Tudo que ele não tem escrita por , Lis


Capítulo 20
Dezoito - Matheus


Notas iniciais do capítulo

Saudação, seres humanos! Como vocês estão? Espero que bem ♥ senão, deixa eu te dizer uma coisinha importante: somos incríveis. Você é incrível! Ok? Acho que isso deveria ser dito para alguém em qualquer hora do dia.

Enfim, como minha forma de perdão por semana passada trouxe esse capítulo aqui (maior do que deveria hahaha) e com um final agradável (eu acho) ♥ obrigada por serem leitores tão maravilhosos pra mim, viu? Tenho algumas questões a discutir, porém deixarei isso para o final. Agora só tirem um tempinho pra descansar do dia agitado e deixem o Matheus se revoltar junto com vocês hahaha espero que gostem e boa leitura! ♥



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L U T A 

(s.f. de modo geral ação de combater; ação ou trabalho para se atingir algo)

 

Helena Sanchez.

O nome e o sobrenome em itálico  finalizavam a mensagem. Reli o e-mail três vezes antes de fechar a aba com o texto e respirar fundo. Porém, antes da metade meus pensamentos se fixaram no fato: Theo Gonzalez era um babaca.

 

Maníaco. 
Estuprador. 
Machista
Manipulador.
Doente. 
Filho da p...

E a lista só continuava. Quando li o relato frio e ao mesmo tempo sensível de Helena senti vontade de quebrar algo. Ou colocar Theo Gonzalez na minha frente e arrebentar sua cara. É, eu iria adorar essa última parte.

Viver junto com Helena os resquícios do seu pesadelo foi algo pesado, forte e mexeu comigo de uma forma que eu me senti impotente. Era horrível saber o que ela tinha passado sozinha, horrível saber que aquela menina doce e com toda uma vida pela frente morreu solitária em uma cabine de banheiro e que eu não pude fazer porra nenhuma para ajudá-la naquele momento. Era horrível saber que Helena era uma mulher fodidamente corajosa e que ela agora se encontrava debaixo da terra em um caixão escuro.

Simplesmente era horrível!

Bufei no quarto escuro e, em um golpe de sorte para eu não me levantar e socar alguma coisa, alguém bateu na porta. Ergui as sobrancelhas e antes de eu me levantar, Leah já tinha entrado e fechado a porta rapidamente atrás de si. Que diabos...

— Precisamos conversar - É o que minha prima comunica sentando de maneira folgada na cama e cruzando as pernas em posição de Yoga.

— Agora? Sério? - encaro o relógio na cabeceira que marcava meia-noite e vinte. Mesmo que o colégio tivesse paralisado as atividades durante a semana, as coisas ainda estavam complicadas tanto pra mim, quanto pra Leah, o que nos impossibilitava de passar madrugadas insones como já fizemos antes. Se minha prima realmente resolveu vir até aqui,  algo estava martelando em sua cabeça...

— Não, idiota. No dia de São Nunca - responde, revirando os olhos esverdeados - Claro que é agora, Matheus!

Mordo o lábio com seu estado de 'coice gratuito' e me reconsto na cabeceira da cama, analisando atentamente a mulher a minha frente. Leandra estava vestindo uma camisa larga cinza que chegava as suas coxas, juntamente com shorts de dormir. Os cachos de um amarelo queimado estavam bagunçados, olheiras marcavam seu rosto e, mesmo assim, minha prima tinha o queixo erguido como se tivesse na posição de uma rainha impondo uma conversa para seu súdito.

— Você está bem? - a pergunta soa como um murmúrio dos seus lábios.

Surpreendo-me com sua preocupação e inevitavelmente sorrio de canto pra ela.

— Tão bonitinho ver você preocupada, prima.

— Matheus... - seus olhos brilham com irritação e ela dá um tapa na minha perna. Na real, acho que todas as mulheres da minha vida são agressivas — Dá pra ser menos idiota e falar sério uma vez na vida, garoto?

— Estou bem, Leandra - respondo, deixando o sorriso morrer e dando de ombros - Não precisa se preocupar.

— Eu não conhecia Helena, apenas sabia o que você tinha contado,  mas... - ela fica em silêncio por um momento,  melancólica - É estranho estar em contato com a morte de novo.

