Camélias escrita por My Dark Side


Capítulo 9
Quase


Notas iniciais do capítulo

Bruxinhos e bruxinhas! Feliz ano novo! Sei que meio mês já foi, mas nunca é tarde para dizer, não é?
Esse é o primeiro capítulo de 2017, para comemorar a virada de ano teremos algumas explicações subjetivas que iniciam a trilha da descoberta. É realmente uma aventura tentar encontrar as respostas quando você não tem onde procurar.
Espero que gostem do capítulo e que seu verão esteja sendo memorável!
Até logo!



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Grunhi puxando os meus cabelos e abaixando a cabeça até quase encostar a testa na mesa da biblioteca, pude ouvir uns alunos mais velhos pedirem silêncio, mas fiquei com vontade de manda-los para outro lugar. Eles não têm ideia do quanto é difícil fazer uma pesquisa dessas, não faz o menor sentido ficar pesquisando sabendo que não vai dar em nada. O bater de um livro fechando seguiu o suspiro derrotado, pude sentir os olhos cinzentos sobre mim, pedindo paciência, a minha estava se esgotando. Não podia pedir por um pouco de luz, ou que algo ao menos mostrasse para mim o caminho que eu deveria seguir para conseguir encontrar algumas respostas.

— Minha irmã está doente. — ele sussurrou. — De novo. Não consigo me concentrar, você pode parar de grunhir?

Levantei o rosto, a expressão de Gio estava desolada, eram poucas as vezes que ele conversava sobre a família, suficiente para que eu tivesse um mínimo de conhecimento: ele não gostava de tocar no assunto, tinha uma irmã, um irmão com problemas e os pais cujo passado eu não sabia nada. Ano passado acabei descobrindo sobre a caçula, sem querer, ele murmurou algo parecido com “irmã”, por isso eu perguntei depois. Meu francês é precário demais, mesmo depois de inúmeras tentativas ele tentava me mostrar como as palavras eram fáceis — a criatura se matava de rir depois quando o sotaque escocês se sobressaía.

— Desculpa. — pedi, ele balançou a cabeça negando e disse que a culpa era dele.

Olhei para baixo e vi as palavras do livro sobre criaturas fantásticas saltarem novamente da página:

Unicórnio

Classificação M.M.: XXXX²⁴

O unicórnio é um belo animal encontrado nas florestas do norte europeu. Quando adulto é um cavalo branco-puro, dotado de um chifre, embora seus potrinhos nasçam dourados e se tornem prateados antes de atingir a maturidade. O chifre, o sangue e o pelo do unicórnio têm propriedade excepcionalmente mágicas.²⁵ Em geral ele evita contatos com humanos, deixa mais facilmente uma bruxa do que um bruxo se aproximar dele e tem patas tão ágeis que torna difícil sua captura.

Por que os livros não falam nada sobre maldição de unicórnio? As coisas seriam tão mais fáceis. Eu terei que procurar relatos, pesquisas, buscar respostas, mas não existe uma chance! Como eu vou encontrar uma pessoa que foi amaldiçoada por matar um unicórnio e que ainda esteja viva? A melhor chance seria a minha bisavó, mas ela não está viva. Pelo menos eu acho que não. E se estivesse, de que adiantaria? Ela poderia estar inteiramente afetada pela maldição, sem poder partilhar do que se trata.

— Hoje é dia trinta de outubro. — Gio falou como se fosse uma resposta.

— Hum? — franzi as sobrancelhas, ele levantou os olhos.

— Você não perguntou que dia é hoje? — neguei, ele franziu o cenho. — Será que estou ficando maluco?

Mordi o lábio antes que o sorriso se formasse, se o fizesse a minha ideia iria por água abaixo. Inclinei-me para perto dele, ele também se aproximou, minha boca ficou a centímetros de sua orelha.

— Sim. Você está ficando louco. Completamente pirado. — ele se afastou, o sorriso quase aparecendo. — Mas vou te contar um segredo: as melhores pessoas são assim.

— Alice! — ele sussurrou encantado. — Você assistiu ao filme? Nas férias? — assenti rindo. — O Chapeleiro Maluco não é um personagem incrível?

— É sim. Eu adorei a Rainha Branca. — imitei o modo como ela andava, apenas virando a parte de cima do meu corpo com as mãos levantadas naquela pose estranha. — Ela é linda.

