Tudo que ele não tem escrita por , Lis


Capítulo 24
Vinte e dois - Matheus


Notas iniciais do capítulo

Olá! ♥ bem, aqui estou eu novamente com um capítulo bem grande pra vocês hahahaha Matheus me fez ficar inspirada dessa vez e acabei escrevendo demais.

Enfim, deixo aqui meu agradecimento especial pelos comentários maravilhosos ♥ vocês não sabem o quanto isso me ajuda. Bom, espero que gostem e boa leitura, gente!



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I N C O M P R E E N D I D O

 

(s.m. Indivíduo que não consegue ser compreendido; sujeito que não consegue o reconhecimento de suas qualidades ou de seus valores)

 

Foram mais de dez relatos.

Porra.

Mais de dez relatos de meninas assediadas moralmente ou/e fisicamente por Theo na escola. A maioria casos em que a vítima teve medo do julgamento dos outros para denunciar ou teve o assédio normalizado com um "isso não foi nada demais".

Anna passou uma boa parte da segunda feira só ouvindo sobre isso. Enquanto eu estava levando sermão e assinando ocorrência na diretoria, minha parceira de dança reuniu garotas de praticamente toda a escola em poucos minutos, apenas para conversar sobre um tabu que quase sempre acontece e quase nunca é discuto: assédio.

Quando enfim fiquei livre da burocracia do diretor e das aulas tediosas do dia, fomos direto para a Terra da Sobriedade, uma vez que, mesmo com o fim do trabalho comunitário, continuamos com o voluntariado. No caminho, ela só ficou contando disso com uma voz animada, parecendo uma maldita Mulher Maravilha brasileira que iria resolver todos os problemas do mundo. A ideia de conversar com outras garotas sobre Theo foi incrível e só de ver o sorriso de canto que ela dava, eu sentia um orgulho do caralho pela aquela garota e todas as coisas fodas que ela representava.

— Você vai babar desse jeito - murmura uma voz no meu ouvido e eu me viro para ver Helô soltar uma risada alta. - Todos já sabem que você gosta dela, Matt. Na verdade, acho que a própria Anna sabe disso. Mas não precisa secar a garota, .

Reviro os olhos e rio, desviando mais uma vez o olhar de Anna para encarar Heloísa.

— Falou a garota que ficava secando Anna a cada dez segundos depois que a conheceu.

Ela dá de ombros, o gesto fazendo a alça da camisa cair no ombro direito. Hoje Helô vestia uma blusa multicolorida que destacava o roxo dos cabelos.

— Pelo menos eu sei ser sutil, riquinho.

Gargalho. Sutileza e Heloísa na mesma frase? Impossível!

— Não, não sabe - ressaltei - Sem mentiras, Helô.

Ela sorri e se aconchega no sofá ao meu lado, dirigindo o olhar para o mesmo ponto que eu encarava. Mais uma vez, Anna e Yago estão envolvidos em uma partida de xadrez e ouço um xingamento do garoto quando ele perde pela terceira vez consecutiva.

— Pelo menos eu tinha coragem de dizer o que eu queria e não ficava enrolando que nem você. - ergo as sobrancelhas para a provocação e Helô ri ainda mais - Mas vocês estão juntos agora, não estão? Acho que isso que importa.

— Mas como você...

— Ora, Matheus, eu não sou idiota! - sorri - Só pela ausência de mágoa no olhar da Anna já dá pra sacar. Aquela garota não querendo te bater é um milagre.

Sorrio para a "ausência de mágoa" e faço uma careta quando meu olho direito lateja com dor. Ainda estava roxo, apesar do gelo.

— Ah, mas ela ainda quer me bater na maioria das vezes - digo rindo ao me lembrar do tapa de hoje - Isso provavelmente não vai mudar tão cedo.

— Não acredito que perdi minhas chances - ela lamenta - Sou mil vezes Helanna.

Acompanho seu riso e suspiro relembrando todos os momentos de hoje. De como eu queria realmente matar Theo só por causa daquelas palavras de merda. A fúria que me tomou quando ele falou da Anna... Balanço a cabeça, tentando esquecer. Aquele cara precisava ser preso. Logo.