Encaro demoradamente sua expressão concentrada e vou pro lado, em um claro convite para ela se aconchegar ao meu lado no colchão. No momento em que Leah se senta e eu passo meu braço em torno dos seus ombros, lembro-me de fazer a mesma coisa em um momento parecido quando a morte nos atingiu pela primeira vez.

— Já faz anos, não é? É estranho pensar quanto tempo se passou. - falo.

— Luto é uma droga - ela afirma.

Sorrio com sua fala e encaro o notebook do outro lado do quarto, posicionado na escrivaninha. Mais uma vez o sentimento de impotência vem, fazendo-me concordar: luto realmente é uma merda.

— E você agiu como um idiota nesse processo antigamente - Leah continua - Por isso eu tinha que vir aqui verificar.

Dessa vez a risada me escapa, um riso irônico considerando o contexto da frase.

— Eu não sou mais um moleque angustiado, Leah.

— Sei disso - minha prima diz, movimentando-se para encarar meus olhos - Mas ainda é estranho pensar que nós crescemos depois daquilo e que você não vai sair fazendo merda por aí, sabe?

— Ah, então a senhorita ficou preocupado que eu fizesse merda - rio - Como se você não tivesse feito suas loucuras naquele tempo, não é, dona Leandra?

Dessa vez ela me xinga em italiano quando me bate e eu solto uma gargalhada quando olho suas bochechas vermelhas e sua careta raivosa.

— Ainda bem que crescemos, não é mesmo? - reafirmo sua fala de antes e me reconsto novamente na cabeceira com um suspiro divertido.

A verdade é que Leah é quase uma irmã mais velha pra mim desde que me entendo por gente. Apesar dos dois anos de diferença, a bailarina de musicais que tem uma disciplina de ferro e seduz no palco com seus passos de dança, já foi minha parceira de brincadeiras quando eu era apenas um moleque. O sorriso confiante e ousado escondia a menina magrela que nasceu no sul da Itália e sonhava em dançar balé, mesmo que a parte tradicional da família não fosse uma grande fã das artes. Foi meu pai que, a pedido da garotinha, trouxe Leah para o Brasil, criando-a como uma filha-sobrinha e incentivando todos os seus sonhos. Uma figura paterna que Leah não tinha, já que seu pai fugiu logo que soube da gravidez da minha tia.

Então quando meu pai morreu, não foi só um filho que sofreu sua partida. Leah, com seus míseros 13 anos, abraçou o garotinho revoltado de 11 dessa mesma forma que eu a abraçava agora. Sendo forte para puxar minha orelha e ser meu alicerce, principalmente enquanto minha mãe se afundava em trabalho.

— Então - o sussurro é soado depois de um tempo, quando nos livramos do sentimentalismo e ela sorri provocadora -  O que está rolando entre você e Anna Clara Bennet?

Porra.

Minha prima sorri porque ela sabe que um momento nostálgico é o melhor pra tirar as coisas de mim. Desgraçada.

Apesar do orgulho, não me senti constrangido ao derramar minhas lágrimas nos ombros de Anna naquele dia no hospital. Era incrível como aquela garota sabia me compreender e sugar minhas emoções pra si como um maldito aspirador. Naquele momento a fúria cega e a tristeza frustrante me dominaram de um jeito que eu nunca pensei que faria.

E eu ainda me lembrava do fato mais evidente. Do meu terror mais assustador: da coisa que eu fiquei frustrado e raivoso pela morte de Helena e ainda mais louco que aquilo poderia ter acontecido com Anna também. Caralho, se eu não tivesse feito a aposta naquela festa...

Mas seus braços me acalmaram. O deslizar dos seus dedos por minha coluna me libertou. E eu realmente não queria estar em nenhum outro lugar senão ali com ela. Porra, Branca, por que diabos você me enlouquece tanto?

A gargalhada de Leah é tão alta no meio da madrugada, que eu ergo as sobrancelhas. Porém, a garota loira ao meu lado apenas continua rindo enquanto acaba se deitando na cama de vez, acomodando-se confortavelmente entre os travesseiros.

— Eu sabia que aquela garota ia te fisgar, Matt! - sorri vitoriosa - Finalmente alguém tem seu coração na mão, garoto!

