Folhas Gélidas escrita por Makimoto


Capítulo 1
CAPÍTULO ÚNICO — A Última Folha do Livro;


Notas iniciais do capítulo

Essa oneshot é dedicada à Rachel por ter me inspirado a escrevê-la. ♥



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Há quase uma semana o Santuário vinha experimentando uma estranha sensação de paz. Havia silêncio, tranquilidade, e na maior parte do dia era possível ouvir o som dos pássaros cantando nas árvores próximas. O som agradável do farfalhar das folhas preenchia o ar e o sol se erguia no céu, imponente e soberano, anunciando que aquele seria um dia bonito. E mesmo o vento, que nunca se arriscava a enfrentar a ira dos protetores de Athena, agora soprava por entre as pilastras dos templos antigos e assobiava histórias longínquas sobre guerreiros que ali lutaram e morreram.

No penúltimo templo, um homem se acomodava em sua mesa. Haviam papéis espalhados em cima, bem como alguns livros empilhados, uma vela, apagada, já quase no fim, e um relatório a ser feito. Ele sempre fazia relatórios pela manhã—bem escritos, cuidadosos, sem deixar escapar nenhum detalhe de tudo o que observava no Santuário, desde as movimentações internas, entre os próprios cavaleiros, até tentativas de invasão que tinham início e terminavam sempre na primeira casa.

Se lhe perguntassem sobre o dourado da última casa, da primeira, até sobre a movimentação no salão do Grande Mestre, saberia dar todos os detalhes de tudo o que tinha acontecido. Ele era observador, amante da lógica e do raciocínio, e gostava de ter tudo devidamente notificado. O que o tirava do sério, no entanto, estava um pouco abaixo de sua Morada.

Kardia não aparecia há quase uma semana. Ninguém o via durante o dia, e as poucas informações que tinha conseguido com seus vizinhos era de que ele vinha saindo bem cedo, sem armadura, apenas com as roupas casuais, e só voltava quando já era tarde. Não ousavam questioná-lo, todos conheciam a reputação selvagem do Escorpião, e a única pessoa que normalmente punha freios naquele homem era aquele que agora olhava frustrado para as anotações sobre o movimento do oitavo templo—Dégel.

“Onde aquele idiota se meteu?” perguntou a si mesmo, em voz alta, em um tom de resmungo.

O aquariano era o único que cultivava uma relação confidente com Kardia. No início era devido ao fato de ele ser o único capaz de controlar a queimação biológica no coração do grego, sendo um mago do gelo com habilidades fora do comum, mas com o tempo e convivência constante, Dégel se deu conta de que eles tinham se aproximado muito mais do que ele previu. Um era sempre visto na companhia do outro, partiam sempre juntos para quaisquer que fossem as missões ou tarefas longe do Santuário, e mesmo nos intervalos do treino, quando, como seres humanos que eram, paravam para descansar, costumavam desfrutar da companhia um do outro.

Todas as manhãs, Kardia ia até Aquário. Fosse para cumprimentar o dono, ou importuná-lo, ou simplesmente para dizer que estava vivo. Viver era uma coisa muito incerta pra ele, o que ouvia desde a infância é que sua saúde era muito instável e que poderia morrer a qualquer momento. Por isso o Grande Mestre o obrigava a mantê-los informados sobre sua situação, e a estar sempre perto do aquariano para que eventuais problemas fossem evitados. É claro que Kardia achava tudo isso desnecessário, e muito chato, mas acabou vencido pelo cansaço (e pela “doçura” com a qual a jovem Athena solicitou).

“Já chega” resmungou, batendo na mesa com firmeza e se levantando quase num salto. “Se ele quer ficar por aí nesse estado, sem dar notícia e me deixando preocupado, ele que fique então.”

Caminhou até a estante, dedilhou os livros da prateleira do meio, e pegou um de forma aleatória. Precisava arejar a cabeça, tinha que tirar Kardia de seus pensamentos. Aquele escorpiano audacioso, cheio de si, que sempre se achava coberto de razão e fazia questão de escancarar aquele sorriso irônico e cheio de sarcasmo toda vez que conseguia desconcentrá-lo de seus afazeres. Odiava a forma como ele ocupava sua mente, como, apesar de irritá-lo profundamente, não conseguia não se preocupar. Não conseguia não pensar que, se ele ficasse mal assim, longe dele, podia acabar morrendo. Não conseguia não...

Não.

Ele pediu por isso. Foi ele quem escolheu se distanciar por dias, sem dizer nada, sem sequer pensar que havia alguém preocupado com ele. Alguém que não tinha obrigação nenhuma de pensar nisso, que com certeza tinha muito mais o que fazer, livros pra ler e relatórios para terminar, que perder tempo esperando por alguém que era claramente ingrato e se comportava de maneira irresponsável. Com certeza ia ganhar muito mais usasse esse tempo para malhar seu intelecto.