Volto a olhar Anna e Yago envolvidos no xadrez e depois fito Pedro sentado ao lado de Gisele no tapete azul felpudo. Ela tinha recebido alta naquela manhã, logo após ter uma conversa com Grazi sobre relacionamento abusivo e os motivos para denunciar seu ex para a polícia. Apesar dos machucados e do olhar parado, vejo o leve riso que ela solta ao reagir para as piadas que Pedro diz.

— Como ela está? - pergunto em voz baixa pra Helô, a qual acompanha meu olhar. Os olhos castanhos, antes divertidos, agora refletem seriedade.

— Melhorando fisicamente - responde, deitando a cabeça em meu ombro - E levando um dia após o outro no psicológico, como todos nós.

Olho a expressão preocupada em seu rosto e ficamos em silêncio por um tempo. Depois de alguns minutos, o xadrez finalmente termina (com vitória total de Anna) e ela e Yago se jogam no sofá ao nosso lado também silenciosos. Na realidade, é um silêncio confortável... Como se tivéssemos feito algum tipo de pacto mútuo.

— Vocês já assistiram Clube dos Cinco? - a pergunta de Helô é dita em voz baixa depois de algum tempo. O sorriso acompanhando o fim da sua fala - É um filme adolescente antigo que eu assistia as vezes na casa de uma vizinha e bom... Eu simplesmente adorava. Basicamente conta a história de cinco pessoas que ficam em detenção, cada uma diferente da outra e típicas do colegial: a patricinha, a estranha, o nerd, o bad boy e o atleta. A coisa é que eles não são tão diferentes quanto pensavam, mas na verdade  incompreendidos.

Anna ergue as sobrancelhas e eu noto seu olhar curioso.

— Está nos comparando ao Clube dos Cinco? - questiona.

— Óbvio! - Helô responde rindo - Na verdade, acho que todo mundo é um pouco como Clube dos Cinco. Somos totalmente diferentes um dos outros  e, por isso, geralmente incompreendidos. Mas se nos juntarmos, vamos ver que temos mais coisas em comum do que imaginamos - seu olhar se dirige a mim e a Anna - Eu sou de um mundo totalmente diferente de vocês, saca? E por isso sempre pensei que vocês riquinhos eram esnobes demais, viviam uma vida boa demais para ligarem para alguém como eu.

— Nós não somos... - tento interromper, mas Heloísa me lança um olhar confuso.

—  Em comparação a mim, vocês são. - fala - Só que eu percebi que estava errada no meu julgamento. Vocês são mais legais do que eu esperava e não me olham diferente só porque já consumi algum tipo de droga. Suas vidas não são perfeitas porque a de ninguém é. E podemos sim nos compreender se deixarmos a mente aberta pra isso.

Uau.

— Concordo - digo e ergo as sobrancelhas - Belo discurso, Helô. Acho que foi a primeira vez que eu te ouvi falar sem soltar nenhum palavrão.

Ela ri e os outros ao meu lado concordam rindo também.

— Então eu tenho uma ideia do caralho! - fala Helô com um sorriso enorme - Vamos criar o nosso próprio clube! Tudo bem que vai ser um clube dos seis, mas a gente pode trocar o nome para Clube dos Incompreendidos.

Noto Pedro e Gisele se aproximarem da gente, introduzindo-se gradativamente na ideia de um clube. Olho pra Anna que ainda está com um olhar que expressa curiosidade, mas com um sorriso tímido no canto da boca. Já Yago olha Heloísa como se ela fosse uma deusa que acabou de ter a ideia pra criar um mundo.

— Tudo bem - respondo.

— Eu topo - Yago comunica e todos assentem em concordância, rindo quando Helô solta um gritinho e nos puxa todos juntos para o tapete  felpudo. Logo, formamos um círculo semelhante ao Círculo terapêutico. Helô ao meu lado direito e Anna do esquerdo.

— Ia ser mais do caralho se tivesse alguma bebida no meio  - diz Helô distraidamente e ri de novo quando Pedro faz uma careta - Deixamos essa parte pra quando sairmos daqui. Bem... Lancem uma pergunta ou desabafo na rodinha e cada um deve comentar sobre. Vamos nos compreender,  pessoal!

Rio porque ela está tão animada quanto uma bêbada,  mesmo não tendo bebido. Anna analisa Helô por um momento.

— Você está parecendo uma psicóloga - comenta e pisca por um segundo - Você já pensou no que quer ser, Helô?

