Frosty viu-se, depois de toda aquela confusão, caindo em um salão imenso, com altas prateleiras repletas de livros e várias mesas de madeira. Ele só teve tempo de corrigir sua rota antes de cair perfeitamente de pé, destruindo uma mesa com seu peso, no entanto. Os olhos azuis fitaram acima na mesma hora em que a pequena Neco caia bem por cima dele.

É... eles tinham começado muito bem, afinal...

– Ai... Neco... tá machucando...

Ela notou que estava ajoelhada bem nas costas do elfo e mais do que rapidamente saltou para o lado, ajeitando suas vestes com as mãos.

– Onde estamos? - perguntou, dando a mão para que ele levanta-se. Pareciam estar em uma biblioteca, uma bem grande, aliás.

– Espero não estar enganado, mas acho que estamos ainda em Shion. Essa deve ser a Grande Biblioteca...

Antes que ele pudesse continuar um ser que lembrava uma pequena fadinha parou em frente ao seu rosto, praguejando em uma língua antiga e depois completando no idioma comum: - Silêncio na Biblioteca! Francamente, fale mais baixo...

– Ahn... perdoe-nos... - Neco se intrometeu, observando o diminuto ser. Parecia mais um amontoado de flores juntas do que uma mini-humana. Sua pele era verde, os olhos tinham um tom de rosa e as orelhas eram claramente pontudas. Seu diminuto tronco era coberto por trepadeiras, que terminavam na base da cintura por uma saia, cuja qual parecia uma flor de cor arroxeada virada ao contrário.

A pequena elfa registrou isso tudo antes de continuar. - Você pode nos dizer onde estamos?

A criatura inchou o peito e bufou, antes de responder, batendo as asas com ainda mais força. Essas eram transparentes, parecendo as de uma libelula. - Como podem perguntar algo assim? Vocês estão na Grande Biblioteca Real de Shion.

Apesar do nome nada interessante, aquela era uma das maiores bibliotecas de toda Meroé. Talvez só perdesse para o aposento que chamavam aos sussurros de Sala Dourada do Conhecimento, que ficaria em algum lugar do Palácio habitado pelo imperador, no Reino de Palas.

– Pelos Deuses... vocês dois pretendem arrumar isso, não é? - ela apontou, com a cara ainda mais enfezada, para a mesa partida ao meio.

Enquanto os dois se entreolhavam para pensar numa boa resposta, ouviram um rugido alto atrás de si. Um tigre branco realmente grande rosnava para eles, o que fez com que ambos entrassem em posição de defesa. O ar automaticamente pareceu esfriar bastante, de alguma forma o poder de Frosty estava mais ou menos sobre controle... a interferência que vinha sofrendo nos ultimos dias terminara com a chegada dos BeastHunters, no entanto ela parecia voltar um pouco agora. As palavras de Lidrin antes de teletransportá-los pareceram fazer sentido. Neco ficou mais atrás, no entanto um tremor de terra passou pelo local, fazendo a fadinha descabelar-se, passando os dedos pelos cabelos de cor tão roxa quanto a saia do seu “vestido”.

– Parem, parem, parem agora mesmo! Isso não é lugar para arranjar um briga. Ou se comportam ou vão todos para fora!

O tigre parou o avanço, ainda rosnando, contudo. Em um momento pareceu que ia pular em cima deles, mas pensou melhor e mudou seu rumo, se dirigindo para a fada... sentou sobre os quartos traseiros, parecendo entrar em contato com a mesma, antes que ela respondesse de maneira estranha, gesticulando em direção as portas duplas que haviam no fim do corredor. O animal, ou melhor, Sean, passou pelos inimigos com um olhar feroz, mas se dirigiu ao local apontado sem fazer qualquer movimento mais agressivo.

– Para onde ele vai?

