Serpentarius escrita por Stormy Raven


Capítulo 5
0.4 - A Feira dos Sonhos


Notas iniciais do capítulo

Koyanagi-senpai, algo errado?



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“0.4”
A Feira dos Sonhos

E o grande dia havia chegado: A Feira Cultural do Complexo Kusari, um evento grandioso e muito aguardado por pais, alunos e professores; até mesmo estudantes de outras escolas compareceriam no tão falado evento. Mas claro, nem todos os responsáveis pelos estudantes do complexo esperavam por esse dia...

- Você vai à escola hoje, Isao?

...E Iwao Koyanagi era um desses. Não se envolvia muito na vida escolar de Isao, havia desistido há tempos de tentar encorajar o garoto a participar dos eventos e clubes escolares, fazia apenas o necessário para que ele se mantivesse na escola e ao menos terminasse o colegial. Percebera a estranha agitação do neto, que acordara mais cedo que o de costume por motivos desconhecidos. Aliás, este estava agitado desde o dia anterior, em contraste com o desânimo que lhe é tão comum quando volta do colégio.

- Hoje é a Feira Cultural, ojii-san.

- Eu sei, e é isso o que me intriga. Você nunca gostou de eventos escolares, muito menos da feira.

- É que, bem... Hoje eu tenho uma razão pra ir.

- Tem algo a ver com sua última briga? Isao, já lhe avisei que estas brigas de colégio são pura perda de tempo e apenas têm resultados negativos...

Amarrando o tênis, o jovem respondeu sem olhar para o mais velho:

- Eu sei ojii-san, eu sei... Não se preocupe comigo, prometo não aprontar.

O idoso suspirou, já temeroso sobre o fim daquele dia. O instinto Koyanagi sempre fora afiado, e Iwao aprendera a confiar em sua intuição, afinal, ela nunca havia falhado...

- Sei que não aprontará, Isao, mas meus temores não são com relação a isso. Tenho medo do que os outros possam fazer com você. Tenho conhecimento de que grande parte dos conflitos em que se envolve não são sua culpa. Se ao menos eu fosse um pouco mais jovem...

- Ojii-san, não se preocupe. O senhor fez o que pôde por mim, e lhe sou muito grato por tudo. Eu é que tenho que me desculpar por não ser um bom aluno, mesmo com seu esforço. O senhor sabe que eu tento o máximo que posso.

- Eu poderia ter feito mais, muito mais. Poderia ter lhe educado melhor, feito tudo diferente. Mas agora sou só um homem velho e cansado demais para tentar alguma coisa.

Isao detestava quando Iwao começava com esse tom negativo, acabava se sentindo um fardo inútil que só servia para causar preocupações. Ele tinha consciência de que não era o neto perfeito e até tentava dar o seu melhor mas, como já foi visto diversas vezes, o mundo sempre conspira contra um Koyanagi. Além disso, Isao nunca sentiu atração alguma pela vida escolar; sempre fora “da rua”, adepto de atividades que envolviam o corpo e esforço físico. Fora o melhor aluno de Iwao no dojo quando este ainda era aberto a estranhos, e isso apenas o ajudou ainda mais a se identificar com o estilo 'selvagem' das ruas.

- Ojii-san, por favor, não diga isso. Assim me sinto mal...

- Estou sendo realista, meu neto. Mas é melhor parar por aqui, não quero estragar seu dia com as minhas baboseiras. Vá se divertir como um jovem normal... Apenas tome muito cuidado, e não tome decisões precipitadas.


-~~*


“É aqui.”

Isao, parado na calçada, observava o imenso e luxuoso edifício à sua frente, grande como a maioria das construções da metrópole. Era bem próximo da escola e perto dali existia uma estação de metrô - com direito a inúmeras lojinhas de variadas utilidades. Era a estação mais perto do Complexo Escolar Kusari, Isao a usava todos os dias. Aparentemente Ligea vivia em uma situação financeira bem confortável, a julgar pelo luxo e pela localização do prédio.

“Espero não ter chegado muito cedo.”

Mal tendo apertado o número do apartamento foi recebido por uma animada voz:

- Pode subir Koyanagi-senpai, a portaria e os seguranças já foram avisados.

- Ok.

“Seguranças?”