A pergunta causa surpresa no rosto de Helô, mas ela logo sorri enquanto se abraça em uma das almofadas grandes que estão espalhadas pelo chão.

— Antes de eu vim pra cá, tinha vezes que eu pensei que nunca teria a chance... Chance de tentar, sabe? Eu não terminei a escola. O pouco que eu sei vem de uns livros que uma colega minha roubava da biblioteca do colégio. Eu só sabia ler isso e desenhar- ri consigo mesma, contornando com os dedos a fênix desenhada em sua coxa - Mas agora é diferente. Meu irmão conseguiu estudar mesmo levando a mesma vida fodida que eu levei. Ele já está tentando tirar minha mãe de casa e a convenceu a denunciar as agressões do meu pai pra polícia. Ele está fazendo a diferença. E é isso que eu quero, sabe? Fazer a diferença. Talvez com a pintura... Talvez... - seu olhar volta-se pra Anna mais uma vez - Acha mesmo que levo jeito pra ajudar alguém com a psicologia? Acha que alguém com a vida de merda que eu tive...

— Talvez exatamente pela vida de merda que teve, você consiga compreender e orientar melhor do que qualquer um - digo no lugar de Anna e a minha parceira de dança concorda com um leve balançar de cabeça - Você seria uma psicóloga foda, Helô!

— Tão boa quanto a Angela — Yago concorda e olha para os dois lados rindo - Que ela não me ouça.

Noto Heloísa abraçar com mais força a almofada vermelha e seu sorriso se estender. Nesse momento percebo que gosto pra caralho desse clube dos incompreendidos.

— Valeu - responde baixinho. - Mas e vocês, hein? Não vale todo mundo ficar calado.

Penso por um instante na pergunta porque, na realidade, eu nunca parei para analisar isso direito. É irônico porque no ensino médio há uma imposição para que isso seja feito: escolha um curso, faça ele em uma boa faculdade e seja bem sucedido. Ninguém nunca pergunta se você está preparado ou está bem psicologicamente pra isso, apenas nos obrigam a seguir esse padrão que, muitas vezes, acaba com gente ansiosa, depressiva ou vivendo com um emprego de merda que jamais quis. Assim, com toda a confusão que eu me meti por causa da aposta e por estar fodido com as minhas notas da escola, não me incomodei em seguir o que o povo mandava e, assim, nunca escolhi propriamente um curso. Para quê escolher um se o pessoal acreditava que eu nem ia passar de ano, não é mesmo?

Mas agora... Bem, agora as coisas estão diferentes.

— Eu gosto de Ciências da Computação - Yago é o primeiro a falar com um dar de ombros - Era o curso que eu estava fazendo e eu tranquei porque minha mãe me obrigou a vim pra cá. Confesso que antes não era o curso que eu escolhi pra vida, mas eu comecei a gostar aos poucos... E bom, pretendo voltar pra ele e mexer muito com programação e tal, talvez criar um jogo.

Helô ri enquanto solta um gritinho de "nerd". Olho Gisele encarar Pedro por um instante, como se decidissem a vez de ir e então, Anna resolve o conflito com a sua fala:

— Muita gente não sabe - diz em voz baixa com um sorriso contido - Mas desde pequena... Bem, eu tenho esse sonho de ser engenheira ou arquiteta. Se pudesse, fazia até as duas coisas. Sempre achei fantástico olhar a cidade de um topo de algum local e achar que estou na beira do mundo. É uma coisa louca, eu sei. Mas...

— É legal - Yago completa, surpreso - Até que enfim achei mais alguém de exatas por aqui!

O grupo ri e eu observo minha parceira de dança enrolar uma mexa de cabelo no dedo distraidamente, como se estivesse pensando nos rumos do futuro.

—  A única pessoa que eu conhecia que tinha a mesma visão que eu era minha mãe. Ela queria engenharia civil também, mas foi obrigada a mudar de curso porque o pai dela obrigou. Naquela época a engenharia era um "campo masculino demais" - ela faz uma careta enquanto expressa aspas com o dedo - Meu sonho seria construir um lar de verdade para todo mundo. Um local incrível para as crianças de rua ou para as pessoas em déficit de moradia. Um projeto maravilhoso para ajudar a melhorar as condições de algumas casas nas periferias. Eu quero ter esse poder concreto de construção, sabe? Uma coisa que, infelizmente, minha mãe não teve.