— Menos, Leandra - bufo, mas rio de sua expressão - Eu só... Gosto dela, ok? Aquela menina me deixa louco, porra! Não tem a ver com coração na mão. Eu só...

— Claro que não - ela me interrompe com ironia - Vai dizer o que agora? Que é só tesão acumulado durante anos? Tá na cara, Matheus!

Reviro os olhos e rio ironicamente, considerando a hipocrisia da coisa.

— O sujo falando do mal lavado, Leandra - respondo com um sorriso certeiro - Até quando você vai ficar enrolando o Gustavo,  Senhorita Coração-de-Gelo? Ele só falta lamber o chão que você anda, Leah!

Olho satisfeito suas bochechas ruborizarem e  ela me lança o dedo médio.

— Você sabe muito bem que essa paixão dele não vai dar em nada.

— Na verdade,  eu sei muito bem que você está fazendo cu doce — respondo ríspido, considerando seus motivos idiotas. - Leah, apenas converse com ele. O passado e o futuro não precisam interferir nas coisas que acontecem no seu presente.

— Acontece que as coisas no presente causam consequências futuras, Matheus.

— Exatamente - concordo com um olhar sério pra ela - E se você realmente não tomar uma atitude agora, as consequências futuras também podem não ser tão boas.

Ela abre a boca pra falar, ligeiramente ofendida por eu ser o cara a dar lição de moral agora, mas eu complemento:

— Olhe, eu não vou interferir nisso. Não ainda - respondo e lanço-lhe uma piscadela antes de endurecer o rosto  -  Na verdade, temos coisas mais importantes pra fazer antes do grupo Sherlock virar o grupo Cupido. Tenho novidades para a nossa investigação.

Sua expressão muda e espero ela  se sentar para me levantar e pegar o notebook. Como nos velhos tempos, observei a companhia da minha prima e preparei-me para a noite insone. É, a madrugada ia ser longa...

***

Mais uma vez estou encarando a mesma porta de madeira sucateada que eu bati há alguns dias atrás. 

— Tem certeza que ele está em casa? - Anna questiona, cruzando os braços e fitando a entrada da casa.

Antes que eu responda, um tilintar de chaves é soado lá dentro e a porta se escancara rapidamente. Um homem negro com cabelos bagunçados e um olhar feroz aparece para nos encarar.

— Eu disse que ele estaria - respondo a pergunta de Anna, mesmo que a resposta já fosse óbvia.

— Considerando que são sete da manhã e vocês acabaram de me acordar, é óbvio que estou em casa. - fala Javier Rodriguez, o dono da residência em questão que viemos visitar.

Apesar de mal conseguir dormir a noite, a primeira coisa que eu fiz de manhã foi mandar uma mensagem pra Anna e me preparar pra buscá-la. Eu sabia que ela também tinha recebido o e-mail, já que vi pelos destinatários da mensagem  e sabia também que nós dois não descansaríamos direito até tomarmos alguma atitude sobre aquilo.

Por isso ao ver Rodriguez, apenas sorri para seu jeito rabugento, sabendo que era só uma fachada para esconder o grande homem que ele é. Javier tinha um ritual de acordar cedo todos os dias acompanhando o nascer o do sol  e ele sempre estaria acordado sete de manhã. A justiça não espera, pirralho, ele dizia.

Por isso você era melhor amigo do meu pai.

— Eu sei que você não estava dormindo, Rodríguez. - é o que sai da minha boca.

Uma breve amostra de  sorriso aparece com a minha ousadia. Ele inclina o corpo pro lado para enconstar o ombro na porta aberta.

— Desde quando você ficou tão petulante quanto seu pai, garoto?

— Acho que desde que ele nasceu - responde minha acompanhante atrás de mim. Branca sorri para Javier e me afasta pro lado - Meu nome é Anna Clara Bennet. É um prazer conhecê-lo, senhor Rodriguez.

Rio com a formalidade e noto o olhar analisador que Javier detém sobre Anna, o sorriso dele se ampliando ao encarar o jeans, a camisa preta e o coque desleixado que emoldurava o rosto da garota.

