Vivendo uma canção escrita por Dessa_Soliman


Capítulo 18
Say Something


Notas iniciais do capítulo

Net de volta, tudo arco-íris, ai a música acaba com seu bom humor e te enfia em uma cova profunda de depressão.
Baseado em Say Something, A great big world feat Christina Aguilera.
O único parágrafo em itálico é uma frase da música, que combinou bastante, na minha opinião.
18/09/2014



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/541650/chapter/18

Era uma dor diferente. Jack podia dizer que era quase uma dor palpável. Como se ele pudesse retirá-la de seu peito e segurá-la em suas mãos. Sentir a densidade dela. Seu peso. Sua solidez. Se fosse realmente possível, ele gostaria de pegá-la com ambas as mãos e jogá-la fora.

Junto com as memórias. A dor vinha como consequência daquelas lembranças. Era quase como caminhar em uma tênue linha, tendo de manter-se equilibrado. Ao mesmo tempo em que desejava cair para o abismo da morte, ele ainda tentava ficar sobre o fio, segurando-se a uma esperança evanescente.

Uma esperança que também parecia deixá-lo, sobrando somente a dor em seu lugar.

...

— Então, Jack, como se sente hoje? — Era engraçado. Ele pensara, durante a semana, pelo menos três vezes por dia em acabar seu sofrimento.

Começara no sábado de manhã. A gilete escorregou levemente de sua mão, enquanto fazia a barba, e ele sentiu a ardência. Logo encarou o sangue na lâmina e pensou, “por que não?”. Mas não o fez. Terminou sua barba, saiu do banheiro e comeu junto de seus pais e sua irmã mais nova. Assim, tranquilamente, como se não tivesse pensado em matar-se segundos antes.

A segunda fora ao passarem por uma ponte, para irem a casa de uma tia. Ele pensou, “morro ao bater em uma pedra ou afogado?”. Mas, obviamente, não pediu para o pai parar o carro pra testar sua teoria.

E a terceira foi à noite, passando manteiga com uma faca em um pedaço de pão. Ele nem mesmo pensou, somente encarou o fio dela e tentou calcular se ela faria muito estrago na pele de seu pulso. Depois de sábado, pelo menos três vezes por dia ele pensava nisso. E as situações eram semelhantes. O teto da escola, a faca, a gilete, o caminhão descendo a ladeira... Qualquer situação mais perigosa podia ser considerada um suicídio em potencial.

Apertou a mão do psicólogo e deu de ombros, não dando-se ao trabalho de responder. Sua mãe ficou na sala de espera enquanto ele sentava-se no longo sofá, abraçando os joelhos e deitando a cabeça neles. Não é como se ele fosse falar algo muito relevante, de qualquer maneira.

Mas ele olhou para o psicólogo bonito e deu um sorriso, tentando tranquilizar a ambos, mesmo que soubesse que não enganava nenhum dos dois.

— Como está seu relacionamento, doutor? — Ele gostava de ouvir Hiccup falar. Era uma pessoa boa, cheia de vida, ao contrário dele próprio. E era mais o mais velho quem falava que ele próprio.

— Já disse para não me chamar de doutor, Jack. Pode ser Hic. — Jack sorriu. Ele adorava o nome engraçado do seu médico. — E não está muito bem, mas não estamos aqui para falar de mim. — O paciente deu de ombros, escondendo o rosto novamente.

Hiccup podia sentir que ele estava mais depressivo que o normal. Acompanhava o caso de Jack há quase três meses, mas ainda não conseguira nenhum avanço que pudesse realmente aliviá-lo. Era seu caso mais difícil até o momento. Ele quase podia tocar a dor ao olhar aquele adolescente tão doente, mal consigo mesmo. Estava mais magro do que quando começaram e parecia sempre cansado, também.

E, na última consulta, deixara sair, sem querer, a palavra suicídio. Hiccup não queria considerar o caso de Jack tão mal, mas ele estava prestes a pedir que os pais do menino o levassem ao psiquiatra.

— Pelo menos três vezes por dia. — Jack soltou, baixo, quase inaudível. Hiccup, que tirara os óculos brevemente, enquanto pensava sobre o caso, voltou a pô-los, puxando sua caneta para escrever algo que o paciente nunca soubera o que poderia ser.

Será que considerava-o louco? Problemático? Ou será que tinha pena? Ele não queria pena, não de Hiccup.