— Eu adoro ver filmes, queria saber porque nós não fazemos filmes. Nossas fotos já mexem, qual é a dificuldade de criar uma filmadora? — ele gesticulou as mãos para o teto, falando com alguma entidade maior.

— Nós somos os únicos que ainda veem peças de teatro sem dificuldade. A vovó contou que na primeira vez que ela foi no cinema levou um susto tremendo. — ri com a lembrança, mantendo o tom baixo para não perturbar os outros.

— Falando em avós, você foi falar com a Yasea nesses últimos dias? Ela estava te procurando. — encolhi os ombros envergonhada, mesmo tendo voltado a conversar com os meus amigos, ainda não tive uma conversa direito com a minha avó.

— Não. Você quer ir agora?

— Pode ser. — respondi ao me levantar, fechando o livro de Newt Scamander e guardando-o no bolso do casaco do uniforme. — Hum... — pensei, ele me encarou confuso. — Acho que estou pronta para falar.

Primeiro foi o choque e a surpresa, mas então ele sorriu, mesmo que ainda eu visse no fundo de seus olhos a preocupação ainda presente, ela já não se encontrava tão martirizante. Voltamos com nossa amizade da mesma forma que se encontrava na troca de cartas do início do verão, ainda que eu não tivesse explicado de maneira inteligível o que aconteceu para a mudança brusca na volta às aulas. Levou uma semana para eu me decidir, mas para ele pareceu de um dia para o outro.

Ele carregou os livros nos braços até o senhor Ramil para pegar a permissão de retirada. Eu fiquei surpresa quando entrei pela primeira vez no ano aqui e não encontrei a madame Pince, normalmente bruxos levam muitos anos para se aposentar — muito mais que os trouxas — e alguns nem o fazem, levando em conta o senhor Binns de História da Magia. O senhor Ramil tinha características bem peculiares e parecia estrangeiro, pelo menos eu não tinha visto muitas pessoas que usassem a mesma vestimenta na cidade em que eu morava, quando comentei sobre isso numa carta recente a vovó, ela me explicou que envolvia a religião dele. Achei isso interessante, é engraçado que aqui em Hogwarts eu particularmente nunca ouvi uma palavra sobre religião, acho que aqui todos se respeitam, deveria ser assim lá fora também. Já ouvi tantas histórias tristes sobre isso no mundo dos trouxas...

— Vamos? — Gio perguntou, ele esperou nós sairmos do campo de visão dos mais velhos para guardar os livros no bolso.

— Como você consegue quebrar tantas regras e ainda ter menos detenções que eu?

— É um dom. — ele sorriu. — Exijo muito de minha capacidade de mentir.

— Eu sei bem disso. — resmunguei esfregando as palmas da mão uma na outra. — Maureann te odeia por causa do ano passado.

— Não foi minha culpa. Ela era a mais próxima e alguém podia levar a culpa no meu lugar. A explosão não foi intencional.

— Ela era sua parceira! — briguei. — E você ainda teve a cara de pau de dizer: “Você não fez como eu pedi”?

Ele riu e apoiou a mão no meu ombro, seus dedos estavam anormalmente frios, pude sentir quando roçaram no meu pescoço, pouco abaixo da minha marca de nascença.

— Você está ansioso. — afirmei, ele não disse nada. — Sabe, no início do verão eu fiquei com a vovó e o vovô até ele ser chamado para uma emergência no St. Mungus. Nós passeamos pela ilha e caçamos. Minha avó fez torta de frutas silvestres, meu avô contou histórias. Eu acho que falei sobre isso nas cartas.

— Falou sim, falando nisso, quando for mandar cartas para mim use a Nerus, minha irmã simplesmente ama raptar o Nox quando ele está em casa. — ele deu um tapa na própria testa. — Quer saber, usa ele mesmo, Lisette caça Nerus como se ela fosse uma borboleta.

— Lisette? — franzi as sobrancelhas, ele nunca tinha falado o nome da irmã.

— É. Uma variante de Élisabeth. — ele pulou nos degraus, seu pé escorregou num, mas consegui empurrar suas costas. — Obrigado.

— Não há de que. — desisti de pedir para ele parar de fazer isso. — Fiquei sozinha com a mamãe. — expliquei, apertando seu suéter. — Ela contou histórias de quando ela era pequena.