Ele não havia notado, mas existiam diversas câmeras por todo o prédio além de vários seguranças estrategicamente posicionados. Não era um ambiente muito agradável, mas certamente era seguro. Subindo pelo elevador mais rápido que já tinha experimentado - “Meu estômago está nos pés agora...” - Isao não teve problemas em localizar o apartamento de Ligea, já que este na verdade era toda a cobertura...

“Ela é podre de rica... Só falta ter um mordomo.”

Assim que a porta do elevador abriu o japonês teve uma grande surpresa: Liggy o estava esperando, sorridente, vestida apenas com um roupão de banho rosa. O cumprimentou com uma profunda mesura:

- Bem vindo à minha humilde morada, Koyanagi-senpai.

- Hã, obrigado. Bela... Casa.

“HUMILDE?”

Aquela era a sala de estar mais luxuosa que Isao já tinha visto em toda a sua vida: móveis ocidentais clássicos, que com certeza deveriam ter centenas de anos, estavam dispostos pelo cômodo de maneira harmoniosa. No centro, um conjunto de sofás belamente decorados com figuras e padrões igualmente ocidentais estavam posicionados em frente a uma gigantesca e moderna televisão. Presos no teto haviam grandes lustres de cristal que combinavam com todos os adornos dos móveis, vasos e também prataria - esta exposta no móvel mais vistoso dali, encostado em uma das paredes.

- Papai não poupa despesas para meu bem-estar. Pena que ele não pode estar aqui comigo agora...

Uma sombra passou rápido pelos olhos da garota, que rapidamente mudou o foco do assunto:

- Vou apenas terminar de me vestir, prometo não demorar. Se quiser ligar a TV ou usar o computador, fique à vontade.

- Ok.

“Me sinto como se estivesse na Europa. Nunca vi tanto luxo...”

O jovem andou pelo cômodo admirando os objetos e seus adornos, sem se preocupar com TV ou internet; não era todo dia que ele podia ter acesso à tanta beleza. Curioso, afastou um pouco a grande cortina que cobria completamente uma das laterais da sala e maravilhou-se com a piscina, devidamente cheia e limpa; era igualzinha a uma daquelas piscinas vistas em filmes americanos, com direito a trampolim e escorregador.

“Ela vive em um sonho... Não a culpo pelo medo de sair sozinha. O pai deve ser um desses milionários estrangeiros com gostos exóticos, há muitos lugares mais seguros que o Japão para se viver. Que tipo de pai deixa a filha morar sozinha em Tokyo?”

- Koyanagi-senpai!

- Sim?

- Pode vir aqui um momento? Preciso de uma pequena ajuda...

- Claro.

A voz de Ligea vinha de um dos corredores que acessavam a sala, perto de onde ele estava. O garoto logo imaginou mil e uma situações enquanto percorria os poucos metros que o separavam dela, e teve medo de ter ficado “animadinho” e dar vexame...

“Vai com calma, ainda não dá pra saber as intenções dela. Posso estar entendendo tudo errado.”

Seguindo pelo pequeno corredor - decorado com uns poucos quadros ocidentais de tamanho reduzido - Koyanagi deteve-se ao atingir a única porta aberta dali. Deteve-se não por educação, mas por pura e simples admiração: Ligea estava semi-vestida com um belo - e, vejam só, simples - vestido de profundo vermelho-vivo.

Vermelho e chocante como sangue; belo e sedoso como pétalas de rosas.

“Semi-vestida” pois estava descalça e sem meias, e o vestido não estava devidamente ajustado ao corpo. O cabelo também não estava muito arrumado, mas no caso dela era muito fácil de se resolver. Arrumado era o quarto: a cor predominante era o - oh que novidade... - rosa, acompanhado do branco e de alguns poucos nuances de preto. Era tão ou até mais decorado que a sala, mas não inteiramente ocidental: haviam vários objetos - úteis ou não - de origem japonesa misturados aos ocidentais. Essa característica também se aplicava à imensa quantidade de bonecas que Ligea tinha, devidamente acomodadas em suportes nas paredes.

- Pode me ajudar aqui? Preciso abotoar o vestido mas não alcanço os botões.