— O prazer é todo meu, Anna. Mas não me chama de "senhor", minha cara. Fico me sentindo um velho razinza quando dizem isso.

— Mas você é um velho razinza - ressalto e ele faz uma careta enquanto dá espaço para nós passarmos.

— Como você aguenta ele o dia inteiro? - pergunta pra Anna.

Ela sorri e eu nitidamente vejo que eles dois foram com a cara um do outro. Eu estava ferrado.

— Me pergunto isso todos os dias - responde, já entrando na casa ao lado de Rodriguez e caminhando a minha frente. Involuntariamente meus olhos se atraem para o formato do seu corpo moldado no jeans e contemplo distraidamente Anna Clara Bennet antes de fechar a porta que eles deixaram aberta.  Louco, Matheus. Essa menina ainda vai te deixar louco.

Nosso destino foi a sala pequena com um sofá aconchegante, uma poltrona e uma televisão antiga. Anna se senta rapidamente no sofá junto comigo, enquanto Javier se acomoda na poltrona e oferece  seu habitual café fumegante. Depois que todos estavam acomodados, seus olhos negros encaram a mim e a Anna em uma análise aprofundada.

— Bom, creio que não estão aqui pra uma visita social, estão?

Respiro fundo e apoio a cabeça nas mãos por um momento. Quem dera essa fosse uma visita social.

— Você soube do que aconteceu? - pergunto com um erguer de sobrancelhas - Com a Helena?

Ele me encara por um momento, antes da máscara inexpressiva se esvair do seu rosto, tornando clara a sua raiva.

—  Alguns policiais da área comentaram a respeito. Duas meninas foram pro hospital naquele dia, certo?

Troco um olhar com Anna, antes de ela se virar totalmente para o delegado na sala e responder:

— Sim, Gisele e Helena. Gisele é nossa amiga também, porém não é estudante do colégio. Ela estava muito machucada, provavelmente levou uma surra de alguém, mas não sabemos quem seja.

— Iremos até o hospital vê-la quando ela for liberada pra visita  - complemento e Anna assente. - Já Helena é a vítima de estupro que eu mencionei antes. Ela cometeu suicídio e infelizmente não resistiu aos ferimentos.

— Duas garotas - Javier comenta com um olhar pesaroso depois de tomar mais um pouco do café - ¡Dios mio!  É nessas horas que eu me pergunto o que infierno está acontecendo com essa sociedade!

— Tem mais uma coisa - falo para acabar logo com tudo e os olhos negros do amigo do meu pai me encaram em expectativa - Helena deixou um depoimento.

Os olhos opacos se arregalam levemente.

— Um depoimento? Ela relatou...

— Sim -completo - Ela enviou um e-mail no mesmo dia que morreu para mim e para a Anna. O e-mail contém um texto e um áudio.

— E fotos - Anna adiciona. E eu ergo as sobrancelhas quando ela retira o notebook da mochila rapidamente e, depois de ligar o aparelho, vira a tela para que Javier possa encarar o texto escrito. - Helena enviou dois e-mails pra mim naquele dia, um igual ao seu, Matheus. O outro tinha apenas fotos... Fotos do corpo dela.

Ela passa para o outro e-mail que contém apenas imagens anexadas, clicando no primeiro link que aparece. No mesmo momento o corpo de uma garota aparece na tela. O mesmo corpo das fotos no pendrive que eu possuo, porém dessa vez não há posições dolorosas ou luzes de motel. Na pele morena visualiza-se claramente marcas vermelhas e arroxeadas.

Hematomas.

Grandes, pequenos, médios. Distribuídos pelas coxas, braços, barriga e seios. Os pulsos contém marcas do que claramente a prendeu naquele momento. As próximas imagens continham os mesmos machucados, porém ampliados, como se Helena quisesse mostrar de perto cada marcação que aquele desgraçado do Theo fez com ela.

As quatro últimas fotos me fizeram cerrar os punhos. A primeira mostrava o seu rosto vermelho, lábio cortado do tanto que ela mordeu talvez pra não gritar, talvez pra conter o choro. Na bochecha direita a marca vermelha perto do olho complementava a visão do pescoço, que continha marcas roxas de lábios e mãos que a apertaram. Nas três últimas  ela estava nua na frente de um espelho. A câmera focada nos ferimentos da virilha e do traseiro.