— E essas histórias não eram felizes? — balancei a cabeça, ele me olhava por cima do ombro. — Que tipo de histórias?

— Sobre as amigas e os amigos dela. Como ela se divertia com a amiga trouxa, implicava com os bruxos. Jogavam quadribol, treinavam feitiços, até mesmo me mostrou a coleção que tinha de cartões dos sapos de chocolate. — suspirei. — Isso até... eu perguntar sobre o papai. Ela contou como o conheceu, como eram seus amigos na época e como eles a traíram, enquanto os leais morreram. Nenhum deles foi no casamento dela, todos tinham se separado.

Eu lembro do olhar dela, seus olhos estavam mais azuis que o normal, ela parecia triste, prestes a chorar. Ficou perdida em lembranças enquanto contava a história, no tempo que tivemos juntas sem a vovó, o resto do dia ela me ignorou, na verdade ela só falou isso comigo durante o verão inteiro. Não me deixou fazer nenhuma pergunta a mais, quando terminou, simplesmente levantou e foi fazer alguma coisa longe de mim, pouco depois a vovó chegou, eu ainda estava digerindo as palavras, mas fingi estar tudo bem. Da mesma maneira que fiz no verão anterior quando a mamãe contou a história sobre os “M”s que temos em nossas mãos.

— Então ela fez você escolher. — Vanni afirmou batendo com os nós dos dedos na costa do quadro. — Escolher entre continuar nossa amiga e nos proteger. — ele atravessou a passagem e me esperou nos degraus da escada.

— Eu fiquei pensando durante uma semana. — confessei olhando-o nos olhos. — Por isso não respondi a sua última carta. Ela chegou uns dias depois da conversa, li e fiquei pensando se valeria a pena. — espirrei colocando a mão no nariz. — Detesto rinite. — ele riu.

— Você prefere sofrer e ser leal a nós de longe que nos ver sofrer, não é? Tenho uma coisa boa: nem se você quisesse eu te largaria, Mimillê. — ele me seguiu enquanto eu descia para o segundo andar. — Ela disse o motivo disso acontecer? A traição ou a morte?

— Se você acertar eu te dou o meu pedaço de torta de abóbora. — pulei para o patamar.

— Hum... Seria.. a maldição que sua bisavó lançou em vocês ao matar um unicórnio? — ele acelerou os passos para ficar do meu lado. — Ela não tem outra desculpa não? Tipo... doenças ou até mesmo o destino? Por que ela é tão obcecada com a maldição? Se fosse a sua avó eu até entenderia, porque era bem recente, mas a sua mãe? — ele parecia indignado e descrente. — Falando nisso, está me devendo.

— Não se preocupa, vai ter amanhã e eu te dou de uma vez.

— É verdade! Amanhã é dia das bruxas! — ele exclamou colocando as mãos na barriga. — Parfait!

— Isso é ‘perfeito’?

— Exactement. — sorriu. — Falando sério agora, você realmente não sabe o motivo da sua mãe...

— Não. Ela simplesmente tem um ódio da vó Rosa, culpa ela por cada coisinha que deu errado em sua vida, ao menos até onde eu sei. Lembro que quando eu era pequena ouvi ela resmungando isso muitas vezes. Falando nisso, não tem uma maneira de descobrir como a maldição começou, acho que seria mais fácil. — comentei.

— Se você fosse uma vidente do passado... Nem as aulas de adivinhação ajudam nisso.

As aulas de adivinhação eram legais, imagens na bola de cristal, estudo do mapa astral, folhas de chá. Alguns descrentes já abandonaram a aula, outros se divertiam um monte, era poucas vezes que eu encontrava uma mensagem com sentido, mas elas aconteciam com certa frequência, o que já era bom o suficiente. A professora Trelawney era assustadora, com o passar das aulas você descobria que ela era meio pirada, de bom coração, esse era o mais importante. Quando as pessoas se interessavam pela aula era ainda melhor, Ian contou que nós teríamos aulas com um professor centauro no quarto ou quinto ano, eu estava animada para que isso acontecesse.

— Falando em aulas que começamos neste ano. Você não tem que ir para a aula de Aitmância? — ele me olhou incrédulo. — O que foi? Elas acontecem às quintas, não é?

— Camillë, eu desisti dessa aula assim que coloquei os pés na sala. O que eu precisar o Derek me ensina depois, mas de maneira nenhuma eu vou voltar para lá. — franzi as sobrancelhas.