Era um desses vestidos ‘clássicos’, simples porém marcante. Era bem comportado - Ligea não era o tipo de garota que gostava de exibir o corpo - e não tão cheio de adereços como a roupa do dia anterior. O grande destaque mesmo era a vívida coloração do tecido.*

- Abotoar? Eu posso ajudar, digo, claro que ajudo...

“...”

A garota, sorridente, sentou-se na cadeira em frente à escrivaninha para que as inábeis mãos do rapazinho trabalhassem na delicada peça de roupa, abotoando-a lentamente - mais por nervosismo dele do que por qualquer outra razão que a situação sugestionasse. Mantiveram-se em silêncio durante todo o ato, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Isao aproveitava cada segundo - não se lembrava da última vez em que esteve tão perto de uma mulher, de ter tocado em uma - e começava a se deixar levar pelo inebriante perfume de Ligea. Esta não deixava transparecer, mas estava muito nervosa com aquela situação. Sim, ela tinha meio que planejado aquilo, mas não sabia muito bem o que fazer agora, afinal, havia um homem em seu quarto! Não que uma situação assim nunca tivesse acontecido antes, mas... Era o Koyanagi ali, abotoando seu vestido e resvalando os dedos de encontro com sua sensível pele, causando-lhe calafrios a cada pequeno contato acidental. E estavam sozinhos, com todo o apartamento somente para eles, com a certeza absoluta de que ninguém apareceria. Ah! As fantasias que brotavam na cabeça da jovem eram tão variadas...

- Pronto.

- Obrigada Koyanagi-senpai. Pode... Me ajudar com as meias?

Ligea apontou para o par de meias-calças brancas em cima da cama, deixando o adolescente ainda mais nervoso - e vermelho.

- É, é claro.

Tudo parecia em câmera lenta: os movimentos dos braços, a respiração de ambos, o balançar despreocupado das pernas de Ligea, a cortina sendo levada pelo vento... Até que o riso, de início contido, da garota fez Isao pensar duas vezes no que estava fazendo.

- Rigea-san, isso é alguma brincadeira?

- Desculpe senpai, mas não resisti. Achei que o clima estava pesado demais.

“É óbvio que ela estava brincando. Isao, Isao, quase que você faz merda...”

- Não acho que tenha aliviado muito com isso. Vou esperar na sala.

Sem dar tempo para respostas o japonês saiu do quarto, apressado, e sentou-se em um dos confortáveis sofás supracitados. Suspirou, já achando a decisão de ir à Feira com Ligea um grande erro.

“E se a Hikari me ver acompanhado? Eu não vou poder nem me explicar pra ela... Ah, eu to me preocupando à toa, a chance é pequena e ela nem me conhece direito. Talvez até seja uma boa eu ir acompanhado... Contanto que não me façam de bobo. Por que sinto essa sensação de que algo grande está para acontecer? Por que meu sangue está fervendo tanto, nunca senti isso em toda a minha vida. Será que ojii-sa começou a dar aqueles avisos estranhos por estar se sentindo assim também?”

- Koyanagi-senpai, me perdoe. - Ligea surgiu, já devidamente vestida - Foi uma brincadeira sem graça, me perdoe.

- Foi cruel, Rigea-san.

- Me perdoe por favor! Prometo não fazer de novo.

Curvando-se, a mestiça parecia realmente arrependida. No fim das contas fora um deslize, um momento em que ela se deixou embriagar pela estranha sensação que lhe atormentava todas as vezes que estava perto do garoto-problema. Não queria estragar tudo logo agora, depois do inesperado encontro no dia anterior.

- Tudo bem, tudo bem, também não foi lá uma coisa tão ruim, eu tenho uma certa parcela de culpa também. - Isao olhou para o celular, checando as horas - Acho melhor irmos logo, ou nos atrasaremos para as atrações da Feira.

- Acabei nos atrasando... Então vamos!

-~~*

“Sinto o cheiro fétido de Dai Yabutsu.*”

Aquela era uma estranha garota. Vestia-se como uma colegial comum, seu uniforme sempre impecável - mas visivelmente antigo, mais longo que os de hoje em dia. Andava sem destino pela cidade carregando consigo apenas uma katana velha - porém extremamente bem cuidada. Nenhuma roupa extra, nenhuma mochila, bolsa... Nada. Como se ela fosse um fantasma.

“Não só Daí Yabutsu... Há outros, mas não consigo identificá-los.”