— Mas você não deve seguir essa carreira só por causa da sua mãe - o sussurro de Gisele me surpreende e e eu ergo o olhar para encontrar seus olhos sérios - Não devemos fazer nada só pra agradar alguém.

Sei que a última frase também  tem relação com seu período de recuperação pós relacionamento abusivo e por um momento quero aplaudir essa garota pela afirmação, por estar aos poucos compreendendo o poder que tem em si mesma.

— Verdade - respondo e encaro os olhos tão semelhantes a uma tempestade - Tenho certeza que sua mãe iria se orgulhar de qualquer profissão que você  escolhesse, mesmo não sendo a continuação do sonho dela, Anna.

Nosso olhar mútuo perdura por um momento porque tocar no ponto da mãe dela ainda é uma questão delicada para nós, mas o sorriso de canto que ela expressa faz valer a pena.

— Sim, ela iria. Só que não é só por ela, é algo que vem de dentro de mim também. - Anna dá de ombros - É estranho explicar.

— Você seria uma engenheira ou arquiteta fodástica, Branca — murmuro baixinho e ela ri, as bochechas ficando levemente rubras. - Sério mesmo.

— Obrigada,  Matheus. - ela sussurra de volta.

E eu me surpreendo porque eu não sabia dessa sua escolha. Eu sabia que ela era boa pra caralho em exatas, nunca vi alguém ser tão tão boa em física como Anna. Porém a verdade é que ela era boa em tudo e pra mim qualquer coisa que ela optasse... Ela seria incrível. Sempre.

Agora consigo enxergá-la na engenharia ou até mesmo na arquitetura, coordenando tudo e fazendo projetos complicados para todos e simples pra ela. Mesmo achando que já sei muita coisa sobre Anna, acho que ainda tem tanta coisa a mais que eu poderia descobrir... E assim percebo que o mistério ainda a rodeia.

Porque mesmo com tudo que vivemos até agora, Anna Clara Bennet ainda continuava sendo meu mistério. Meu mistério particular favorito.

E eu gostava disso.

— Uou, se perdeu aí, riquinho? - Helô me cutuca e eu sorrio, desviando o olhar de Anna por um momento.

— Eu acho...Bom, - começo, analisando minhas opções - Eu acho que eu não sei o que eu quero.

Anna ergue as sobrancelhas e Pedro me encara surpreso.

— Sério, cara?

Franzo a testa, encostando-me na parede atrás de mim.

— Por que a surpresa?

Anna ri enquanto me olha e eu fico cada vez mais confuso.

— Eu acho que muita gente tem vários perfis de profissão pra você, Matheus - diz, sorrindo - Aliás, é estranho ver o maior atleta estadual de natação sem saber o que fazer depois do ensino médio.

— Pois é, eu imaginei tipo as olimpíadas - Pedro comenta,  fazendo todos rirem e concordarem.

Rio também pela ironia da coisa, analisando os rostos de cada um ali que acreditavam piamente que a natação seria o destino da minha vida.

— Eu não sou tão bom assim...

— Você é incrível! Eu já vi gente comentando sobre o seu tempo na piscina, Matt! - Yago responde - Eu já teria morrido afogado se tentasse algo parecido, sabia?

— Sim! Já ouvi uns amigos meus comentarem também - Pedro me analisa por um tempo - Você realmente nao quer isso?

Eu quero isso? Tentar superar meus limites na água por toda a minha vida?

Olho pra Anna antes de pensar na resposta e vejo que seu rosto ficou mais sério de repente, como se ela começasse a compreender que nadar não é tudo isso pra mim. Não mais. Depois do meu pai, a natação se tornou uma fuga boa, que deixava meus músculos queimarem, minha cabeça doer e me fazia esquecer das coisas importantes. Mas depois que voltei a dançar com ela aos poucos, eu percebi que eu não precisava quase me matar para fugir dos pensamentos caóticos.

Na realidade, a dança, a qual sempre me fez lembrar do meu pai de uma maneira insuportável, agora voltou a ser algo natural e bom pra mim.

Então nãoNão é na natação que eu me vejo pelo resto da minha vida.

