A Menina da Bicicleta Vermelha escrita por Madchen


Capítulo 4
London Eye




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/54840/chapter/4

 

As nuvens no céu e o ar frio anunciavam a chegada do inverno. As ruas estavam sempre úmidas da chuva e ninguém se atrevia a sair de casa sem um casaco e, quem sabe, um cachecol. Quem saísse de casa, ou ao menos olhasse pela janela, veria as ruas ligeiramente tingidas pelos tons alaranjados das folhas que caem das árvores e se depositam nas calçadas. Veria também alguns lojistas tentando varrer essas folhas, algumas pessoas na rua e uma ocasional chuva. Veria uma cidade cinzenta e um céu esbranquiçado.

Se essa pessoa fosse um pouco mais para o centro, passasse pela cafeteria da esquina e chegasse à beira do parque, veria também uma menina estacionando uma bicicleta vermelha em uma árvore. Uma menina com cabelo preto Chanel na altura das orelhas, cachecol cinzento, casaco de listras em tons rubros e luvas pretas, agora agachando-se junto a árvore. Ao seu lado havia um cachorro, e do lado do cachorro havia um mendigo.

Quem visse acharia estranho, mas eu duvido que alguém tenha visto. Todos estavam preocupados demais em não olhar ao redor. Em não se importar.

Quem visse teria achado graça da menina brincando com o cachorro e trocando ocasionais palavras com o homem. Veria a menina se levantar, correr em volta da árvore com o cachorro a morder seus calcanhares, sentar novamente e tirar um pequeno bolinho do bolso. Ela deu o bolinho ao mendigo, que agradeceu.

-- Eu que agradeço -- a menina respondeu -- por você ter espalhado os cartazes pelo parque, como eu pedi.

Em frente a árvore onde estavam havia um poste com um dos cartazes respondidos. A menina fitou por um tempo o desenho do boneco palito, se imaginou nele. "Ele queria me desenhar" a menina pensou. "sem saber".

-- Qual é o nome dele? -- uma hora a menina perguntou, enquanto afagava o cachorro.

-- Maurice -- o homem respondeu.

-- Maurice? -- a menina não desviou o olhar do cão. Ele era pequenininho e engraçado. -- Nome esquisito pra um cachorro. Maurice é nome de gente.

-- Era o nome do meu filho -- o homem completou. Então, a menina olhou para ele, um tanto surpresa, mas o homem disse para ela não se preocupar. -- Ele está bem, seja lá onde estiver. Eu estou bem.

Quem tivesse reparado na cena, teria achado estranho e talvez ficasse olhando por um tempo para ver se nada ruim acontecia com a menina, mas veriam-na apenas se levantar, montar na bicicleta e ir embora como chegou. Veriam também o mendigo dar o bolinho ao cachorro.

Maurice.

A menina tirou um coelho de pelúcia da prateleira, um coelho marrom de pernas e orelhas muito compridas que lhe caíam pelas costas. Ele tinha um focinho costurado em forma de "x", dois pequenos olhos de linha e pêlo tão curto que parecia nem existir.

A menina pôs o coelho em cima da cama e sentou-se do lado, com uma folha de papel. Ela rabiscou um pássaro na folha, e em cima do pássaro pôs um barco. Em cima do barco havia um boneco palito. A menina cortou o desenho, dobrou, pôs dentro de um avião de papel e lançou pela janela à úmida tarde cinzenta e chuvosa. Alguns minutos mais tarde o desenho estaria a caminho de algum bueiro da cidade, junto com a enxurrada, mas a menina não se importava. Ele estava lá fora.

O menino também.

***

Matt não desistiu de procurar antes de dar uma última olhada nas casas, por cima do ombro. Não encontraria a certa nunca (na verdade, estava do lado oposto da cidade) e concordou em voltar para casa com o amigo. No metrô, os dois pouco conversaram.

-- Matt -- o amigo pôs a mão em seu ombro. -- Você está esquisito. O que há? Você queria tanto assim encontrar a casa?

Matt demorou para responder.

-- Você entenderia se fosse com você.

Quando desceram do metrô, cada um seguiu para um lado. Matt, com as mãos nos bolsos do casaco marrom, caminhava pela rua observando as folhas que caíam das árvores, as pessoas que conversavam e os cachorros que passavam. Quando viu um cartaz com a bicicleta vermelha, parou; pegou o que havia guardado no bolso e olhou para ele. De quem seria aquilo? Ele tornou a guardar o  papel e caminhou ao mesmo tempo que, do outro lado da cidade, uma menina de grandes olhos castanhos lançava um avião de papel pela janela.

***

Toddy fitava a menina o tempo todo com seus olhos de linha marrom. Ela não parecia se incomodar. Pegou-o pelos braços e, deitada de bruços na cama, falou:

-- Você vai me ajudar, não vai, Toddy? Vai me ajudar a encontrar o menino de óculos.

O menino de óculos, camisa xadrês e cabelo cor-de-mel que estava voltando pra casa agora.

