, gente. Ainda não é hora do Loke entrar em cena. Quanto ao Frosty, acabou de morrer (-q)
Brincadeirinha... ele não morreu... não ainda, mas respirem fundo e esperem, porque na próxima ele aparece.
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Sem imagens porque pra variar não consigo fazer o upload. Notebook velho somado a navegador bugado e mais internet lenta: a bomba de Hiroshima virtual.
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Bem, gente, acho que é só isso por enquanto, espero que tenham gostado.
Kisses kisses para vocês