E, nesse momento, esse ‘fantasma’ estava às portas do lotado complexo Kusari. Ela era curiosa, e isso quase sempre lhe rendia situações engraçadas ou, às vezes, perigosas.

“Há muitos humanos por aqui, pode ser perigoso. Espero que eles não se intrometam em meu caminho.”

Engraçadas pois ela não percebia o quanto chamava atenção; não é todo dia que se vê uma colegial carregando uma katana pela rua despreocupadamente. Já teve problemas com a polícia, mas nunca conseguiram pegá-la: ela sumia misteriosamente ao menor sinal de conflito com autoridades, o que dificultava ainda mais qualquer tentativa de investigação, e seu instinto e desconfiança para com detetives e perseguidores era anormalmente desenvolvido.

“Há vários cheiros estranhos aqui. Seriam inimigos também?”

Além disso, não era raro ela ser confundida com uma cosplayer, já que no país tal atividade estava se tornando cada vez mais comum no dia-a-dia. Não era mais necessário ter algum evento relacionado ao tema para se encontrar cosplayers pelas ruas. Somando isso ao fato dela ser extremamente parecida com uma certa personagem de um mangá famoso - carregando, inclusive, o mesmo nome da tal - o “disfarce” tornava-se perfeito.*

“Preciso averiguar esses cheiros esquisitos antes de qualquer coisa. Podem ser de algum tipo perigoso de youkai.”

O mais estranho de tudo é que ela era, de certo modo, “famosa” no submundo - especialmente entre aqueles que exploravam o ocultismo.

Porque os primeiros relatos sobre ela datavam de no mínimo 100 anos atrás.

Um fantasma? Uma aparição? Um espírito em busca de vingança?

“Youkais nojentos, continuam se disfarçando de humanos. Mas não podem esconder o cheiro...”

Mas como ela seria um fantasma? Acabou de esbarrar em uma pessoa...

- Desculpa aí, gata.

Dignou-se a apenas dirigir um olhar tedioso para o rapaz que a olhava com uma estranha expressão no rosto, murmurando:

- Humano comum...

Seguiu seu caminho em meio ao amontoado de gente, e parou em frente a um lugar coalhado de pessoas - em sua maioria, mulheres. Havia algo que as atraía para aquele lugar, algo ou alguém.

“Um dos cheiros estranhos vem daqui. Mas não é youkai. É insuportável, mas não é youkai. Lido com esse depois...”

Voltou a andar, seguindo os ‘cheiros’ por alguns minutos. Acabou perto de outro aglomerado, e percebeu do que se tratava: uma exibição de kyuudo* estava em andamento. Tanto rapazes como moças exibiam suas habilidades, mas nada que impressionasse muito a “fantasma”. O último a se exibir acertou duas flechas ao mesmo tempo, arrancando ao menos um meio-elogio dela:

“Ele seria um bom caçador de youkais com um treinamento decente. Poderia ajudar..." - suspirou - "Ajuda? Todos que me ajudam, morrem.”

Já ia sair dali quando uma pessoa, aparentemente comum, lhe atraiu a atenção.

“Cheiro curioso.”

E se aproximou dela.

-~~*

“Nunca vi isso tão lotado.”

Talvez por nunca ter ido aos eventos escolares, Isao acabou por se surpreender com a quantidade e, sobretudo, com a variedade de pessoas presentes ali. Alunos e professores de outros colégios, pais, curiosos, delinqüentes... Todo tipo imaginável que caminha pelas ruas de Tokyo durante o dia era encontrado passeando pelos stands, comendo nos cafés e assistindo as apresentações diversas. É claro que ainda assim haviam lugares relativamente desertos - como os gramados, as salas dos docentes, as quadras poliesportivas não usadas...

- É sempre assim?

Ligea, ao seu lado, estava maravilhada com tudo aquilo. Seus olhinhos de cor turquesa brilhavam de excitamento, examinando tudo avidamente.

- É a primeira vez que eu venho também, mas acho que sempre é assim. Nosso colégio é famoso em Tokyo.

- Você não estudava aqui antes?

- Não, é que eu não gostava... Digo, sempre estive ocupado treinando com meu avô ou ajudando em casa que não podia vir.

“Quase deixo escapar...”