Baixou o olhar para o título do livro que repousava em suas mãos e os olhos azuis se abriram ligeiramente quando ele se deu conta do título: em letras douradas, cuidadosamente escritas na capa vermelha, havia os dizeres “Maçã Envenenada”.

Maçã.

Seus pensamentos eram tragados de novo na direção de Kardia. Maçã era agora sua marca registrada, ele estava sempre com uma nas mãos, tudo porque o próprio Dégel recomendou que ele comesse mais da fruta pois estudos apontavam que, graças ao alto teor de potássio, fazia bem para o coração. Talvez fosse uma forma de cuidar dele mesmo sem estar por perto, ou garantir as chances de o escorpiano não ter um ataque cardíaco repentino enquanto não estivessem juntos, mas, fosse como fosse, era impossível não associar Kardia à fruta vermelha do pecado.

“Esse cara...” suspirou, arrumando os óculos, um pouco irritado, esboçando ainda que sem querer um sorriso discreto. “Não consegue me deixar em paz nem quando não está aqui.”

O pêndulo do relógio antigo marcava agora onze da noite. O francês lembrou-se que Kardia ainda não tinha chegado e então toda a irritação voltou. O que ele podia estar fazendo, e por tanto tempo, simplesmente não entrava em sua cabeça.

“Deve estar treinando...” disse a si mesmo. Olhou de novo para o relógio e estreitou os olhos. “E é melhor que volte bem mais forte.”

Pôs o livro da maçã de volta na prateleira, coçando a cabeça de forma impaciente enquanto sua mente considerava todas as alternativas que explicassem o sumiço do outro. Treinamento, missão repentina ou apenas capricho. Kardia era desleixado, mas não correria o risco de intensificar seu treinamento sem antes notifica-lo, e o Grande Mestre jamais o enviaria a uma missão sozinho, levando-o a crer que o simples capricho de ver o aquariano irritado fosse a opção mais óbvia. Ou ele podia estar...

“... Se encontrando com alguém.” Murmurou, permitindo que seus pensamentos tomassem forma e escapassem por entre seus lábios gélidos.

Não tinha cogitado essa possibilidade até o momento, mas não era completamente impossível que Kardia estivesse se encontrando com alguém. Ele quase nunca deixava o Santuário, e a sua maneira de agir, bem como o sumiço, eram definitivamente muito suspeitos. Mas por mais que o francês não quisesse pensar nisso, que desejasse eliminar essa ideia da cabeça, agora ela estava plantada em sua mente e não queria sair.

Um sentimento ruim, um aperto no peito, tomou conta de Dégel. Uma angústia profunda começou a cutuca-lo, formigando, coçando, doendo, e a expressão no rosto dele se fechou. Respirou fundo uma vez, retomando o fôlego, tentando pensar racionalmente, mas precisou repetir a ação mais duas ou três vezes para sufocar a vontade que tinha de descarregar a raiva em alguma coisa. Não podia fazer isso, ele era um intelectual, um ser racional, não um animal estúpido que se deixa levar por emoções instintivas. Ele era maior que isso—era o que dizia a si mesmo, tentando se convencer, afim de apaziguar aquela agitação que crescia dentro dele.

Voltou a sentar em sua mesa, apanhando a pena de tinta no intuito de dar um fim ao relatório já previamente iniciado, interrompido infelizmente pelo grego e sua mania de penetrar os pensamentos de Dégel, mas por mais que ele se esforçasse para manter os olhos fixos no papel amarelado de seu diário pessoal, não conseguia prender a mente ali, naquela mesa, naquela tarefa.

De repente ouviu um som vindo do templo de Aquário. De dentro de sua biblioteca pessoal, localizada nos fundos da décima primeira casa, o francês parou tudo o que estava fazendo só para prestar atenção naquele ruído abrupto que, assim como tantas outras coisas naquele dia, o tragaram para fora de seus pensamentos. Ele não precisou esperar muito para que a origem do som, no entanto, aparecesse bem ali, na porta de seus aposentos internos, de cara lavada.

Kardia estava apoiado na porta, de braços cruzados, vestindo seus trajes de viagem—o tecido folgado, as sandálias de couro, e o cachecol vermelho em torno do pescoço. No rosto tinha uma expressão irônica, como de costume, ostentando um sorriso quase de escárnio. Carregava uma bolsa de couro a tiracolo, marrom, de tamanho médio, e ele parecia não estar portando a urna com a armadura de Escorpião nas costas. Os longos e rebeldes cabelos azuis escorriam pelo peito encoberto, os fios pontudos escapando aqui e ali, e ele tinha os olhos fixos no aquariano que agora o encarava totalmente surpreso.