— O que, Jack? — Hiccup adquirira aquele tom profissional, levemente rouco e baixo, que deixava o menino arrepiado. Ele também passava carinho e conforto, e sempre dava vontade de chorar ao ouvi-lo.

— Eu penso em me matar pelo menos três vezes por dia, Hic, desde sábado. — Ele finalmente voltou seu olhar para o médico, observando-o morder a caneta enquanto tornava-se pensativo. Dos três psicólogos anteriores, Hiccup era o único que o fazia se sentir bem, porque mesmo sendo profissional, ele ainda mostrava seu lado humano.

Narrou como estava se sentindo. Como era horrível acordar de manhã e ir à escola. Como queria deitar e dormir, só dormir, sem sonhos nem sentimentos. Ele queria se livrar da dor a qualquer custo e voltar a viver, como anteriormente, como antes de tudo. Hic, uma vez ou outra, perguntava-lhe algo e estava sempre escrevendo. Sempre.

No final, Jack chorava e não conseguia conter seus próprio soluços. Era toda consulta assim. Ele nunca se sentia melhor, apesar de tudo, e nada do que Hic dissesse parecia lhe ajudar. Ele não via muitas saídas para si mesmo.

Hiccup acompanhou-o até a porta e então chamou sua mãe para conversar. De cabeça baixa, esperou na sala de espera, enquanto eles conversavam dentro da sala do psicólogo.

Jack sabia. Ele o considerava um louco.

...

— Jack, querido, só tente, ok? — Ele acenou, positivamente, caminhando para dentro do consultório. Psiquiatra. Hiccup o mandara para um psiquiatra. Ele não sabia se sentia-se traído, frustrado, magoado ou se simplesmente não sentia nada. Era uma confusão, que parecia misturar-se aos antigos sentimentos.

Saiu do consultório e o médico deixou várias orientações para a mãe, juntamente com alguns remédios. Ele somente dava de ombros para as perguntas, como se elas não o afetassem. E realmente não o faziam. Já não existia partes para serem quebradas dentro de si.

...

— Jack. — Ele nunca pensou em se encontrar com seu médico, ainda mais em uma situação como aquela. Pânico, era essa a palavra certa. A dor dera lugar ao medo e ele pensava seriamente se já não deveria ter morrido.

— Quietinho, Jack. Não vai querer que nos atrapalhem, certo? — Jack sentiu que estava prestes a chorar. A dor estava tão visível em seu rosto que ele ouviu o garoto a sua frente rir.

Ele não fez nada contra eles, porque eles continuavam o infernizando? Sentiu uma mão ao redor de seu pulso, e sabia que não era seu infeliz colega de classe, porque seus olhos ainda estavam grudados nele.

— Está tudo bem, Jack?

— Estamos só conversando. Ele está bem. — Jack encarou o rosto de Hiccup. Ele sabia que tinha uma expressão aterrorizada, ele via isso no olhar de seu médico. Por segundos, ele pensou em berrar, em pedir ajuda, socorro, ou simplesmente correr, mas ficou encarando o mais velho com um terror genuíno.

— Eu estou falando com Jack, não com você, garoto. — Jack nunca ouvira aquele tom de voz no médico. Era raivoso, ao mesmo tempo que possuía preocupação. Ainda o encarava quando Hic passou o braço ao seu redor, sussurrando que o levaria para casa.

Jack agradeceu e acompanhou o outro de bom grado, mas encolheu-se todo ao ouvir o berro, em meio a todo o shopping:

­— Vejo você na escola, bichinha. — E então Hic aumentava o passo e se afastava com ele, levando-o para seu carro e dirigindo, quase a alta velocidade, para a casa do paciente.

...

— Como estamos hoje, Jack? — Hiccup nunca o forçou a falar sobre aquele assunto. Dois meses depois, e eles ainda não haviam comentado sobre o que acontecera.

Aquela linha tênue e evanescente que Jack caminhava antes tornara-se fixa e sólida. Ele tinha arranjado um pouco mais de esperança a cada dia que ia ver Hiccup. E os remédios realmente estavam ajudando-o. Ele quase nem se importava mais com o que os idiotas que estudavam consigo diziam ao seu respeito e sobre o acontecimento. E ele criara um círculo de amigos, também.

E essas notícias boas passaram a povoar suas consultas. Não era mais somente a depressão e o suicídio. Até mesmo essas ideias haviam o abandonado, lentamente, mesmo que às vezes ainda tivesse uma recaída.