Puta merda.

A casa ficou mergulhada em completo silêncio. Apenas quando a última foto ficou exposta ali na tela por cerca de dez minutos, Anna respirou fundo e tirou  e-mail, os dedos trêmulos ao movimentar o mouse. Vagarosamente peguei sua outra mão  na minha, apertando a pele fria enquanto voltava meu olhar para Rodriguez.

— É por isso que esse trabalho é uma merda - É a primeira coisa que o homem diz, os olhos negros agora molhados. A irmã dele sofreu um tipo de violência desse cunho também, afinal - Posso ver esses casos todos os dias desde que saí da faculdade de Direito, seja no jornal, seja propriamente na delegacia, mas sempre me surpreenderei com a crueldade humana em fazer algo assim.

— Temos o áudio, o e-mail e as imagens datadas de quanto ela tirou - Anna responde - Sabemos o motel, como aconteceu e  quem fez isso. Sabemos ainda que havia mais pessoas com ela, segundo o relato duas garotas e um menino familiares para Helena estavam lá naquele dia. Com tudo isso algo finalmente poderá ser feito?

— Irá ser feito, querida - responde ele com um aceno firme - Irei abrir o inquérito oficialmente e é provável que vocês estejam envolvidos no processo de investigação, principalmente você Matheus.

Concordo, já prevendo que isso iria acontecer. Justiça. Tudo por justiça.

— Bom, irei até o motel, conversarei com os pais de Helena e com Peter. Com a acusação, Theo Gonzalez será notificado e aí começará nossa verdadeira  batalha. Eles vão tentar comprar qualquer um, irão tentar fazer qualquer coisa. A família Gonzalez é poderosa e a justiça não será fácil  -Javier fala convicto, sem demonstrar receio na voz  - E assim a aposta que você fez não importará mais, Matheus. Com fotos ou não, Helena não está mais aqui e Theo pode tentar qualquer coisa, inclusive com Anna. Quero que vocês entendam o perigo que se aproxima.

Theo pode tentar qualquer coisa coisa.

Inclusive com Anna.

Meus dedos involuntariamente apertam mais a mão pequena envolvida pela minha e, antes mesmo que eu pisque, o olhar cinzento da minha parceira de dança já está fixado no delegado a nossa frente, quando ela comunica:

— Nós entendemos.

O resto da conversa passou rápido. Passamos todo o material que temos a Javier, enquanto ele nos alertava sobre todas as variáveis que poderiam acontecer na nossa situação. Policiais estariam a disposição para nossa proteção  e teríamos que conversar com nossos pais sobre o nosso auxílio com a investigação, mesmo que ambos tivéssemos dezoito anos. Por fim, depois de doses de cafeína e alertas, estávamos na porta.

— Sobre a amiga de vocês que foi espancada. Gisele, certo? - ele questiona - Eu posso mandar alguém para o hospital, caso ela queira fazer alguma queixa.

Anna me olha com receio. Nós ainda não sabíamos o estado real de Gisele após tudo que aconteceu, nem realmente o quê aconteceu. Mas estava claro: aquele espancamento com certeza era crime.

— Podemos conversar com ela sobre isso - é Branca que responde - Gisele nasceu na periferia, em uma área em que a polícia as vezes representa mais terror do que paz. Não sei se mandar algum policial agora...

— Ela pode não querer conversar - Javier conclui, assentindo - Mas eu sei quem mandar e não será nenhum policial de farda. Ela não terá medo.

Grazi.

A irmã mais velha da família Rodriguez, que também já sofreu um abuso. Ela era ativista e trabalhava com a polícia principalmente nos casos de acolhimento das vítimas de violência contra mulher e estupro. Ela poderia ser uma boa pessoa para ajudar Gisele.

— Eu ligo pra você - respondo, entendendo a importância da denúncia nessas ocasiões e a importância de alguém como Grazi.

— Esperarei - fala Javier com seriedade, antes de nos encarar atentamente ali na saída da casa - Não é sempre que se encontra pessoas tão dispostas assim a encarar as injustiças do mundo pelos outros. Helena pode não estar mais aqui, mas vocês estão fazendo de tudo para ajudarem essa garota a descansar em paz depois de tudo que ela enfrentou em vida. Admiro profundamente isso em você, Mateus. E mais ainda em você, Anna.