Ligea voltou-se para ele, com uma expressão triste no rosto. Ela tinha percebido a verdadeira razão do garoto não ter ido aos eventos anteriores.

- Você não gosta, não é? Não precisa mentir, Koyanagi-senpai.

- Não, tudo bem, dessa vez eu realmente queria...

A loirinha contorceu o rosto, sugerindo que estava prestes a chorar.

- E eu ainda te arrastei pra cá... Me desculpe por pedir uma coisa assim, e te fazer vir mesmo que não quisesse.

- Eu aceitei, não é? Dessa vez eu queria vir.

- Verdade?

- Sim, verdade. Mesmo se você não tivesse me pedido eu viria.

A garota pareceu se contentar, sorrindo timidamente:

- Tá bom, se você diz, eu acredito.

“Eu vinha pra ver a Hikari, mas é óbvio que não vou falar isso. Preciso tomar mais cuidado com o que digo! Aliás, preciso procurar o estande da Índia, só pra dar uma olhadinha. Acho que a Rigea não vai se incomodar...”

Mas antes que pudesse dizer algo, Isao foi puxado por uma das mãos de uma alegre mestiça correndo entre a multidão:

- Venha Koyanagi-senpai, a exposição sobre a Grécia é logo ali!

“Grécia?”

- Espere Rigea-san, não acha melhor vermos alguma coisa diferente?

- Diferente?

- Acho que você já sabe muito sobre Grécia, não quer ver nada sobre o Japão? Depois vemos os outros países.

Ela ponderou por alguns segundos e puxou-o mais uma vez sem aviso, trombando em meia dúzia de alunos que estavam pelo caminho...

- Tem razão! Se vou morar aqui, preciso saber mais!

“Desculpe Rigea, mas quero distância da Grécia.”

Continuaram a correr até que, de repente, pararam em meio a uma fila, quase se chocando com alguém.

- Koyanagi-senpai, aonde estamos?

- Eu achava que você soubesse, afinal, você é que está no comando.

A dupla se olhou, sem jeito, e Ligea enrubesceu, desviando o olhar para o chão:

- É que fiquei tão animada de estar... Aqui, que acabei me exaltando. Que fila é essa?

- A plaquinha lá na frente diz “Maid Café”, e mais alguma coisa sobre “Irlanda”.

- Irlanda? O que tem de tão interessante por lá, fora homens com saias?

- Não sei, a comida talvez. E, falando nisso, o que acha de comermos algo? Eu saí tão rápido de casa que não tomei café da manhã.

- Confesso que também não comi nada, senpai.

O som originário dos estômagos dos dois adolescentes acabou por confirmar o que estavam dizendo...

- A comida da Irlanda é boa?

- Podemos tentar, já estamos na fila mesmo.

Por uns cinco minutos ambos calaram-se, cada qual entretido com alguma particularidade de onde estavam. A fila não parecia mover-se realmente...

"A Irlanda é tão legal assim? Acho que é a maior fila da feira, ao menos maior do que as que vi até agora."

Após mais quinze minutos de espera conseguiram chegar perto o bastante para ver de relance o interior do 'estabelecimento', e ter uma idéia da causa da grande fila.

- Agora entendi. Rigea-san, prepare-se para conhecer uma lenda viva do Kusari.

- Lenda viva?

- Sim. Himitsu Isono, do segundo ano – “De que sala ele era mesmo?” – que mal chegou aqui e já é considerado lenda. Não há garota que não goste dele.

- Ah é? Como ele é?

“Pronto, outra fangirl. Me deve uma, Himitsu Isono.”

- Loiro, olhos claros (eu acho), super educado com todo mundo, boas notas... Resumindo, perfeito. Ou quase.

- Não tem com alguém ser perfeito...

- Exato, mas ele tem só um defeito: é primo da masoquista da Maiko Isono.

- Quem é essa?

- Maiko Isono, da mesma sala do Himitsu. Uma encrenqueira que tá sempre cheia de machucados.

- Há garotas valentonas nesse colégio?

- Sim, e não só a masoquista. Kusari é muito conhecido pela qualidade do ensino; mas, no submundo, é a escola aonde existem mais delinqüentes nessa parte de Tokyo. Eu mesmo... Já tive problemas com gente assim.