– Trocar de forma, obviamente... ou vocês acham que vou deixar um cara nu andando por ai? - o ser colocou as mãos na cintura e pousou sobre a mesa destruída novamente. - E vocês dois... mãos a obra, ou isso vai ser descontado do meu salário...

oOo

E foi assim que Neco e Frosty descobriam suas habilidades como carpinteiros, obrigados a concertar o que haviam quebrado por uma fada de dez centímetros. Mas como ambos evitavam arranjar confusão, não viram outra forma além de fazer o que ela mandara... a coisa boa é que ela não parecia ter reconhecido-os como os integrantes da JusticeBlade, ou aquele lugar era completamente neutro. Por um motivo ou outro, eles não foram mais pertubados... com exceção da presença de Sean.

Ele ainda parecia claramente incomodado com ambos, embora tivesse procurado um livro qualquer para ler. Neco, em compensação, lançava olhares apáticos a cada vez que pegava-o espionando-os. - Qual é o problema com ele?

– Como eu vou saber, não sou um shifter... - Frosty apoiou o corpo na mesa recém-concertada e suspirou, dando tapinhas sobre a mesma. Ela desmontou como se fosse feita de capim, o que fez com que ele gemesse de frustração, e Neco lhe acertasse um soco no ombro.

– Agora vamos ter de concertar outra vez. - resmungou na sua voz baixa, logo vendo uma sombra assomar sobre ela. Observou de baixo, enquanto o alto Sean passava por ela e sem uma palavra sequer começava a colocar as peças de madeira em seu devido lugar. No fim, a intervenção dele mostrou-se mais eficiente do que a tentativa dos outros dois. O móvel estava bem firme, a uma primeira olhada.

A pequena elfa resmungou qualquer coisa e ocupou o lugar onde antes ele estava sentado, parando seus olhos no livro. Um exemplar do Compêndio dos Anciões. Nele se juntava praticamente toda a história de Meroé, desde sua criação. Textos sobre Deuses, sobre a perdida Ragadash, sobre o Pesadelo. Em silêncio, ela folheou o volume, até que algo chamou sua atenção. Com um sinal de mão, chamou Frosty.

Ele, que já se preparava para agradecer a Sean pela ajuda – embora este outro não estivesse muito disposto a lhe dar atenção – parou e foi ver o que a parceira queria. Quando passou seus olhos no texto, um começo de compreenção chegou ao seu cérebro e ele logo acertou a postura, olhando seriamente para Sean.

– Por que pegou este livro?

– Porque não tinha nada melhor para fazer. E eu me interesso por mitologia. - foi a resposta, dita em modo seco.

– Certo... então é melhor que você dê uma olhada nisso aqui... - o elfo bateu o dedo indicador na página em que estava lendo, e o shifter não teve outra auternativa a ir ver o que tinha de errado. Ou melhor, o que tinha de muito certo. Na tal página se encontrava um trecho sobre a queda de Ragadash e o surgimento do primeiro portal interdimensional. O portal para o vazio. O qual todos agora conheciam como “Cela do Pesadelo”. Havia uma sucinta descrição sobre como cinco magos doaram suas vidas para fechar o portal. A divisão das almas...

Um poder mais antigo do que qualquer outra coisa que existia sobre a terra, com exceção da força divina.

– Cara.. só pode estar brincando. - Sean argumentou, coçando a cabeça. - Isso é muita coincidência... não pode ser...

– Lidrin estava resmungando qualquer coisa sobre o equilibrio antes de nos teleportar, e por mais que tenha pouco tempo que está entre nós, sabemos muito bem que ele não teria errado de tal forma sem ter sofrido uma interferência externa.

– O que está querendo dizer?

– Que ele deveria estar pensando em separar nossas equipes, parar o embate entre Nyx e Sky. Não em mandar cada um de nós para um lugar diferente. Outra coisa... os golpes de Nyx. Ela estava se contendo... na verdade, parecia mais que a foice estava recuando enquanto ela tentava atacar. Eu a conheço desde que era uma criança, aquela atitude não é normal nela. - Frosty desceu seus olhos azuis para o livro e cutucou mais uma vez a página. - Não pode ser coincidência. Coincidências não existem nesse mundo.