Com um aperto de mãos e um tapinha nas costas as despedidas acontecem e logo estou de volta no carro da minha mãe com Anna no banco do passageiro.

— Anna, quero que me prometa que você não vai...

— Se você realmente está pensamento em ditar regras pra mim, está perdendo tempo - a voz alta e clara comunica ao me interromper como se soubesse o que eu iria dizer, fazendo-me desistir de ligar o carro e  voltar meu corpo completamente pra ela - Se transformar em um herói que se gruda ao meu lado não vai adiantar de nada e eu não vou deixar de viver a minha vida por causa de um escroto como o Gonzalez, Matheus.

Solto uma risada sarcástica e cruzo os braços ao encarar sua expressão petulante.  Teimosa.

— Aquele filho da puta pode vim atrás de você no primeiro momento após a a acusação, Anna! Você quer que eu faça o quê, hum? Fique esperando?

— Olha, contanto que você não  haja como um dominador pra cima de mim, você pode fazer o que quiser - ela responde - Seja racional, com sorte Theo ficará com medo de ser pego e não tentará nada. Além disso, eu sei me defender, ok? Não precisa agir como um homão da porra prestes a me resgatar.

—Isso não tem nada a ver com heroísmo - rosno, irritado.

— Ah, não? Eu sabia no momento em que Javier falou que eu poderia estar em perigo que você tentaria me proteger do mundo, Matheus!

— Ah, me desculpe se sou tão previsível pra você, princesa guerreira. Eu não sabia que preocupação era um defeito! - contraponho agressivo e respiro fundo para dizer em um tom mais calmo: - Você viu o que aquele babaca fez com a Helena. Você leu. Ótimo se você quer contar com a sorte que Theo vai parar depois da acusação, mas eu não confio em um doente como ele, Anna.

Seus olhos brilham por um momento, a fúria se perdendo aos poucos.

— Você não está me entendendo.

— Eu não queria ditar regras pra você, porra! - exalto-me - Eu só quero...

— Me proteger. - ela completa, se ajeitando no banco pra se virar completamente pra mim - Você está tentando me proteger. Como você está tentando há um tempo desde o nono ano.

— Branca...

— Eu perdoei você. Antes mesmo da aposta e da biblioteca, internamente eu já tinha perdoado você, Matheus. Você não precisa...

Cristo.

— Anna - interrompo, colocando ambas as mãos em seu rosto e aproximando meus olhos do seu. As palavras se entalam na minha garganta, mas eu as expulso pra fora mesmo assim: - Eu gosto de você, ok? Eu sou louco por você e não é de hoje, porra! Você sabe disso, eu falei quanto te beijei. E eu não suportaria saber que aquele cara fez algo daquilo com você. Não suportaria ficar parado!

Ouço sua respiração ruidosa quando ela suspira baixinho antes de colocar ambas as mãos por cima das minhas em seu rosto. O mar tempestuoso dos seus olhos agora tinha encontrado a calmaria, como se o seu acesso de raiva há alguns minutos atrás fosse apenas uma onda.

— Não vai acontecer. Ele não fará. - seus olhos cinzentos reluzem, como se ela não tivesse ideia do que dizer, mas mesmo assim tivesse que continuar  - Mas você não precisa ser meu herói, Matheus. Eu... Eu também gosto de você. Eu beijei você, óbvio que eu gosto de você, cara! Mas... Ficar com medo e agir como um louco não vai adiantar de nada agora. Eu sou mulher, sabe? E infelizmente o meu gênero já me torna automaticamente ameaçada no nosso país. Mas eu nunca deixei o medo tomar conta e não é agora que isso vai acontecer.

Largo seu rosto e enconsto a cabeça no enconsto do assento, fechando os olhos logo em seguida. Compreendendo tudo e ainda assim me sentindo impotente. Querendo proteger essa garota de todos os males do mundo, mesmo não podendo. Merda.

— Tudo bem - falo depois de um tempo - Me desculpa. Eu só vi as fotos e...