A reação de Ligea foi cômica, semelhante a uma heroína de novelas: levou a mão à boca, exclamando um “Oh!” de surpresa.

- Eu não sabia disso!

- Não se preocupe, é só não se envolver com as pessoas erradas.

- Mas como vou saber quem é certo e quem é errado?

- Hã, não é muito difícil, eu acho... Posso te dar umas dicas se quiser.

- Claro que quero!

Isao franziu a testa, pensativo, e começou a contar nos dedos à medida que falava as “dicas”:

- Bem, fique longe das ganguros*, as daqui são meio ariscas; não se envolva com Maiko Isono; não se envolva com Himitsu Isono porque isso atrai Maiko Isono; não se envolva em brigas, isso pode te marcar; não fale com as irmãs Orihara, elas tem um irmão perigoso; não fale com Yuka Kazami, ela é uma sádica e mentirosa; mantenha distância do cara gigante que fica no portão todo dia antes da aula, ele é da Tokyo Babel, aliás, não se envolva com ninguém da Tokyo Babel – “Só o Shinji, talvez.” – eles não são bem vistos por aqui; cuidado com as garotas do clube de kyuudo, especialmente com Ayako Mitsuzuri, ela é amiga de gente perigosa; não deixe o inspetor Nakano nervoso; não contrarie os professores, em especial Yuri Koigakubo; Ueda Takahashi e quem quer que ande com ele não presta; e tome muito cuidado com as pessoas do Grêmio Estudantil, elas são sinistras, sádicas e falsas. Acho que é só.

- Você deveria escrever um manual, senpai, é difícil lembrar de tudo isso.

- Com o tempo você assimila, fora esses probleminhas aqui é um bom lugar.

- Quer que eu acredite depois de tantas dicas de segurança?

Os dois acabaram por rir juntos; de fato, era complicado ‘sobreviver’ ao Kusari depois de um mal-entendido ou um envolvimento com alunos errados. Professores e inspetores não detinham o total controle do complexo, em parte por seu tamanho - mas em parte pela ascensão da Tokyo Babel e pelo poder que o Grêmio Estudantil acumulava cada vez mais. Ainda não era uma guerra, mas faltava pouco para que a situação se desenrolasse desse modo.

Isao já estava cansado daquela fila, mas, como havia prometido para a loira sobre Himitsu, não poderia abandoná-la ali e sair em busca de Hikari - ou de Shinji, já que este lhe dissera que estaria na feira. Para piorar, a fome aumentava a cada segundo que se passava. Deixando escapar um suspiro, comentou:

- Falta pouco para conhecer o senhor perfeito.

- Você é amigo dele?

O jovem acabou por rir espontaneamente com a pergunta, para surpresa da mestiça:

- Não, não, eu nem conheço ele. Tudo o que sei é através de boatos. Ah, uma última dica: cuidado com os boatos, as pessoas daqui adoram fofocar sobre a vida dos outros.

- Isso é fácil de lembrar, em todo lugar é assim...

- Olha, daqui já dá para vê-lo: é aquele cara loiro ali, entre as duas moças de vermelho.

Ligea olhou para a pessoa indicada, e sua reação foi quase imediata:

- Não gostei dele.

- O quê?
- Não gostei dele. Deve esconder algo por trás dessa máscara de bom moço. Sorri o tempo todo, pelo que vejo... Com certeza esconde algo.

Isso sim era inesperado! Uma garota rejeitando Himitsu Isono, a lenda viva do Kusari! Koyanagi não disfarçou a expressão de surpresa, e demorou alguns segundos para processar a informação...

- Isso é... Estranho.

- Você me acha estranha?

Inesperado, como tudo o que ela dizia.

“Ela não cansa de surpreender e me deixar sem graça?”

- Não, não é você a estranha, digo... É que é estranho não gostar dele.

- Você queria que eu gostasse dele?

“Onde ela quer chegar?”

- Rigea-san, não...

- Você ia gostar se eu gostasse dele, senpai? Como se sentiria?

Aproximando-se cada vez mais, Ligea agarrou-se ao braço do jovem japonês, remexendo-se. Um leve rubor surgiu em suas bochechas, e manteve o olhar fixo nos olhos dele.

- Eu... Eu...

“O que eu digo? Será outro truque? Ou...”