— Bem, e você, Hic? — Não era só isso. Existia outro motivo para seu progresso rápido. Ele se apaixonara novamente. E dessa vez sabia que era melhor que a última, que não ia terminar da forma horrível que terminara.

— Estou melhor ao ver seu progresso, Jack. — Corou. Ele sentia-se sempre pressionado na presença do médico. A dor quase não existia mais, mas ela aparecia na presença do outro, porque apesar de ser sua esperança, ainda assim sabia que não havia possibilidade para algo ocorrer.

...

Apesar de nunca imaginar, novamente, encontrar seu médico tão casualmente assim, ali estava ele, logo a sua frente. Porém, Hiccup não o via. Ele só tinha olhos para a garota loira a sua frente. Ela era bonita, a tal namorada do psicólogo.

Jack sorriu com a cena, mesmo que seu sorriso só mostrasse dor. Sand, seu amigo, encarou-o preocupado com a súbita mudança de humor. Ele segurou na sua mão e pediu o que aconteceu, mas o garoto não prestava atenção no amigo. Ele só tinha olhos para seu médico.

E ele levou a mão ao rosto, para coçar os olhos e pedir desculpas a Sand, fingindo não ser nada. Mas ele sentiu sua mão molhada. Ele estava chorando. Quando foi que começara a chorar?

Olhou para cima novamente e Hiccup o vira. Ele o vira chorando, novamente. Deu uma desculpa desajeitada para Sand e correu para fora do shopping, o mais rápido que conseguia. Logo ele estava em casa, e a única coisa que podia fazer era deixar a dor alastrasse por seu corpo. Trancou-se em seu quarto e passou a chorar descompassadamente, ouvindo seus próprios soluços quebrarem o silêncio mórbido do ambiente.

Ele não saiu de seu quarto nos próximos dias. E negou-se a ver Hiccup novamente.

...

Ele sentia que voltava a caminhar sobre um fio fino. Não tinha quase nada de equilíbrio dessa vez, porém. Voltara as aulas quando seus pais externaram suas preocupações e tratou de fingir que estava normal. Mas ele se quebrara novamente. O pouco que reconstruíra com extremo esforço fora destruído brutalmente.

Ele aprendeu a lição. Não podia se apoiar em falsas esperanças. E mesmo que ele tivesse convicção de que nunca poderia ser amado de volta, ainda assim ele se agarrara a fantasia.

Pisou na faixa e deu dois passos. Ele não ouviu as pessoas berrarem. Ele não ouviu a buzina. E ele não sentiu dor. Não mais.

...

Hic ficou por último, junto com os pais de Jack e a pequena menina, que vez ou outra pedia porque estavam enterrando seu irmão. Ele ainda encarava a terra fofa que tapava o caixão, que escondia o corpo morto de seu paciente. Duas semanas, apenas duas semanas que se viram em seu escritório – e pouco menos do encontro súbito no shopping, quando o outro fugira em meio as lágrimas – e tudo aquilo acontecia. Jack estava indo tão bem antes daquilo.

Mal os pais dele saíram do cemitério, após algumas palavras de conforto, e Hiccup caía de joelhos, deixando-se chorar. Ele tinha vontade de xingar Jack por sua irresponsabilidade, por ser tão idiota. Era só ter dito. O psicólogo já tinha entendido a situação, só queria que o mais novo tomasse uma atitude.

Era seu paciente, não podia desenvolver aquele sentimento doentio por seu paciente. E desenvolvera. Quebrara sua conduta médica e se envolvera emocionalmente com Jack.

Me desculpe por não ter conseguido chegar até você, Jack. — Ele tentou recompor-se. Era um dia frio. Um dia que combinava com o paciente. — Então, adeus... Eu também te amei. — Levantou-se, ainda meio sem forças e caminhou para fora do lugar, as lágrimas não cessando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Se um dia eu parar de postar, subitamente, quero que saibam que foi porque eu morri de depressão. Deveria ser crime essa tristeza toda.
Enfim, eu ia trabalhar com uma linha diferente, com Jack sendo guardião e tals, e Hiccup uma criança parecida com a do vídeo. Mas então, do nada, baixou o santo e eu achei o fio solto que eu estava procurando.
Eu gostei.
Foi tão natural quanto o último capítulo. Apesar da depressão toda.
Depois da ter tido a ideia, foi super fácil escrever.
Enfim, até amanhã.