— Eu sei. - sinto seus dedos tocarem minha mão e a apertarem, antes de suas próprias mãos subirem para meu rosto e elas se apoiarem em me ombro - Eu também senti.

Meus olhos se abrem instaneamente para encarar suas bochechas rubras quando ela usa meu corpo como apoio e passa a perna direita para o meu lado do banco, ajeitando em seguida o tronco em cima de mim.

— Anna... - a palavra sai da minha boca quando fito confuso o sorriso de canto que ela dá.

As bochechas avermelham mais quando ela paira naquela posição, não se enconstando completamente em mim, mas ficando o mais próxima possível.

— Não fale nada - murmura e sinto seu sorriso sumir quando seus lábios pressionam minha pele e eu beijo seu queixo no processo. Solto o ar pela boca ao segurar levemente seu quadril e sentir seus lábios descerem para minha boca - Vai ficar tudo bem, Matheus. Eu vou ficar bem.

Louco.

Completamente louco.

Sua boca encontra a minha, o beijo leve, típico dela, transformando - se aos poucos em uma confusão de sentidos. E assim, inesperadamente, antes que eu possa piscar, meu domínio se perde. As mãos leves em seu quadril a trazem para mais perto de mim, enquanto aprofundo o beijo e mergulho em sua boca como se ela fosse minha última respiração antes desse maldito mundo acabar! Anna tem ousadia no beijo, sua língua me enlaça e eu quase sorrio quando ela arfa na minha boca como se não conseguisse se segurar. Vai ficar tudo bem.

Sim. Vai.

Interrompo o beijo com um suspiro, beijando sua bochecha em seguida e seu pescoço logo após isso, descobrindo a temperatura quente da sua pele e querendo tocar todos os seus sinais com os lábios. E então respiro fundo, controlando-me aos poucos para não deixar a excitação me consumir completamente.

Ela ri perto do meu ouvido, a respiração ainda falha e as bochechas ainda rubras. Quase enlouqueço quando ela sai de cima de mim para voltar pro seu lugar, tocando-me sem querer em lugares não desejáveis no momento. Quando solto um palavrão, ela solta uma risada (claramente maldosa) e se ajeita no banco como se não tivesse acabado de ter feito o que fez. Como se fosse completamente nada demais.

Cristo, Anna. O que diabos você está fazendo comigo?

— Agora vamos ver a próxima na lista de mistérios - ela fala enquanto eu ligo o carro e giro o volante a caminho do hospital. Não vou mentir e dizer que ainda não estava preocupado, porque eu estava, mas a verdade é que Anna Clara Bennet era teimosa e nós ainda tínhamos mais uma coisa pra descobrir: - Gisele.

E assim a batalha estava prestes a começar.


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Notas finais do capítulo

Preparem as armas, a batalha está só começando. Prontos pra ver tiro, porrada e bomba? Opa hahaha brincadeira. bom, vamos lá:
Gente, eu não sou formada em Direito e não conheço muitas pessoas que possam me informar direito sobre a legislação brasileira e os casos de estupro. Venho pesquisado e procurado me informar, mas quem for da área jurídica e quiser me dar uma mão... Bom, eu iria adorar porque mesmo que eu queira deixar tudo o mais real possível, estou indo um pouco pelo lado da ficção (acho). Então peço desculpas pela falta de verossimilhança aqui, sério. Vou tentar me aproximar mais, porém não prometo nada. Pessoas ligadas nas leis, help please!
Outra questão extremamente importante: Estou indo rápido demais? Estou encucada com isso desde que escrevi esse capítulo, pois meu lado romântica está assumindo o controle então posso estar apressando coisas que não eram pra apressar. Vocês tem uma visão melhor disso do que eu e constroem isso aqui junto comigo, então peço auxílio aqui para saber o que vocês acham do desenvolvimento desse casal... Falar sobre sentimentos ainda é complicado, mas dá pra ver que depois de anos as coisas estão indo sem interrupções (ainda)...
Bom, espero que todo mundo responda para eu poder melhorar isso aqui cada vez mais por e para vocês ♥
Qualquer coisa, podem me mandar MP, gritar ou mandar sinal de fumaça... Estarei sempre aqui por cada um.
Beijão e até,



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