– Mas isso não explica o porquê dos poderes de alguns de nós estarem completamente fora de controle... o meu, e o seu principalmente, Frosty... - Neco interrompeu o diálogo, finalmente entrando no mesmo.

– Na nossa equipe também está havendo alguma interferência. Eu, Trixia e Ryan estamos tendo problemas com isso.

– Talvez tenha uma ligação, eu não sei... mas se isso acontecer... se a JusticeBlade e os BeastHunters tem uma ligação forte assim, então o que está havendo?

Frosty mordeu o lábio inferior, pensativo. - Vamos pesquisar mais... poderemos procurar pelos outros amanhã. Não quero sair daqui antes de ter chegado a uma conclusão.

Sean ainda estava meio em choque com a informação, olhando ora para Neco, ora para Frosty. - Acho que podemos fazer uma tregua por enquanto.

Era uma decisão inteligente. Sem saber se eles estavam mesmos ligados ou não, nenhum dos três pensava em atacar o outro, ou poderia haver um efeito parecido com o que acontecera a Nyx e Sky. Levando isso em consideração, os líderes deveriam ser compatíveis. A falta de apetite de Sean havia sumido por completo, e os poderes de Neco estavam perfeitamente sobre controle. Ela tentara causar pequenos tremores de terra novamente, o que fazia as prateleiras chacoalharem, e tirava pragas da boca da fada-bibliotecária. Pela lógica, esses dois também deveriam estar diretamente ligados. O shifter não quis se delongar muito nesse assunto, e saiu para procurar algo para devorar. Enquanto a elfa seguia-o, visando procurar algo comestível para seu parceiro também, Frosty continuava em seus estudos.

Seus poderes estavam ainda um pouco fora do controle, o que significava que seu par deveria estar por perto. Assim que conseguissem informações suficientes, eles teriam de se reencontrar com o resto do pessoal. Ele não sabia em quantos grupos as duas equipes haviam se separado, e aquilo era problemático. Queria pensar que ninguém ficara sozinho, e que não tivesse ocorrido nenhuma luta. Estava preocupado com os outros. E sabia que, se conseguisse provar sua teoria, a decisão que iam ter de tomar era de suma importância.

oOo

Sean voltara de sua busca completamente decepcionado. Regra idiota que proibia coisas comestíveis dentro de um local como aquele. Os livros poderiam ficar sujos, diziam. Se as outras pessoas eram descuidadas ele precisava morrer de fome? Olhou de esguelha para a garota de baixa estatura e orelhas estranhas que o acompanhava. Neco era um elfo, sem duvida, mas de uma raça diferente, quase extinta. Ao contrário das simples orelhas pontudas, as dela era ainda maiores, e com uma leve pelagem amarronzada, pareciam mais orelhas de um animal. O que a tornava fofinha, de certa forma.

Ele ergueu uma sobrancelha. Ela era realmente fofa a primeira vista, mas era tão soturna e calada que era dificil tirar algo dela. Era como tentar conversar com uma porta, só que as vezes a garota realmente respondia. - Você não tem mais nenhum lugar para ir?

– Bom, ambos estamos perdidos, não é?

– Sim, mas... está parecendo um bichinho de estimação me seguindo assim...

Ela fechou a expressão, juntando as sobrancelhas. - Por que acha que eu ia ficar seguindo você? Tenho mais o que fazer. E não sou um bichinho.

– Você tem orelhas estranhas. Parece um bichinho.

– Eu sou um elfo, poxa vida. - ela sussurrou, naquele tom de sempre, fazendo a frase parecer mais uma ameaça. - Pare de falar comigo se está incomodado.

– Não estou incomodado, estou com fome, e com tédio, e com fome.

– Muito maduro da sua parte. - ela suspirou, voltando a andar, tomando distância. Sean revirou os olhos, passando os dedos pelo braço com a tatuagem. Se aquela garotinha fosse realmente seu par, ele teria problemas em lidar com isso.