Por fim a pequena olhou para baixo, envergonhada, e reforçou o ‘abraço’ no braço de Isao:

- Senpai, vamos a outro lugar. Já cansei dessa fila. Acho que não há mais nada aqui para se ver, né?

De fato, aquela fila ironicamente não levaria a lugar algum, já que estava ficando cada vez mais desordenada. Koyanagi olhou para os lados, confuso com tudo aquilo: afinal, o que a garota queria?

"Ela é bipolar?

Saindo daquela confusão, Isao e Ligea, ainda presa ao braço dele, acabaram por comprar takoyaki - 'coincidentemente' uma das comidas preferidas do rapaz - em uma das várias barracas espalhadas pelo evento, além de finalmente descobrirem aonde eram as áreas dedicadas ao Japão na feira. Chegaram bem à tempo de ver a exibição de kyuudo, uma das última atrações do período matutino. Ligea ficou empolgada com aquilo e acabou por 'desgrudar' de Isao, que não estava lá muito animado...

"O que Rigea quer comigo,afinal? Ela sabe que gosto de outra pessoa, e está me testando? Não tive uma chance sequer de procurar Hikari... Essa situação não vai acabar bem. É errado eu me envolver com uma, mesmo pensando em outra? Não posso desistir de Hikari, ainda mais depois de descobrir que ela tem envolvimento com os Guardiões! Mas Rigea está tão incisiva, tão íntima em tão pouco tempo, que está me confundindo muito. E essa sensação esquisita que não me deixa, o que significa?"

- Olha só quem eu encontrei por aqui! Olá Isao-san!

Shinji 'surgiu' do meio do povo e, sem aviso algum, aplicou um violento tapa nas costas de Isao - que sorriu, surpreso:

- Você veio mesmo, Shinji.

- Eu não disse que vinha? E aí, o que está achando?

- Legal...

- Como assim 'legal'? Só isso? Isso aqui tá demais! Olha só a quantidade de gatinhas em volta! Já foi em quantos Maid Cafés?

- Shinji, agora não é a melhor hora pra falar sobre isso.

- Quem é esse, Koyanagi-senpai? Amigo seu?

Ligea encarou de forma curiosa o adolescente extrovertido que acabara de chegar. Ele não parecia ser um estudante do Kusari...

- Esse é Shinji Ikagara, Rigea. Ele é um grande amigo meu - "Na verdade o único."

Shinji a examinou dos pés à cabeça, pegou uma de suas mãos e beijou-a gentilmente:

- Shinji Ikagara às suas ordens. Você deve ser a famosa Rigea de quem o Isao fala tanto.

Liggy sorriu, agarrando-se de novo em um dos braços de Isao:

- Então ele fala muito de mim? Mas nós nos conhecemos ontem!

Ignorando o fuzilante olhar de Isao, Ikagara continuou:

- Fala sim, ontem era "Rigea" a toda hora. Ele não parou de falar de você e da feira nem por um minuto.

Sorrindo, a loira se comprimiu ainda mais em Isao, deixando este levemente desconfortável - e corado. Shinji sorria de orelha a orelha, feliz com o resultado de seus comentários. Mas sua expressão mudou quando uma bizarra garota carregando uma katana parou ao seu lado, quase o empurrando, e encarou Isao e Ligea.

- Quem é você?

Os quatro perguntaram ao mesmo tempo, e o silêncio que se seguiu seria longo e constrangedor se Ikagara não 'quebrasse o clima', reconhecendo a garota:

- Espera aí, você é a mesma que esbarrou em mim lá atrás e nem pediu desculpas!

A garota de cabelos negros não deu atenção, ainda olhando para o casal à sua frente. Quando finalmente ameaçou abrir a boca para falar algo um grito foi claramente audível nas proximidades, atraindo a atenção de todos os presentes.

- O que foi isso?

Todos olharam para onde parecia ser a origem do grito para, em seguida, começarem a se dirigir para lá.

- Será alguma briga, Shinji?

- Não duvido... Já estava demorando mesmo a acontecer. Tem gangues rivais passeando por aqui, só esperando uma chance de causar encrenca.