— A professora Vector não é legal?

— Ela é, mas... a matéria... é horrível. Na escola trouxa eu já não era muito fã de matemática, quem dirá em Hogwarts. Aprender a propriedade mágica dos números não está na minha lista de coisas para fazer antes de morrer.

Pensando bem, eu acho que minha mãe estudou isso. É, quando perguntei a vovó sobre as aulas extras do terceiro ano ela contou que Aritmância era a favorita da mamãe, o vovô já disse que era melhor para bruxos que fossem trabalhar em bancos mágicos, tipo o Gringotes.

— Agora de tarde tem aula de Aritmância e Estudo dos Trouxas, nem pensar que eu vou participar destas aulas. Meu pai já é nascido trouxa, o que eu tenho que aprender? — ele jogou as mãos para o lado. — É a mesma coisa que ensinar uma pessoa a respirar. — ele pausou vendo minha cara. — O que foi?

— Você é muito exagerado, não é possível. — atravessei o pátio de entrada com ele na minha cola. — Nós vamos para as docas?

— Eu vou avisar a sua avó, encontro você lá. — ele acenou e saiu correndo para o lago, tinha uma grande escadaria até o lugar onde eles guardavam os botes de “boas-vindas”.

As docas era o local mais seguro para conversar com a vovó, até mesmo a caverna em que os botes ancoravam no primeiro dia de aula era usada por casais para encontros, foi meio difícil encontrar um lugar sem muitas pessoas, porque quando eu falava era natural, Gio começou a aprender a linguagem dos sereianos porque ficou curioso e queria conversar sem precisar de um tradutor — eu ocupei esse “cargo” por alguns bons meses, até ele encontrar uma maneira de aprender as palavras. Era engraçado porque agora eu tinha que o corrigir na pronúncia, ele ficava irritado muito fácil, por mais que não mostrasse.

Desci as escadas correndo, eu queria chegar antes da vovó, assim eu teria mais tempo para falar com ela sem o Gio por perto, os degraus eram razoavelmente estreitos o que tornava a minha decisão mais perigosa, quando cheguei na curva usei o impulso para virar segurando na tocha que ficava no corrimão. Descer de dois em dois, estou começando a ter certeza que eu vou cair e as consequências não serão nada bonitas, mas eu não quero parar é emocionante. Meu cabelo voa e bate nos meus ombros com as passadas, a cada salto parece que eu voar sem a vassoura, a sensação de liberdade e adrenalina. Estava quase no final do lance, meu pé escorregou na quina, senti meu corpo cair como se fosse em câmera lenta, me choquei contra algo antes de atingir o chão.

— Ai... — gemi, a pessoa embaixo de mim ofegou. — Ai. — apoiei minhas mãos no chão e ergui meu corpo, era um garoto da Corvinal. — Desculpe, você está bem?

— Acho que sim. — ele se apoiou num cotovelo e passou a mão na parte de trás da cabeça. — Talvez tenha uma concussão, mas nada sério. Você também precisa ir na Ala Hospitalar.

— Phil, você está bem? — um garoto se abaixou perto de nós, os olhos arregalados de preocupação. — Ai caramba, vocês precisam de ajuda? — neguei enquanto tentava achar um jeito melhor de levantar sem causar dor.

— Está tudo bem, obrigada, Brian. — sorri, estendi a mão e ajudei o garoto a se levantar.

— Você está bem mesmo? — Quione perguntou para se assegurar, seus olhos cinzentos procuravam por ferimentos mais sérios em nós.

— Sim, sim. Eu caí no macio. Desculpe por isso, eu tenho que ir. — acenei, mas parei antes de dar o primeiro passo para baixo. — Melhoras!

Consegui manter uma velocidade rápida até a metade do lance, mas depois meu quadril começou a doer, mordi o lábio inferior e desci mancando, segurando o lado direito do corpo com a mão. Acho que aprendi minha lição: não faça coisas perigosas na escada.

Vovó estava me esperando dentro d’água, ela vai de um lado ao outro num instante, sereianos são criaturas tão lindas, por que as pessoas têm medo deles? Eu não entendo isso... Na verdade até entendo, eles são diferentes, tem as cabeças mais chatas e os olhos esbugalhados, os cabelos parecem algas ou tentáculos, seus dentes são afiados — isso quando os tem.