— Acho que vou deixar isso para o próximo César Cielo*, cara. - respondo para Pedro, ainda encarando Anna.

— E a dança? - a pergunta surpreendentemente  vem de Helô e eu fecho os olhos por um momento.

E a dança, Matt? Hein?

Sinto os dedos de Anna passearem pela pele do meu braço esquerdo discretamente até ela entrelaçar a mão com a minha e apertar firme. A verdade é que quando eu era pequeno e vi meu pai deixar a empresa da família nas mãos da minha mãe para investir na dança, caramba... Achei aquilo fantástico! Ele era incrível como empresário, mas tornar a música sua profissão foi de longe sua melhor ideia. A dança de salão era sua arte e minha mãe era sua musa. E eu, o garotinho no auge dos seis anos de idade, também pensei que minha vida seria assim, mergulhada na dança.

Porém...

— Seu pai era dançarino, não era? - murmura Gisele com um sorriso discreto - Quando eu era mais nova eu vi uma matéria sobre ele na televisão.

— Sim, ele era. - respondo, também em voz baixa.

Os olhos castanhos de Gisele se arregalam levemente.

— Sinto muito, Matt. Eu não...

Os dedos da minha parceira de dança apertam minha mão esquerda de novo e eu dou de ombros, sorrindo pra garota loira sentada a minha frente.

— Está tudo bem. - digo - É só que não sei se a dança é pra mim uma profissão como era pra meu pai. Eu adoro esse mundo, mas ao mesmo tempo...

— Seu pai iria se orgulhar de qualquer coisa que você escolher - Anna pisca pra mim, parafraseando as palavras que eu disse pra ela há alguns minutos atrás  - Tenho certeza disso.

— Sim! E tudo bem não escolher de cara o que você quer - Pedro diz e eu me surpreendo com o quão ele está falante de uns tempos pra cá - Eu mesmo já troquei de curso um monte de vezes e ainda não tenho certeza do que quero pra mim. Na verdade, ainda não sei se conseguirei sair...

— Pedro. - o nome é um sussurro na voz de Gisele. Uma espécie de ajuda mútua entre os dois que me faz querer sorrir.

— Certo. Eu ainda tenho alguns receios, mas mesmo quando eu sair daqui - ele frisa a frase como se estivesse reafirmando pra si mesmo - Ainda não sei o que irei fazer.

— Nem eu - completa Gisele com um dar de ombros. Uma sombra ultrapassa seus olhos quando ela completa: - Não pensei que teria chances para pensar sobre isso.

— Mas você tem! - retoma Helô, realmente parecendo uma psicóloga sorridente - Todos temos.

Todos assentem e conversam sobre besteiras por algum tempo, descobrindo mais uns sobre os outros e, aos poucos, tornando-nos os incompreendidos que surpreendentemente se compreendem. Por fim, Helô se levanta do chão e pede um momento da atenção de todos.

Noto seu olhar recair sobre mim instantaneamente. Ah, não.

— Ah, sim, Matt! - ela fala, respondendo aos meus pensamentos - Independente de ser ou não sua futura profissão,  não podemos desperdiçar  a chance de dançar com um dançarino presente.

— Você sabe que não podemos colocar música em um volume alto aqui...

— Seu celular não é tão alto assim - ela me interrompe e eu arregalo os olhos quando vejo o aparelho na sua mão direita. Helô ri - Eu tenho alguns truques na manga, riquinho. Quem mandou dar bobeira?

Rio também, balançando a cabeça descrente.

— Você realmente vai me fazer dançar aqui?

Helô gargalha ainda mais, enquanto prende os cabelos em um coque e joga o celular pra mim a fim de que eu digite  a senha.

— Você? Eu quero que todos dancem! - declara, puxando Yago pelo braço - Vamos lá, bando de sedentários!

Com reclamações e xingamentos, o grupo se levanta do chão e se posiciona. Anna solta o casaco da cintura e joga no sofá, rindo quando eu puxo sua cintura pra perto e a faço rodar ao som de Love Never Felt so Good do Michael Jackson.

No começo, cada um tem um par formado, Helô quase fazendo um Yago "robótico"  surtar ao rebolar até o chão, além de  Gisele e Pedro totalmente tímidos um com o outro. Porém, logo todos se soltam, tornando-se a dança mais maluca e boa que já dancei na vida.