“Eu sabia que você ia sentir minha falta, Pinguim” a voz do escorpiano ecoou pela biblioteca em um tom suave e sedutor. “Mas não precisava ficar me esperando até tão tarde.”

Ele sabia como perturbar o francês, ele sabia que com aquele tom, aquela voz, aquele modo convencido e egocêntrico de falar, fazia o sangue de Dégel ferver. Era isso o que estava acontecendo naquele momento. Desconcertado, mas especialista em disfarçar isso, ele arrumou os olhos, pigarreou para limpar a garganta e voltou sua atenção para a mesa cheia de papéis numa tentativa de fingir que a chegada do outro não lhe perturbava.

“Eu não estava te esperando” retrucou Dégel, visivelmente irritado. “Na verdade, eu nem reparei que você estava fora.”

“Não mesmo?” indagou ele, desencostando da porta e dando alguns passos na direção da mesa onde o outro estava. “Fiquei sabendo que você andou perguntando sobre mim por aí.”

“Apenas porque Athena me pediu” mentiu. “Se você morresse ia ser um problema, a casa de Escorpião não pode ficar vazia.”

Kardia, nesse momento, fingiu ter ficado ofendido. Ele ergueu as sobrancelhas, abriu a boca e pôs as mãos na cintura.

“Como você é cruel...” murmurou, balançando a cabeça negativamente.

O francês voltou os olhos na direção dele quando achou que o outro tivesse desviado, mas Kardia não tinha olhado para nada além dele desde que chegou à biblioteca. Não havia nada ali que lhe despertasse interesse, nenhum livro, nenhum documento, nada além do próprio aquariano e sua mania de bancar o intelectual. Enquanto tudo ao redor o entediava em pouco tempo, Dégel sempre foi um mistério para o grego. Seu modo de ser, suas manias, as coisas que ele acreditava, que ele desejava, aquela mania de querer sempre estar por cima, de esfregar na cara de Kardia suas origens nobres, tudo isso só o trazia mais para perto. Desvendar as nuances da personalidade gélida de Dégel era seu passatempo favorito.

Um silêncio incômodo instalou-se entre os dois—nenhum deles disse nada por quase um minuto.

Kardia então suspirou e deu as costas ao aquariano.

“Não vim aqui te incomodar, Pinguim” disse, virando o rosto para o lado o suficiente para deixar seu perfil à amostra. “Volte para os seus livros que eu voltarei para o meu templo.”

E, quando estava preparado para ir embora, ou fingir fazer isso, só para dar a volta e espionar o outro pela janelinha no fundo da biblioteca, Dégel se levantou da cadeira prontamente. A cabeça ainda estava voltada para baixo, a franja esverdeada cobrindo os olhos escondidos por baixo dos óculos, e as mãos, espalmadas, se apoiavam sobre as folhas de papel espalhadas lá. E esse movimento fez o escorpiano parar.

“Onde você esteve?” indagou, com uma expressão profundamente séria desta vez. “Onde você esteve nos últimos dias, Kardia?”

O grego ia brincar de novo, soltar alguma piadinha para deixar o outro sem graça, mas percebeu o tom de voz sinistro com o qual ele falava. Era louco, selvagem e totalmente despreocupado com a vida, mas sabia que quando o francês falava daquele jeito coisa boa não ia vir.

“Por aí” respondeu, dando de ombros.

“Você estava se encontrando com alguém?” indagou, direto, erguendo os olhos azuis para ele.

Foi aí que Kardia percebeu o que estava acontecendo ali.

“Ah, sim, você me pegou” virou-se de novo para ele, erguendo as mãos como quem se rende, com uma expressão fingida, inocentemente maquiavélica, aquela de quem, no fundo, está se divertindo. “Eu estava com uma garota.”

Uma pontada no peito gélido.

“Isso é verdade?” tornou a repetir, para ter certeza do que faria a seguir.

“É claro, que razão eu teria para—”

O escorpiano foi interrompido com um soco na boca.

Kardia, que não esperava o soco, tombou para trás por causa do impacto e bateu fortemente contra uma estante que estava bem atrás dele. Ele urrou por causa da pancada repentina, a cabeça zumbiu um pouco, e seus olhos se estreitaram imediatamente para o francês que, com muita educação e polidez, arrumava os óculos e assumia a postura anterior novamente.

E que sensação boa foi dar aquele soco. Cada palavra que saía da boca do grego era um número a menos na contagem regressiva de Dégel para cala-lo de uma vez e arrancar aquela expressão de triunfo do rosto dele pelo menos uma vez. Nunca foi dado à violência, pelo contrário, sempre defendeu a ideia de que violência era um artifício primitivo utilizado apenas por pessoas bárbaras, mas naquele momento isso não importava.