— Oi, vó Yasea! — cumprimentei, ela subiu a cabeça para superfície e sorriu, nadando em zig zag até a beirada, apoiando as mãos sobre madeira velha.

— Merle! Foi rápida, seu amigo disse que estava a caminho.

— Eu queria falar com você antes que ele aparecesse. — ela assentiu. — As minhas marcas de nascença estão estranhas, você falou que eu teria mais tempo se comesse as algas.

— Você tem, menina, não consta o seu nome na vila, não chegou o momento. Você saberá a hora certa. Eu trouxe mais um pacote para você, aqui está. — ela empurrou na minha direção. — Quer saber algo mais?

— Ano passado... Você contou a história do colar, ele pode nos ajudar a entender pedaços da nossa história, não é? Ele tem algum feitiço? Ou alguma maneira de ver o passado? — vovó negou, mergulhou por um momento para respirar e logo se ergueu novamente.

— Esse colar é de proteção, ele tem a nossa magia, ela não é igual ao dos bruxos, por isso você tem que tomar muito cuidado quando usá-la. Nossa magia funciona melhor na água, você pode identificar perigo, mas ele também pode apenas levar você ao seu destino. Se alguém do passado, algum espírito ou fantasma queira falar com você e ele tenha boas intenções, você o encontrará. Twwik não está com você? — perguntou.

— Ele foi com Nox entregar a carta ao vovô, lá em Londres.

— Nunca vi uma criaturinha que gosta tanto de viajar. — ela bateu a cauda na água. — Você queria saber das propriedades do anel por causa de sua família terrestre? — confirmei balançando a cabeça. — Sua criadora tem lhe incomodado, minha criança? Fica tão distante quando ela se afasta...

— Falar com a mamãe é complicado... — sentei cruzando as pernas e colocando a bolsa de algas no meu colo, a saia se molhou, mas não era problema. — Ela não gosta de falar sobre o papai, nem sobre nada além que ela queira dizer alguma coisa.

— Mas você fala com ela?

Franzi as sobrancelhas com a pergunta estranha, eu não entendi.

— Você fala com a sua Brynne, Merle? Você se dirige a ela em suas conversas? Ou... ou Merill realmente fez...

— O que o papai faria? — vovó se afastou do deque e mergulhou, murmurando coisas para si mesma, pude perceber pelas bolhas que subiam, ela estava aflita de alguma forma. — Yasea? — ela emergiu, me encarou silenciosamente antes de começar a falar.

— Há muitos gelos, ele veio até mim carregando você nos braços e contou que faria você crescer longe de sua mãe. Ao menos por um tempo. Ele vinha me visitar de sóis em sóis, de modo que pude ver você crescer bem. Quando você já estava do tamanho de um grindylow, ele contou que jamais conversaria com a sua mãe quando você estivesse por perto. Apenas com Emer. Assim quando você crescesse não conversaria com sua mãe.

É... Era verdade, tentei puxar na memória qualquer conversa que o papai teve com a mamãe, mas só vinham frases pequenas. “Feliz aniversário”, “Obrigado”, “Eu amo você”, “Sentirei sua falta”, papai nunca conversava com a mamãe perto de mim, nem a vovó falava muito. Só quando mostrava alguma coisa ou falava sobre visitar um lugar ou fazer tarefas, a vovó me ensinou a ser educada com a mamãe, mas nunca conversar. Acho que as vezes que falei mais com a mamãe foram naqueles dois momentos que ela conversou comigo nos últimos anos, foi muito mais do que ouvi a vida inteira.

— Eu acho que não falo com a mamãe, então. — realizei.

— Não fique triste com isso, minha filha, você deve, acima de tudo, ficar bem. Tem algum motivo para Merill ter feito essa escolha, por mais errada que ela seja, ele não faria algo sem razão.

Concordei. Olhei para a porta por precaução, Gio ainda não chegou.

— Venha cá. — ela me chamou. — Vamos tentar de novo. — engoli em seco, ainda assim fui para a beira e me ajoelhei, inclinando meu corpo lentamente na direção da água.

