Ao terminarem de comer, Dean olhou o relógio e levantou-se, em um pulo:

–- É hora de pegar a estrada –- disse deixando no criado-mudo uma nota.

A declaração só não surpreendeu mais a Sam porque o semblante novamente escurecido e opaco do irmão o havia feito antes. Tudo bem que aquele dali fosse o Dean de todos os dias, mas isso não impedia a dor de socar-lhe o peito cada vez que se dava conta, no aspecto do irmão, do que a vida havia preparado para ambos. Levantou-se e saiu, sem dizer nada.

***

Só Deus podia dizer como ele havia tentado… Nem Deus, para ser sincero, que estava sumido no universo, bem distante de qualquer problema…

Deixei um recado na cabeceira da cama

Disse que não era para repetir os erros de ontem

Mas Dean não podia se dar ao luxo de esquecer como tantas vezes quis, como naquele agora quis mais do que nunca… Não importava: cada tentativa de ceder às possibilidades era uma queda ao abismo, e isso quando ele não empurrava antes aqueles a quem amava… Não. Por que não havia resistido? O que tinha ela de diferente de todas as outras com quem havia se cruzado?

Olhou a cama desarrumada horas antes e pôde rever a silhueta dela montada na sua enquanto faziam amor: um encaixe perfeito. Damm it! Que raio de ligação era aquela?

Teve vontade de lançar as cadeiras a esmo no quarto quebrando tudo o que podia. Contentou-se em socar a parede e ralar os dedos, apenas. Ela chegaria em breve, e seria bom se pensasse que ele havia ido embora sereno, como se não se importasse. Quem sabe ele mesmo não passaria a acreditar nisso?

Bateu a porta do impala com força e saiu cantando pneu. Depois ligou o som do carro bem alto, para não escutar próprios pensamentos.

***

Por mais que ela esperasse uma atitude semelhante da parte dele, não pôde deixar de sentir o corpo estalar em desamparo quando se deu conta do quarto vazio. Deixou-se cair sentada na cama, enquanto brigava com as próprias lágrimas, numa ilusão burra de dignidade, provando qualquer idiotice para o nada. Não tem ninguém aqui, Lavignia, você não precisa fingir. As lágrimas então caíram, ainda que seu rosto permanecesse impassível, sem forças para se contorcer em choro.

Volto de novo

[...], me deito na sua cama

Repito os erros de ontem

Enrolando-se nas cobertas, repassou em mente alguns flashes de sua história, desde o primeiro momento em que havia se encontrado com os irmãos Winchester: Os dois, perseguindo um caso de assassinato de crianças, foram parar na escola onde ela trabalhava, disfarçando-se de recreadores infantis. Eles estavam se apresentando ao trabalho quando ela passava por ali, e a diretora a designou para mostrar a instituição para eles. Dean lançou logo uma cantada barata que a fez revirar os olhos, mas as máscaras caem e ele nunca conseguiria manter aquela pose durante muito tempo...

Resultou que... ah, ela nem conseguia pensar nisso sem sentir uma raiva primitiva de Deus e do mundo... E justamente Dean a salvou de si mesma perdida naquela podridão em que se havia mergulhado... Como não se apaixonar por ele?

O jeito que ele me faz sentir, o jeito que ele me faz sentir

Suspirou outra vez. É claro que Dean iria embora de novo. E tinha esse direito... Lembrou-se da conversa que tiveram mais cedo, ele tentando afastá-la com todos os argumentos plausíveis e racionais. Era quase a mesma conversa de antes ainda, depois do enterro de Lorenzo, quando ela implorou que eles a levassem consigo, que ela aprenderia a caçar, que ela se vingaria do demônio que havia assassinado seu irmão...

Doeu-lhe ali a falta de orgulho e de dignidade, mas ainda não conseguia deixar de ansiar por ele.

Eu daria a minha última moeda para abraçá-lo hoje à noite

Também teria pensado que, da mesma maneira que ele tinha seu direito de ser sensato e racional, tinha seu direito de ser humano e feliz. Teria pensado que ela poderia ser o que ele precisava para se livrar da escuridão que o invadia e reverberava em todo seu corpo... Teria até reunido forças e corrido para seu carro de modo a ir atrás dele, como o fizera, sem se importar com qualquer coisa que fosse menor que o sentimento que guardava.

No entanto, o mesmo frio macabro invadiu o quarto do motel e as luzes piscaram seguidas, anunciando visitas indesejadas. Lavignia correu para o banheiro, fechando a porta com força e tirando, trêmula, de dentro da bolsa um saquinho com sal grosso, colocando-o em volta de si. Em seguida tentou ligar para Dean.

***

–- Seu telefone está tocando, é a Lavignia –- Sam desligou o som, mas Dean voltou a ligá-lo, sem dizer nada ao irmão.

Sam desligou de novo o som, e Dean o ligou de novo, apertando os lábios.

Sam desligou-o de novo, e Dean levou a mão no mesmo segundo para ligar o som outra vez.

Sam desligou-o de novo, aproveitando para arrancar o botão do som e pegar o celular do irmão.

–- Não OUSE a atender esse telefone, Sam!

–- Vou colocá-lo no viva-voz apenas!

Assim que o bip da mensagem foi tocado e Dean escutou a voz vacilante de Lavignia pedindo ajuda, virou o volante do carro com toda força e voltou pelo mesmo caminho por onde tinha vindo.

El[a]é uma parte de mim, agora, el[a] é uma parte de mim