Era um fato que ele sempre acabava arrumando confusão, e embora gostasse de ficar na dele, sem ser incomodado, não fugia de uma boa briga. Ele teria ido em frente sem se importar, se não fosse a intervenção da fada. Era um shifter. Era um BeastHunter, não deixava prisioneiros, não tinha pena. No entanto...

O que fazer quando seus inimigos na verdade estão ligados por linhas invisíveis a você?

A duvida não deixava-o tomar uma atitude. Até porque, era sábio o suficiente para saber que dois contra um não era uma boa proporção. Ele estava em uma posição desfavorável ali. Não ia arrumar uma briga, não daquela vez.

oOo

Os três voltaram a se encontrar e Frosty já havia separado pelo menos uns três livros, um baseado na história de Ragadash, o segundo sobre a época que Pesadelo estava em ascenção e o terceiro sobre magia oculta. Esse último era mais uma base de pesquisas do que um grimório. Várias consequências se misturavam em teorias. Em uma parte, os sábios que o escreveram questionavam os efeitos que as Chaves de Ragadash teriam em relação aos outros pedaços de alma perdidos. Claro que nenhum dos sábios era um pedaço, então eram apenas suposições. O que mais se repetia, e isso ocorria nos três livros, era a ideia de uma influência grande de cada parte sobre os seus similares.

Eles apontavam que qualquer coisa diferente que ocorresse a uma das partes, em especial nas chaves, causaria consequência nas outras, num efeito dominó. Se o caso fosse grave, era capaz da outra parte até mesmo se extinguir (com exceção as próprias chaves, pois estas eram objetos, e apesar de estarem vivas, tinham uma caraterística própria, não podiam ser destruídas).

– Certo... Você disse que o garotinho... Ryan estava se sentindo pesado nos ultimos dias, não? - questionou Frosty para Sean.

Ele concordou com a cabeça. - Sim... como se estivesse sendo petrificado.

– Annie foi petrificada. Literalmente. - alegou Neco, se encolhendo. - Se ele for o par dela, explicaria esse mal estar.

– Levando isso em consideração, ela ainda está viva... - o elfo continuou, abrindo um sorriso esperançoso. - Se não o rapaz poderia ter falecido também.

– Quer dizer que ainda poderemos salvá-la!

– Sim... mas não podemos fazer isso por enquanto. Devemos procurar uma forma de reverter o feitiço, de qualquer jeito. - ele suspirou, e então voltou a linha de raciocínio. -Quantos a vocês dois, a mim e possivelmente Trixia, não tenho certeza. Arrisco dizer que algo está acontecendo com as chaves.

– Elas não podem ser destruídas, podem? - foi a pergunta de Sean.

– Não de maneira convencional. Precisaria de uma fonte muito poderosa de magia. O que deixa apenas uma explicação...

– Alguém anda juntando as chaves... - retrucou a elfa, em tom soturno.

– E colocando-as na porta, ou seja...

– Querem libertar o Pesadelo novamente. - terminou Sean, passando os dedos pelos cabelos escuros. - Okay, isso realmente não é nada bom.

– Não mesmo... acho que todos concordamos que faz muito sentido, certo? - Frosty fechou os livros, voltando a colocá-los em uma pilha sobre a mesa. Os outros dois assentiram com a cabeça. A tarde tornara-se noite, e uma coruja piava ao longe.

– Precisamos encontrar os outros. Temos que avisá-los...

– Sim... vamos partir agora mesmo. - Frosty levantou-se, passando o braço pelos ombros da menor e lançando um olhar a Sean. - Você vem conosco?

– Não tenho muita opção, não é?

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A manhã encontrou-os seguindo em direção ao que parecia ser um rio... as águas caudalosas desciam de uma enorme cachoeira, e continuavam, sempre para baixo... Sean observou o terreno mais abaixo, e Frosty parou também, sentindo algo diferente... ele saberia reconhecer aquele magnetismo em qualquer lugar, aquela força estranha e sem sentido que acabava puxando-o. Nyx estava em algum lugar ali perto... e prossivelmente, os outros também...