-- Vai sim. Amanhã nós vamos sair e perguntar para algumas pessoas se elas o viram.

Nesse instante, o telefone tocou. A menina esticou o braço, pegou o telefone em formato de banana e disse um "alô" preguiçoso. A voz do outro lado era agitada, feminina e digna de dublador de desenho animado.

-- Blue?

-- Hoje nós vamos ao London Eye, quer ir com a gente?

-- Nós quem?

-- Eu, a Yohanna e o Richard.

Richard. Esse garoto tinha pintado na vida de Blue há uns dois anos e ha pelo menos um eles estavam se paquerando. Blue jurava que não, mas a menina sabia que sim.

Ela acabou concordando, pôs sua boina de panda e teve uma pequena conversa com a mãe até que ela lhe deixasse sair. Já era um pouco tarde, mas depois que a menina disse que suas amigas lhe trariam de volta, a mãe acabou deixando.

A menina foi de metrô; ela e sua mochila de bujigangas.

Lista do que havia na mochila da menina:

1 lápis
1 caneta esferográfica preta
1 celular pequeno e preto
1 carteira cheia de papeis achados por aí
1 dólar
2 botões azuis
1 pequena chave de fenda
1 fone de ouvido para o celular
3 chicletes Trident
1 binóculo pequeno
3 caheveiros e pelúcia: uma laranja, um temaki e um pato
chaves de casa
chave da bicicleta
1 cartaz de resposta do menino

Chegando em London Eye, não havia niguém ainda. A menina sentou em um banco e esperou, esperou, vendo as pessoas passando. Uma mãe e uma menina que corria para comprar algodão-doce, um casal de uns 60 anos, um grupo de amigos que falava quase gritando, uma menina sozinha que não parava de falar no celular, um homem tendo problemas com a máquina de pipoca.

Mas provavelmente ninguém reparou na menina que raparava nos outros.

Logo, outra menina de cabelo looongo e azul apareceu acompanhada de uma loira muito bonita e um rapaz tão loiro quanto, mas nem tão bonito assim. A menina se levantou, acenou, e logo os amigos viram e vieram correndo cumprimentá-la. Nada de abraços, não era do feitio deles. Apenas disseram 'oi', compraram os bilhetes e subiram na cabine da maior roda gigante de Londres. Será que é a maior do mundo? Olhando de cima, a menina podia garantir que sim.

Subir naquela roda gigante dava a impressão de que o mundo era tão pequeno lá embaixo... por um momento a menina até esqueceu do menino, mas quando o cartaz que havia guardado em sua bolsa voou, ela se lembrou. Não percebeu que Yohanna também olhava para baixo da mesma forma, só que com olhos menos expressivos.

Começara a chover. Todos correram para a estaçãoe se dividiram em duas duplas; Yohanna e a menina entraram no primeiro trem, Blue e Richard iriam no segundo. Sabe-se lá o que aqueles dois ficaram fazendo na estação, e as meninas se divertiram tentando adivinhar.

-- Yohanna -- a menina chamou, e Yohanna olhou. -- De onde você conhece a Blue?

-- Ah, estávamos em uma loja em busca da mesma camiseta -- ela pareceu animada em contar. -- Só que descobrimos que só havia uma, daí começamos a discutir quem deveria ficar com ela. Na verdade, Blue não fazia questão e cedeu depressa, então eu acabei comprendo a blusa. Mas aí, quando eu estava saindo da loja, ela disse: "depois você me empresta, hein?", e eu voltei para falar com ela. Foi assim.

A menina sorriu. Que legal. Será que ela emprestou mesmo a blusa?

-- Eu estava com um amigo nesse dia, mas ele já tinha ido embora quando encontrei a Blue. Uma pena. Seria legal os dois se conhecerem.

Chegando em casa, a menina não contou para a mãe que as amigas não a haviam acompanhado e entrou no quarto. Ligou a TV e ficou até altas horas assistindo um filme entigo de cowboy sobre um homem muito macho que hospedou uma doce jovem da cidade em casa, e eles viviam tendo conflitos. Aí o homem levou a menina para caçar cavalos e ela começou a gostar do negócio. No fim, seu sonho de voltar para a cidade se realiza e ela se separa do homem muito macho, que já tinha se apaixonado por ela.

A menina deixou uma lágrima escorrer enquanto mordia uma pipoca, acompanhada de seu fiel amigo Toddy. Droga, ela odiava chorar com filme bobo. Toddy devia estar achando graça.

***

O menino desenhou uma bicicleta muito mal desenhada e pintou de vermelho. Olhou para sua obre completamente torta e resmungou. Ora, foi o melhor que pôde. Colocou uma interrogação depois da bicicleta, como se ela fosse uma pergunta. "Bicicleta? Que bicicleta? Você só pode estar brincando comigo", era o que ele queria dizer. Mas diria?

Não, acabou não dizendo. Esperou o dia acabar, guardou o desenho na gaveta, apagou a luz e dormiu (pela terceira vez no dia). Deixou o óculos na mesinha de cabeceira.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!