Quero que você conheça meu mundo escrita por River Herondale


Capítulo 2
Aquela música do Legião Urbana




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– Clarice. – a mulher disse seca. – Que trapo é esse?

– O quê? Sou um trapo agora? – Clarice já estava dentro da casa, tentando achar algo diferente no apartamento.

– Esses rabiscos na sua perna, no seu braço, pescoço... Cruzes, que coisa horrorosa é essa?

– Tatuagem, conhece?

– Parece uma mendiga com essa palha no lugar de cabelo.

– Só vai me criticar, é? Desculpa, dona Cristina, mas não é assim que recebe a filha depois de um ano.

– Por que voltou?

Clarice estava vermelha de raiva.

– Olha, acha mesmo que eu gostaria de voltar? De ver essa sua cara de insatisfeita? Voltei porque consegui uma boa oportunidade de emprego em uma agência aqui de São Paulo, só isso. Por enquanto preciso de um teto, mas prometo que não é por tanto tempo. Só relaxe.

– Você esteve viajando o mundo inteiro e voltou agora para o Brasil... – a mãe de Clarice tinha um sorriso irônico estampado na boca. – Percebo que percebeu que não dá em nada isso.

Clarice abriu a porta de seu quarto e jogou sua mala dentro, tampando os sons da mãe. Ela tirou os óculos, enxugando os olhos cheios de lágrimas. Mas esta era sua escolha.

Seu quarto era o mesmo quando havia deixado. Estava limpo, mas nada havia saído do lugar. Intocado.

No último ano estivera em Nova York, Délhi, Sydney, Hong Kong, Qatar e Amsterdã. Trabalhava de freelancer como fotógrafa jornalista, vendendo suas fotos para revistas sobre culturas locais. Era fotógrafa, e a grana era o suficiente para poder comer e comprar passagem para viajar mais. Até que ela recebeu um e-mail vindo de uma agência publicitária de São Paulo pedindo que ela voltasse pois eles tinham uma proposta boa para uma campanha nova. Ela precisava urgente de uma proposta tentadora, e então agarrou. O preço que pagaria era ter que voltar a viver com sua mãe rabugenta e seu pai bêbado.

Clarice pegou um vestido velho guardado no seu antigo guarda roupa e levou para o banheiro para poder tomar banho. Nada mudara, só ela mesmo.

¨¨¨

Dezembro havia acabado, janeiro já estava no fim. Era dia vinte e nove de janeiro quando Bento mandou uma mensagem no celular de Frederico com uma proposta:

“Bora ir pra um show?”

“Quem vai tocar?”

“Uma banda da cidade mesmo. Eles fazem uns covers bem legais do Legião Urbana me contaram.”

“Essas bandas só sabem tocar Legião Urbana ou é minha impressão?”

“Cara... Você vai ou não? Já tô aqui com as entradas, nem precisa me pagar.”

“Tá. Que horas?”

“Às onze te pego aí. Fique na frente do prédio pra ir mais rápido, beleza?”

“Tá.”

Bento era o melhor amigo de Frederico. Eles haviam se tornado amigos no nono ano do Ensino Fundamental porque os dois gostavam das mesmas bandas. Bento era bolsista na escola que eles escutavam, por isso era um aluno esforçado, mesmo assim não era tão inteligente. Enquanto Frederico estava já entrando no seu segundo ano de faculdade muito muito chata, Bento aproveitava os barzinhos da cidade, tocava guitarra até madrugada e trabalhava com seu pai na mecânica. Frederico tirou a camiseta, coçou a nuca e entrou no banheiro para tomar banho. Ele gritou então para o pai:

– Vou sair de noite, tá? Com o Bento.

– Ok, sem drogas.

Frederico riu do pai. Frederico era do tipo certinho demais, certinho que chegava a ser irritante, e sim, sem drogas.

¨¨¨

Já fazia um mês que Clarice estava trabalhando na agência. Ela gostava bastante, o espaço era criativo e grande, com vários quadros nos corredores de modo inspirador. Os publicitários eram bem animados e apaixonados pelo trabalho, o que facilitava tudo. A campanha em que ela estava trabalhando era um projeto em que deveria achar e retratar vidas reais, famílias diferentes e explorar a essência que tornava aquela família única. Era uma campanha para uma rede de saúde em que pediam doações. Ela estava envolvida profundamente no projeto, como sempre fazia.