Eu não conseguia ver meu reflexo, tudo o que tinha lá era escuridão, plena e perpétua. Se me esforçasse conseguia ver algumas algas, se enroscando, rebobinando, como tentáculos, elas se camuflavam na água, eram distorcidas, borradas. Respirei fundo e fechei os olhos, minhas mãos agarraram a beirada para manter meu corpo no deque, meu nariz tocou a água, senti ela molhando meus lábios, a sensação era boa e certa. Deixei minha franja molhar, desci mais um pouco, só mais um pouquinho.

Vovó tocou minhas bochechas com as mãos úmidas e mucosas, ajudando a imergir, seu toque repentino me assustou e trouxe a sensação de mãos segurando minha nuca e me empurrando para baixo, para o fundo. De repente, eu não conseguia respirar.

Não tinha como respirar, eu estava sem ar, a água entrava em meu nariz e eu gritava, as bolhas saíram de minha boca como um vulcão, eu sentia mão pressionar minhas costas e me empurrar para o fundo, me matar.

Bati contra o piso de madeira enquanto tentava me desvencilhar, seguravam meus braços, fechei os olhos com força e gritei, eu queria ajuda! Eu precisava de ajuda! Alguém estava querendo me matar. Em minha mente eu vi a pele branca sardenta e os cabelos loiros avançando sobre mim.

Engasguei, comecei a tossir desesperadamente, meu coração batia tão alto que conseguia ouvi-lo retumbando nos meus ouvidos, o frio veio e me fez tremer.

— Millè! Mimillê! Camillè! Respire, fica comigo, por favor. Respira fundo. Merlin... o que eu faço? Pensa... Pensa...

Meu peito se expandiu e tossi, virei cuspindo a água que havia entrado. Toquei meu pescoço sentindo a pele repuxar. Encostaram algo na minha boca, meus ouvidos estavam estáticos, o barulho se abafava e era difícil escutar, o que quer que tenham me dado, consegui mastigar e engolir. Aos poucos consegui sentir as farpas do piso encostadas na minha bochecha e arranhando-a, abri os olhos, Gio estava ao meu lado com os olhos fixos no meu peito, Dante estava pouco atrás com os seus tão arregalados que pareciam os de um peixe.

— Você está bem. Você está bem agora. — ele afastou minha franja e beijou minha cabeça, encostando sua testa logo depois. — Não faz mais isso...

Fechei os olhos e respirei fundo, ele continuava sussurrando palavras simples e calmas para me acalmar, falando até em francês de vez em quando, Dante se sentou por perto, puxando-me para ficar em cima de suas pernas.

— Eu estava chegando e ouvi você gritando, você parecia em dor. — Vanni penteava meu cabelo com a ponta dos dedos. — Não foi igual das outras vezes.

— Pânico. — Dante afirmou. — Ela entrou em pânico, isso não foi a hidrofobia, foi alguma coisa mais. Normalmente você entra em choque e fica apavorada, mas dessa vez aconteceu algo mais forte.

Eu só podia concordar, Gio e eu estávamos tentando diminuir o meu medo de água desde que eu encontrei a vovó Yasea  ele segurava minhas mãos e entravamos de pouco em pouco no lago, já tinha conseguido chegar com a água no tornozelo sem problemas, ainda assim isso levou tempo para acontecer. Enquanto isso, a vovó insistiu para que eu tentasse entrar com o rosto de uma vez, passo a passo nós conseguíamos melhorar. Foi... Foi o toque dela. O toque dela me lembrou de algo que aconteceu e me apavorou. Eu senti que ia morrer.

— Está melhor?

— Estou sim. — respondi. — A vovó foi embora?

Gio negou e apontou para o deque, Yasea estava lá, ainda.

— Merle, minha Merle, está tudo bem? Eu não queria fazer isso acontecer...

— Tudo bem, Yasea, vai ficar tudo bem. — ela assentiu.

— Eu tenho que voltar agora, estou agraciada pela conversa. Agradeço também, Iov. — Gio acenou se despedindo, ela sumiu nas águas do lago.

— Como vocês podem entender o que ela fala? — Dante perguntou. — Parece um monte de gritos sem sentido.

— Treinamento. — Giovanni respondeu estendendo a mão para me ajudar a levantar, aceitei.

— Hoje é quinta, não é? Nós temos que ir dormir.

Dante olhou para cada um de nós desacreditado.

— Como vocês podem falar de dormir depois de uma coisa dessas?

— Eu posso falar porque eu preciso, nós precisamos. Temos astronomia mais tarde. — argumentei. — Gio, nós temos que ir para os nossos dormitórios e dormir. Dante, se você quiser...