Uma dança de liberdade e, olhando para o riso de Gisele, Pedro, Yago, Helô e principalmente Anna, uma dancei de superação.

***

— Eu vi seu olhar quando estávamos falando da natação - é a primeira coisa que Anna diz quando chegamos na sala de funcionários da instituição, completamente vazia.

Ergo as sobrancelhas enquanto encaro a camisa preta molhada de suor que grudava em seu corpo. O tempo de dança maluca havia acabado há alguns minutos e Helô tinha declaro aquilo  como um dos melhores momentos da sua vida. Pensei que depois de tudo aquilo, a conversa sobre futuro tinha ficado esquecida.

— Nunca tinha notado que nadar pudesse ser algo ruim pra você - ela completa baixinho.

Seus olhos cinzentos se voltam para os meus e eu simplesmente não sei como encará-la. Como falar que, em alguns momentos da natação, eu não queria voltar à superfície? Fecho a porta do armário depois de pegar a minha bolsa e enconsto a testa no metal frio.

— Nadar não é realmente ruim... - respondo depois de um tempo - O ruim é o modo como eu faço isso.

— Matheus... - ouço seus pés se aproximarem de mim.

— Todos aqueles prêmios, os tempos cada vez menores em piscinas cada vez maiores... Tudo isso nunca foi para ganhar um título estadual. - falo baixinho - Faz um tempão que meu pai morreu, mas eu ainda sou um covarde, Anna. Eu não superei. E eu ficava fazendo isso... Tentava a todo instante superar meus limites na água pra não sentir essa dor. Para simplesmente não sentir nada.

A dimensão de quão grande é aquilo faz meu peito apertar, como se eu de repente tivesse voltado pra debaixo d'água.

— E então eu só nadava e nadava. Eu não queria nunca voltar à superfície. Houve momentos que eu não queria mais respirar e eu...

Sinto seus dedos deslizarem pela minhas costas e meus punhos se prendem ainda mais no metal frio do armário. Não posso sair daquiNão posso desabar. As mãos fazem o caminho da minha nuca pela minha coluna vertebral até a cintura, onde Anna prende os braços fortemente em mim, quase como se fosse meu alicerce.

— Mas você pode respirar agora - ela diz - E você não é covarde, Matheus. Não é. Cada um lida de maneira diferente com a dor. O importante mesmo é nunca deixar essa dor te vencer.

— Mas eu...

— E você não deixou - ela me interrompe, passando os dedos pelo meu peito e de alguma forma me fazendo respirar - Você voltou a superfície. Você respirou. E você está aqui comigo agora. E isso nunca vai ser motivo pra covardia, me ouviu? Nunca.

Respiro fundo e sei que meus olhos estão molhados depois daquilo. Suas mãos se apoiam no meu quadril e sinto sua testa repousar nas minhas costas quando ela respira fundo também. Depois de algum tempo naquela posição, sua voz soa na sala:

— Você vai virar ou eu vou vou ficar aqui cheirando o seu suor? - ela questiona baixinho, fazendo-me rir em um momento totalmente inoportuno.

Anna me solta do abraço para que eu possa olhá-la e o sorriso que eu encontro em seu rosto é incrível. Cristo. Aquela garota era incrível.

— Sabe, é a segunda vez que você me vê chorar - falo, enxugando o rosto e bagunçando o cabelo com as mãos. Tento tirar toda aquela sensação de mim e encaro indecentemente os seus lábios rosados - Acho que eu preciso fazer alguma coisa para provar a minha masculinidade.

Ela nota meu sorriso malicioso e abre  um em reflexo no seu rosto.

— Ah, a frágil masculinidade dos homens - comenta, revirando os olhos - Sabemos que você não liga porra nenhuma para isso, Matheus. Você só quer me beijar.

Rio, puxando os seus braços para voltarem para meu quadril e colocando meus próprios braços em torno dela.

— Ah, é? Você se acha muito esperta só porque é de exatas - beijo a pele exposta perto do seu ouvido, soltando uma risada quando ela estremece - Mas, só pra você você saber, estou apenas testando os meus conhecimentos biológicos  para a prova de amanhã, Branca.

Beijo seu pescoço e ouço ela rir no meu ouvido.

— A prova de amanhã é de química, idiota.