– Ei, Clarice.

– Oi. – era Tati, uma das publicitárias na agência. Ela era supersimpática e a mais próxima de Clarice na agência com certeza.

– O que você acha da gente sair e ir em um show com a galera da agência? Já tenho as entradas, se quiser ir.

– Claro que quero!

– Não quer saber o que eles tocam?

– Qualquer show eu vou. Preciso dar uma relaxada mesmo.

– Ok. Às onze a gente te busca na sua casa, pode ser?

– Ok, vou te mandar o endereço por mensagem então. Obrigada, obrigada, obrigada, amo você.

Tati riu e então voltou para o trabalho. Clarice estava tão focada no trabalho que esquecera que São Paulo tinha mil e uma possibilidades de diversão, principalmente à noite.

¨¨¨

– Onde você conseguiu esse carro foda? – Frederico perguntou enquanto Bento acelerava o carro. Era o carro do tipo “sou um mauricinho mimado que só sabe gastar dinheiro do papai com balada, academia e garotas superficiais” – Você é louco de pegar o carro da mecânica.

Bento dizia que seu pai podia não ter ficado rico com sua mecânica, mas de vez em quando chega uns carrões para ele arrumar, e quando o dono só terá que buscar o carro no outro dia, Bento aproveita e pega “emprestado” o carro para sair em uns rolês na rua. O cuidado tem que ser dobrado, e sempre quando ele volta na mecânica, ele certifica de voltar o contador de quilômetros para como estava antes. É tudo muito bem orquestrado.

– Se eu não arriscar, o que eu terei, hã? – Bento soltou uma risada – Aliás, Luana confirmou presença no evento do Facebook. Ela vai estar na festa, Frederico! – Bento comentou animado, mas Frederico não se importava se Luana estaria ou não. Ela estava no mesmo ano que ele na faculdade e começara ao mesmo tempo com ele no estágio que o escritório de seu pai disponibiliza para estudantes de direito.

– Não sabia que ela gostava de rock.

– Muito menos eu. Ela tem mais cara que curte MPB, não acha?

Bento estava parando seu carro na frente de uma casa longe do centro de São Paulo. Quando Frederico questionara o motivo deles estarem seguindo para o sentido contrário do show, Bento pediu apenas que ele colaborasse.

– Aí, cara, ela vai chegar. Dá pra você sentar no banco de trás ou tem algum problema com isso?

– Como assim você vai trocar seu braço direito, seu copiloto, seu melhor amigo por uma garota? Bento, tínhamos um acordo.

– Eu sei, mano, mas ela é A garota, saca? Facilita pra mim!

Frederico gemeu de desgosto e então pulou para o banco de trás quando a garota estava saindo pelo portão da casa. Agora ele entendia todo o entusiasmo de Bento.

– Uau, que linda! – Bento cumprimentou a garota. Ela era linda, do tipo que podia facilmente ser uma angel da Victoria’s Secret. Seu cabelo era vermelho e longo, com bastante volume e movimento. Sua boca estava pintada de rosa e seu vestido justo era verde escuro. Frederico não conseguia imaginar como Bento havia conseguido uma garota tão gata.

– Adorei seu carro, Ben! – ela comentou depois de abraça-lo. Seu perfume era forte e enjoativo, e Frederico podia sentir até no banco de trás.

– Esse é meu amigo, Frederico.

– Prazer, Fred! Sou Natália – sua voz era aguda demais.

– Frederico mesmo, ok? – Frederico tentou dar uma leveza no pedido, mas ele odiava realmente ser chamado de Fred. Ela riu.

– Vambora, galera, o show não vai nos esperar para começar.

¨¨¨

Clarice se perguntava como aguentara a mãe a vida inteira sem pirar. Depois de ficar um ano fora de casa, voltar era como estar no inferno. Não havia um dia que elas não brigavam, a maioria das vezes por motivos ridículos.

Ela cortara o cabelo, ali mesmo no banheiro. O cabelo estava tão seco que não havia saída, e seus fios que costumavam bater no meio da costa agora encostavam no ombro. Ela tinha um rosto fino, e o corte novo moldava bem seu formato. Sua mãe brigou com ela porque havia cortado o cabelo na pia, deixando os cabelos caírem ali mesmo, e Clarice sempre sabia retrucar.

“É só cabelo, credo!”

“Cabelo que pode entupir minha pia! Se falta tanto assim para pagar até um corte eu te dava o dinheiro!”