— Posso acompanhar vocês?

Deixei a boca aberta, não era bem isso que eu estava pensando. Olhei para Gio, então dei de ombros. Cruzei os braços.

— Você se recupera rápido demais, Cami. — ele deu tapinhas no meu ombro e nós fomos para a saída. — O que você viu? — ele sussurrou tão baixo que mal ouvi.

— Como se alguém tivesse tentando me afogar.

— Matar você? Isso é estranho... Eu vou pensar mais depois, acho que você tem algo a discutir com ele. — Gio indicou Dante.

— Ele sabe quase tudo. — suspirei. — Não acho que precise falar algo mais.

— Camil! — gritaram de cima da escada, levantei o olhar, Bianca estava ao lado de Maureann. — Cami! — elas correram. — Você está bem? Está tudo bem?

— É... Eu vou indo. — Gio se despediu, acelerando o passo, Dante o seguiu, por um momento eu estranhei esse fato, mas... talvez eles conversassem, isso seria bom.

Maureann e Bianca me empurraram até Ala Hospitalar, não satisfeitas quando eu disse que estava bem. Elas insistiram ainda mais quando perceberam que eu estava mancando, madame Pomfrey não ficou nada feliz ao saber que eu havia “negligenciado” minha saúde para ficar brincando nas docas. O garoto da Corvinal, quem se não estou enganada é irmão do Brian, estava dormindo numa das macas perto de mim, eu fiquei recostada por um bom tempo ouvindo três pessoas chamarem a minha atenção, Bianca foi a mais branda, eu agradeço muito por ter ela como amiga, principalmente por sua infinita paciência — ela foi a única do dormitório que agiu normalmente comigo apesar de todos os meus esforços para que ela mudasse. Maureann ficou com os olhos fervendo a maior parte do tempo, contou a história inteira de como descobriu sobre o acidente até o momento em que soube que eu ainda estava lá embaixo. Quione havia contado a Sally, que conversou com Bianca, quem esbarrou com Reen.

Por sorte nenhum dos meninos veio ainda aqui, porque se Giovanni ou Dante soubessem a preocupação deles aumentaria um monte e eu ficaria surda o resto da semana. Madame Pomfrey expulsou as meninas de lá para que eu pudesse descansar, se tudo desse certo eu poderia ir para a aula de noite, mas até lá eu ficaria aqui, ela era uma senhora muito gentil com os cabelos já brancos, apesar de parecer séria e ficar muito tempo em seu escritório eu conseguia vê-la como a vovó. As duas eram muito parecidas em personalidade.

— Vai dormir, senhorita, você tem que descansar.

— Sim, senhora. — ela se afastou, eu escorreguei para baixo do lençol e virei de lado, fechando os olhos.

Não consegui ficar quieta até arranjar uma posição confortável, quando o fiz, rezei em sussurros e tratei de esvaziar a mente para dormir. Senti passarem a mão na minha cintura, acariciando com leveza, e depois sussurros na minha orelha, ri baixinho e olhei por cima do ombro, um homem grande e de ombros largos estava do meu lado, falando que o dia já havia amanhecido e era hora de levantar.

Espreguicei bocejando, ele me pegou no colo, eu tentei chutar para ele me soltar, mas fui jogada para o alto, gritei com medo e feliz ao mesmo tempo.

— Nós vamos visitar a vovó, depois ficar brincando na água, tudo bem? — ele me colocou na cadeirinha, exclamei feliz batendo as mãos na mesa, ele sorriu. — Semana que vem nós vamos ver a sua outra vovó, ela vai vir aqui te visitar, sabia? Ela mandou uma cartinha dizendo que está muito ansiosa para ver a netinha dela. — ele bagunçou o meu cabelo, eu não conseguia parar de sorrir, ele tinha o cabelo da mesma cor que o meu, muito, muito enrolado.

— Mil! — gritei, papai ficou triste, mas eu queria muito, muito mesmo.

— Vamos ver o Mil também, amanhã, pode ser?

— Yah!