Os quatro - a estranha junto - seguiram o fluxo de pessoas, que já se dispersava em variadas direções. Em pouco tempo, relativamente perto de onde estavam, se depararam com uma cena no mínimo chocante: uma das estudantes que se apresentavam na feira estava caída no chão, sem vida. Ninguém ousava tocá-la, até que duas pessoas saíram desesperadas do meio da multidão que rodeava o corpo. Na certa eram os pais da moça...

- Mas o que aconteceu aqui? - Shinji saiu perguntando aos presentes, enquanto Isao, Ligea e a garota da katana permaneceram a uma certa distância.

"Não é possível que youkais agiriam em meio a tanta gente!" - indagava um pensativo Isao - "Pensando bem, eu nem mesmo sei como atacam, muito menos como são! Para que tantos casos apareçam até mesmo nos jornais, não devem agir ocultos..."

Koyanagi continuaria nesse estado se não fosse pela palavra que a estranha - que ele não havia notado a presença até aquele momento - pronunciou de modo claro e irritado:

- Youki.*

O exterior congelou, nada mais existia a não ser borrões coloridos dançando em volta, aquela colegial e ele. A palavra "youki" ressoava em sua cabeça, ecoando demoradamente e repetindo-se, sem perder a força. Seu sangue, inquieto até o momento, pareceu se estagnar repentinamente, para logo depois voltar a 'ferver' com mais intensidade que antes. A questão saiu de seus lábios de modo independente, sem controle:

- O que disse?

A garota respondeu automaticamente, já abrindo caminho entre as pessoas:

- Youki. Cheiro forte de youkai.

Sem pensar duas vezes - na verdade sem pensar em nada, já que seu corpo reagiu instintivamente diante da mera pronúncia daquelas palavras - Isao se desvencilhou de Ligea e começou a seguir a desconhecida.

- Senpai! Aonde está indo?

- Eu já volto, Rigea - respondeu, olhando para trás - Não saia de perto do Shinji!

O garoto-problema não soube explicar o porquê de Ligea não o seguir - mal sabia ele que seu tom de voz e a firmeza no olhar haviam convencido a garota antes mesmo dele ter terminado de falar. Mas isso não era importante agora: ele estava mais preocupado em manter-se perto o bastante da adolescente de longos cabelos negros que avançava com ímpeto pela confusão da feira.

"Ela sabe sobre youkais."

O coração de Isao acelerou, estava ofegante tanto pelo excitamento da situação quanto pelo esforço em manter o ritmo para não perde-la de vista.

"Será ela uma Guardiã? Será a sorte me sorrindo finalmente?"

O problema é que Isao havia se afastado - sem perceber - das áreas onde a Feira acontecia, dirigindo-se para o complexo esportivo - naquele dia, obviamente interditado. Seguindo-a de perto, entrou no ginásio das piscinas - que, aliás, estava anormalmente frio. Acabou perdendo seu alvo de vista, mesmo com todo o esforço que tinha feito para segui-la.

"Meu preparo físico não chega nem perto do dela... Onde ela pode ter ido?"

Recuperando o fôlego, o jovem resolveu subir uma das escadas até o alto das arquibancadas para ter uma boa visão do lugar - mas qual não foi sua surpresa ao sentir uma lâmina rente a seu pescoço, antes mesmo de dar um passo...

- Quem é você?

A mesma pergunta, a mesma voz; a mesma dúvida.



*"...coloração do tecido": Ligea se veste aqui com roupas similares as da personagem Shinku, do anime Rozen Maiden.

*Dai Yabutsu: tradução literal: “Grande Homem-Serpente” (大蛇物), em japonês.

*"...tornava-se perfeito": Yomi é muito parecida com a personagem de mesmo nome do anime Ga-Rei Zero - semelhança reforçada por igualmente carregar uma katana; mas seu uniforme - cinza-escuro ao invés de preto - e o olhar tristonho e perdido são diferenças marcantes.

*kyuudo: ou "kyūdō", significa "o caminho do arco". Nome moderno da prática de arco-e-flecha típica do Japão.

*ganguro: "face negra" em japonês. É uma moda alternativa entre as adolescentes japonesas, consiste em extremo uso de cosméticos para deixar a pela negra, além de cabelos em cores como loiro ou laranja.

*Youki: “Energia maligna”, em japonês. A energia que emitem naturalmente os youkais, permitindo aos Guardiões captarem sua localização.




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