O pai como todo sempre, estava ausente. Normalmente em um bar de esquina, ou então assistindo futebol na sala.

– Pega cerveja, pra mim, mulher! – ele gritou da sala para a mãe de Clarice. – Vai CURINTIAAAAAAA!

A mãe colou a cerveja na frente do marido, voltando para a cozinha. Clarice estava pronta para ir no show, nem mesmo dizendo tchau.

– Ei, não quer ver o Coringão ganhar? – o pai perguntou a Clarice.

– E eu tenho cara de que liga para a porcaria do Corinthians? – Clarice fechou a porta atrás dela, ignorando o olhar do pai.

Dentro do elevador, ela viu que um cara também estava lá. Deveria ser no máximo três anos mais velho que ela, e era bem bonito, mas com um olhar meio conquistador.

– Clarice, né? A filha do Vianna.

– Conhece aquele velho bêbado? Que desprazer.

– Na verdade eu só ouvi histórias da tal filha Clarice da família Vianna. Eu me mudei para o prédio no ano anterior e sempre diziam que eles tinham uma filha desmiolada que havia fugido.

– Que havia fugido? – Clarice riu ironicamente. – Certo.

– Mas você não parece desmiolada.

– Não tire conclusões ainda...

– Heitor.

– Não tire conclusões, Heitor.

Ele usava uma camisa xadrez e uma calça de recorde bem cortado que combinava com seu corpo. Ele era magro, mas seus braços provavam que malhava.

– O que você faz da vida?

– Vivo, respiro, durmo... coisas que todos fazem, sabe? A vida nem sempre é fascinante.

– Ha-ha, que engraçada. Estou pergunto de profissão ou faculdade.

– Fotógrafa. – Clarice apontou para sua bolsinha em formato de câmera, e depois sua tatuagem, um rolo de cinema no lado inferior do braço.

– Você tem mesmo um lance underground. O que você acha que sou?

Ela analisou ele de novo. O cabelo era curto, mostrando bem seu rosto. Seus olhos eram castanhos bem escuros, parecendo jabuticabas, sua pele morena do tipo chocolate ao leite, seu modo de vestir era moderno. Ela chutou.

– Jornalista?

Ele riu.

– Não! Bem, eu tenho um certo estilo, né? Mas faço enfermagem.

– Nunca desconfiaria que você é enfermeiro! Nada a ver com sua aparência.

– O que você espera de um enfermeiro?

– Que ele não seja todo estiloso, com certeza.

A porta do elevador se abriu, os dois saíram.

– Foi um prazer, Clarice. Desculpe por te julgar assim antes.

– Relaxe. Nós dois nos julgamos.

– Podemos nos falar mais?

– Quem sabe?

Clarice foi para seu caminho, daqui a pouco Tati apareceria para leva-la no show. Ela não notou, mas Heitor acompanhou ela com os olhos até perde-la do campo de visão.

¨¨¨

O show era pequeno, a banda estava no pequeno palco no canto do bar, um espaço livre na frente do palco e mesas ao fundo. Frederico estava na mesa sozinho, já que Bento nunca voltava com a Natália, ocupados demais se amassando, ele deduziu. De longe viu uma menina bonita dançando e conversando com outros amigos, e essa visão fez com que Bento ficasse hipnotizado demais para notar que tinha companhia.

– Frederico, oi! – era Luana. Eles se cumprimentaram e ela se sentou ao seu lado, balançando a cabeça com a música.

– Não sabia que curtia músicas assim. – Frederico puxou assunto depois de um silêncio constrangedor.

– Pois é, eu havia ganhado entrada de uma amiga, e vim com ela. Mas ela sumiu com um cara aí e fiquei sozinha.

– Que coincidência. – Frederico lembrou-se que Bento ainda não voltara.

– Não vai dançar? – o tom de Luana mostrava que ela estava convidando.

– Você sabe que sou horrível dançando, então acho melhor ficar aqui sentado.

– Você quem sabe, mas eu vou indo, tá? Até. – Luana não mostrou-se triste ou ofendida. Estava se fazendo de difícil para não mostrar o interesse que tinha em Frederico. Ele, claro, nem notou.