Dou de ombros, deslizando meus lábios por seu queixo e depois por sua bochecha.

— Sem problemas, posso elaborar uma tese sobre as reações químicas que acontecem dentro do seu corpo enquanto eu beijo a sua boca. Ideia sensacional, não?

Ela abre a boca pra falar algo, mas eu não dou tempo dela responder e capturo seus lábios com os meus,  sentindo seu sorriso contra a minha boca. Jesus. Sinto o gosto do halls de menta, que provavelmente ela estava chupando e suspiro quando suas mãos puxam meu cabelo para mais perto de si. Nunca sei se isso é pra me deixar calvo ou apenas me excitar. Mas independente da calvície, ela me  deixa louco.

Sempre louco por ela.

— Anna... - protesto quando ouço  nosso celulares tocarem quase ao mesmo tempo.

O aparelho vibra no meu bolso e eu quase xingo quando ela se afasta, logo após depositar um beijo carinhoso em meu queixo. Seguro sua cintura, mas ela me lança um olhar de aviso antes de se soltar.

Leah: preciso que você vá falar com o Gustavo.

Reviro os olhos para a mensagem. Sério?

Matt: O que porra aconteceu para vocês não se resolverem?

Ela demora pra responder e eu  levanto o olhar para observar Anna encarar atentamente uma foto no seu celular.

— O que você está fazendo?

Ela desliza a foto para o lado e a analisa de todos os ângulos antes de passar pra próxima.

— Uma das garotas de hoje disse que  viu Theo ser violento com uma menina em uma festa - responde - Disse até que um dos amigos dela, que é fotógrafo, registrou o momento. Ela me mandou algumas fotos e estou tentando achar, mas...

Alguém bate na porta e nós dois olhamos para a madeira envelhecida. Uma cabeça loira aparece e eu sorrio para Gisele.

— Desculpem, sei que não posso vir aqui - fala e estende o o objeto que traz na mão direita - Mas a Anna esqueceu isso no sofá.

Anna coloca o celular na mesa para pegar e amarrar o casaco de volta na cintura. Seu sorriso se abre pra Gisele.

— Eu nem me lembrei. Obrigada, Gi!

A garota loira dá de ombros e se vira em direção a porta,  paralisando assim que seu olhar encontra a imagem exposta no celular de Anna, como se estivesse tendo uma lembrança ruim. Ergo as sobrancelhas e Gisele arregala os olhos.

— Eu conheço esse cara - seu dedo imediatamente aponta para o garoto de cabelos castanhos e olhos escuros na foto. Theo Gonzalez - E ele não é uns dos caras bons.

Lembro-me da história de Gisele, que Anna havia me contado após ter saído do quarto da garota no hospital. Recordo-me da sua ligação com as drogas e com seu ex-namorado, entendendo porque aquele apontamento era importante e não apenas uma simples coincidência.

Aquilo realmente mudava tudo.

 


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Notas finais do capítulo

E por que será que muda tudo? hahahaha enfim, gente... Teorias? Alguém já assistiu Clube dos Cinco? Eu ADORO esse filme desde que uma amiga minha me apresentou e recomendo demais (tem na Netflix, viu?), por isso usei ele como inspiração para o nosso Clube dos Incompreendidos. Bom, tenho três notas importantes:

1. A autora louca aqui deu um bug nas coisas e confundiu o nome de dois personagens. Não sei se alguém percebeu, mas o personagem que antes se chamava Felipe Brás... Agora se chama Pedro Brás (sim, é o mesmo que está ao lado da Gisele o capítulo todo). Eu não sei como eu fiz isso e peço desculpas se alguém percebeu, mas eu acabei mudando totalmente e o nome definitivo vai ser Pedro mesmo porque minha mente é problemática hahaha.

2. Poucas pessoas falaram se topariam o bônus da Leah e do Gus, mas mesmo assim ele será feito, viu? hahaha será o próximo capítulo postado e eu espero realmente que vocês gostem.

3. Esse tamanho de capítulo torna ele muito longo ou maçante? Estou tentando moderar, mas conforme o andamento da história vem estou escrevendo cada vez mais hahaha então se tiverem problemas com isso, por favor me falem. Aí eu poderei dividir os capítulos ou estabelecer um modo que fique bom pra vocês.

Obrigada por tudo e até o próximo!
Beijão,



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