A porta se abriu, o dia lá fora estava lindo. Corri e girei de braços abertos, meu cabelo voava comigo como uma cortina loira, eu sentia o sol tocando minha pele, as flores estavam abertas e cheirosas, a grama pinicava a sola dos meus pés, mas ela era macia e parecia uma manta verde que ia até lá longe. Olhei para trás e vi a mamãe, ela estava apoiada na porta, seu cabelo grisalho estava trançado e caindo do ombro, suas pernas estavam tremendo, mas ela parecia feliz. Eu sabia que ela estava com medo, eu sabia disso, ela chorou com a titia e o papai ontem, um monte, ela pediu para eles cuidarem de mim, para que eu crescesse feliz e bem. Não queria que a mamãe falasse coisas tristes, mas ela fala isso quando estou longe. Sempre, porque não posso ouvir coisas tristes, o papai falou que coisas tristes são só para adultos, porque eles podem aguentar e seus ouvidos não vão ficar dodóis se ouvir. Eu escutei, meus ouvidos não estão dodóis, preciso ajudar a mamãe.

— Mama! — ela acenou fraco, papai apareceu atrás dela e a abraçou, colocando o queixo em seu ombro.

— Se divirta!

Corri para longe, tive que segurar a saia no alto para não cair, eu precisava chegar na moça que dava medo, ela podia ajudar, eu tinha certeza disso. Ela fazia magia, igual a titia, só que a titia consegue saber o que eu estou pensando, a gente conversa um monte assim. Eu fiquei muito feliz quando ela saiu hoje, ela saiu e eu tive a ideia para ajudar a mamãe, espero que a bruxa da vila ajude.

Bati três vezes na porta, ela abriu sozinha, eu encontrei um corvo de olhos amarelos, ele estava irritado, atrás dele estava a bruxa. Expliquei para ela o que eu ouvi, mas sem falar nada meu, eu não posso contar coisa da família para estranhos, então eu só disse que precisava salvar alguém que estava... “morrendo”, foi isso que eu ouvi.

— Conhece os unicórnios da floresta? — sorri, eu vi um de longe, eram muito bonitos. — Você vai precisar pegar esse potinho. — colocou na minha frente o frasco verde. — E dar o sangue dele para a pessoa que está triste. — ela colocou o dedo nos meus lábios. — Mas você tem que tirar o sangue, ele tem que estar dormindo bem pesado e não pode acordar, tudo bem, criança?

— Tudo. Eu vou fazer como você falou.

— Use isso aqui. — ela colocou uma coisa brilhante na mesa. — Passe no pescoço do unicórnio e tudo dará certo.

— Não vai machucar?

— Não vai não criança, vai só ajudar.

— Tudo bem. Eu vou esperar o unicórnio no vale. — pulei para ficar de pé. — Tem que ser o branco?

— O branco, o dourado não pode não, eles são pequenos demais.

Concordei e saí correndo, eu poderia ajudar a mamãe agora.

Meus pés escorregavam na pedra, a noite era fria, a chegada ainda estava longe. Tinha que encontrá-lo antes que ele o encontrasse. Pulei do barranco e caí rolando na grama, meus braços ficaram aranhados e meu corpo inteiro doeu com o impacto, mas eu já tinha vantagem. As passadas seguintes foram rápidas, o homem de olhos amarelos estava ao lado da criança, pude vê-los a distância, ele segurava a garota nas costas, ela parecia dormir, na realidade eu sabia que ela estava desmaiada, seu cabelo castanho caía em seu rosto como uma cortina.

— Vamos logo. — agarrei sua mão e aparatamos.

Algas subiram se enroscando nos meus braços, deixando-me flutuando embaixo d’água. Minhas pernas se moviam unicamente, juntas pela pele que as transformava em cauda, sentia a água passando pelas aberturas no meu pescoço e costelas, retornando para o lago depois de eu respirar. Um inquieto coro de vozes melodiosas, discutiam sobre algo, a respeito de alguém.

Não conseguia entender o que diziam, eram todos ao mesmo tempo, gritei tentando me soltar, um sereiano apareceu de súbito na minha frente, seus olhos grandes e de cor indefinida me encarando, o cabelo flutuando atrás dele.

— Calada, sereia imunda.


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Notas finais do capítulo

Eu amo sonhos. Alguém tem ideia do que aconteceu?
Neste capítulo descobrimos um pouco mais sobre o Gio, sobre o que aconteceu no último verão e a possível origem da aquafobia da Cami. É... O que será que vai acontecer?
Espero que tenham gostado do capítulo!
Beijos, até o próximo!



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