Frederico suspirou, e decidiu buscar uma bebida no bar. Ele não bebia nada alcoólico, já que ele gostava de estar bem lúcido e não preso na neblina bêbada que seus amigos viviam. Sem ressaca, sem dores de cabeça, sem indisposição. Seus amigos não se importavam, já que pelo menos tinham um motorista oficial. Ele sentou-se na bancada e pediu para a garçonete uma batida sem álcool. O olhar da mulher era nítido, algo como “bixinha” ou qualquer outra coisa ofensiva. Ele se lembrou então de quando tinha doze anos e seus amigos de escola iriam para uma festa na piscina no aniversário de uma das alunas. A garota havia roubado de seus pais uma garrafa de vodka, contrabandeando-a para a festa. Todos seus colegas beberam pelo menos um gole, outros até copos da mais pura vodka. Seu melhor amigo da época desafiou ele a dar um gole, e ele deu, a bebida descendo rasgado pela sua garganta. Ele não sabia como eles gostavam daquilo, era horrível. Uma voz tirou Frederico de seu devaneio.

– Batida, é? Bebida de mulher, não acha? – a garota era bonita, tinha um cabelo cortado em cima do ombro e cacheado, os olhos eram grandes e confiantes, um sorriso desafiador na boca. Ele nunca havia visto nenhuma garota como ela.

– Desculpa, te conheço?

– Não.

– E você me conhece.

– Não. – ela sorriu ainda mais, como se debochasse. – Mas podemos nos conhecer.

– E você é?

– Já? Precisamos disso? Olha, vou ser bem direta, eu só quero é beijar um pouco.

Ele estranhou.

– E por que eu?

– Não sei. Provavelmente porque você parece ser o único aqui que não está bêbado ou é um tarado.

– Sério isso? Não pareço um tarado? – ele riu.

– Talvez um tarado interno, mas todos são.

– Desculpa, mas você está bêbada?

Ela riu bem alto. Frederico se assustava sempre com o som estridente de sua risada.

– Nenhuma gota de álcool, pelo menos não mais. Troquei o álcool pelo chá.

Ela deve ter notado a expressão confusa dele.

– Chá do tipo chá mesmo. Chá verde, chá mate, chá de camomila. Mas isso não é importante, não é? Só vamos nos beijar!

– Vamos?

– Você pensa demais. Vai me beijar ou não?

Frederico varreu o lugar com os olhos. Muitas pessoas se beijavam, e ele não era do tipo que chegava e ficava. A garota nem o conhecia e já notara que ele pensava demais. Não era mentira; ele gostava de ter a certeza de que não seria só um beijo. E aquilo era tão inusitado. Mesmo assim, será?

Ele notou que Luana estava se aproximando, e ele não estava disposto para ter uma conversa entediante com ela sobre direito ou qualquer coisa que lembrasse seu pai. Ele olhou para a garota e segurou a cintura dela.

Ela colocou sua mão atrás da nuca de Frederico e o beijou. Ele retribuiu com a mesma intensidade, seus olhos estavam fechados, assim sumindo do universo, apenas o momento importando. Quando ele abriu os olhos, Luana não estava mais perto. Ela havia sumido. Ele suspirou, aliviado mas um pouco culpado. A garota ao seu lado sorriu para ele, chamando sua atenção.

– Você beija bem.

– Você também. – ele não estava formulando as palavras direito. Agora ele analisava melhor ela: suas tatuagens, sua expressão travessa e sua elegância natural.

Ela deu risada do comentário dele.

– Nossa, essa música! Amo muito, sério. – ela exclamou, e Frederico se concentrou para ouvir. A banda estava cantando uma versão de Ainda É Cedo do Legião Urbana.

– Eu gosto também.

– Eu amo. A garota da música, ela é incrível. Queria ser como ela.

– Qual seu nome?

– Psiu, deixa eu escutar – ela interrompeu.

– Eu me chamo...

– Shhhh – ela pediu novamente. – Bom, foi um prazer te conhecer! Que tal mais uma ficada?

Ele fez que sim com a cabeça, e ela se aproximou, puxando-o para seu corpo. Ela sabia o que fazia, passando sua mão na costa dele, os movimentos coordenados de seu corpo. Ele nunca ficara com ninguém parecida.

Ela abruptamente parou e limpou o batom vermelho borrado da boca com a costa da mão e piscou para ele antes de desaparecer. Era ingênuo, ele sabia, mas ele estava em choque. Ela era tudo o que ele não era: confiante, decidida e ousada. E ele estava fascinado com a garota tatuada que nem o nome descobriu.


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