Ele estava satisfeito e agora podia voltar a ser quem era.

“Você ficou maluco?!” esbreavejou Kardia, com a mão na boca, de onde escorria um filete de sangue. “O deu deu em você?”

“Isso foi por você ter me deixado esperando por tanto tempo sem nenhuma explicação” respondeu calmamemente. “E eu posso socá-lo uma segunda vez por, sem nenhum remorso, admitir na minha cara que estava com uma mulher.”

“Você entendeu tudo errado, seu idiota...” sim, estava bravo, irritado, e falava em um tom alto.

Mas era quase engraçado imaginar o quão distorcida a situação tinha sido—era irônico, hilário até, e ele nem sabia por onde começar.

O grego suspirou, limpou o sangue e atirou a bolsa de couro para o francês. O segundo, por sua vez, franziu o cenho e apanhou a bolsa, sem entender o que ele pretendia com isso, e abriu-a. Ao colocar a mão lá dentro, sentiu alguma coisa firme lá dentro. Ao retirar o conteúdo, percebeu que era um apanhado de folhas, unidas na lateral por uma frágil e fina fita vermelha, com os dizeres “Dom Quixote de La Mancha” em letras desenhadas.

Dégel ficou totalmente estático.

Ele não folheou o manuscrito, mas era fácil saber que era oficial. Talvez o original. E nem era preciso dizer o quão raro e importante era aquele item. Tratava-se de um livro lançado na década anterior, por um autor espanhol, que ficou muito famoso por retratar uma ficção de cavalaria muito bem ambientada. Era referência mesmo entre os intelectuais, um romance exemplarmente escrito e que agradava os mais variados paladares literários.

E ele estava ali, diante de seus olhos.

“Onde você conseguiu isso?” perguntou, totalmente atônito, sem ser capaz de desgrudar os olhos do livro.

“Com uma garota em Rodório que trabalha em uma livraria velha” respondeu, emburrado, olhando para o outro lado. “Em troca ela me fez prometer que a ajudaria a reformar a loja, levantando e movendo estantes, mesas, esse tipo de coisa...”

Muito a contragosto, Kardia contou a ele como tudo tinha acontecido, que, certo dia, quando passava por lá, entrou na livraria por curiosidade e a garota o atendeu. Conversa vai, conversa vem, e ela lhe falou sobre essa raridade que ela tinha guardada. Seu pai, o dono do lugar, juntou-se a conversa e mencionou sobre aquele exemplar de Dom Quixote que ele tinha conseguido com um colecionador que naquela semana tinha passado pelo vilarejo. O escorpiano não fazia ideia do que se tratava aquele livro, nem a história por trás dele, mas a primeira pessoa que lhe veio à mente foi Dégel.

Como sempre...

“Ele me disse que era o manuscrito original” finalizou a história, coçando a cabeça. “Você parecia tão cansado dos seus livros, tão entediado, que eu achei que isso te deixaria mais animado.”

Dégel ouviu tudo calado. Quanto mais Kardia falava, mais ele ficava surpreso. Isso não era normal, era totalmente inesperado, e o fato de ele ter feito tudo na surdina, sem dizer nada para ninguém, como um cientista maquiavélico a preparar uma nova invenção, é que deixou o francês ainda mais intrigado.

Um sorriso nasceu nos lábios dele—um sorriso genuíno, leve, mas sincero. Kardia pareceu incomodado por um momento, apertando os lábios um no outro em uma expressão infantil de indignação, e foi o suficiente para desarmar o dono do templo. Dégel deixou o livro sobre a mesa por um instante, caminhou na direção do primeiro, o som dos escarpe dourado ecoando ao bater no chão de pedra, e parou bem na frente dele. Sem dizer nada, seus dedos gélidos encontraram a face do maior, puxaram-na com uma delicadeza quase sinistra, e ele pressionou os lábios no canto da boca dele, no exato lugar onde havia ainda uma discreta mancha de sangue.

“Pardon, mon amour, je me suis trompe” soprou ali, com os lábios colados na pele do outro, em sua língua nativa. “Merci pour le cadeau.”

Kardia não fazia ideia do que ele estava dizendo, conhecia apenas algumas palavras em francês por causa da convivência com o aquariano, mas, céus, como gostava daquele sotaque! O modo como as palavras saíam da boca de Dégel quando ele falava francês, a entonação, as consoantes arrastadas, o biquinho—tudo isso excitava o Escorpião.

“O que você disse?” arriscou perguntar.

“Eu disse que senti sua falta.”


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Notas finais do capítulo

Se gostaram, se não gostaram, por favor comentem. o/