O Preço da Honra escrita por Julia Nery


Capítulo 33
Encruzilhadas do Mundo


Notas iniciais do capítulo

— Disclaimer das músicas:

> Theme of Love - Final Fantasy IV

Por Nobuo Uematsu ✔ tocada por String Player Gamer


> Melancholic Violin

Por Desconhecido


> Assassin's Creed 3 MainTheme Variation - Assassin's Creed 3

Por Lorne Balfe ✔



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Connor

A caminhada da Mansão Davenport até o porto pareceu ter quilômetros de extensão enquanto Connor carregava Emma para o cais em seus braços; ela havia agradecido e se despedido de Achilles, que agora os assistia partir parado no batente da porta de frente; apesar de tudo, o velho parecia tocado pela partida dela. Ela olhava por cima do ombro de Connor, provavelmente desejando manter seus olhos cansados nas paredes de tijolos vermelhos que começavam a desaparecer entre as árvores; tinha um casaco de peles sobre os ombros emagrecidos, e a perna quebrada estava envolta em ataduras, além de duas estacas de madeira que seguravam o osso no lugar. Nuvens de vapor se formavam em frente aos rostos de ambos, dada a baixíssima temperatura que marcava o começo de dezembro.

James havia expressado seu desejo de falar com Emma antes que partisse. Imaginara que queria ouvir por completo a história do que se passara no Norte, uma vez que ele próprio ainda tinha dúvidas do que acontecera. Apenas tentar lembrar fazia sua cabeça doer, e suspirou pela terceira vez desde que haviam começado a andar. O fazia feliz o fato de que ela conseguira completar seu objetivo, mas não sem, no fim, ter de suportar toda a dor sozinha, além de quase se matar tentando salvar ambos. Haviam conversado sobre isso de manhã, quando ela despertara, mas nada que dizia parecia surtir qualquer efeito. Havia prometido que a protegeria, e falhara.

“Livre-se da culpa”, dissera ela. “Não havia nada que poderia ter feito”.

No entanto, aquela era uma definição perfeita para todos os dilemas de Connor. Mais uma vez, o controle de seu próprio destino estava fora de suas mãos. Da mesma forma quando sua vila fora atacada, tantos anos atrás, da mesma forma quando sua mãe morrera diante de seus olhos. Ele falhara em impedir que Emma saísse de uma batalha quase morta, com ferimentos que provavelmente a assombrariam pelo resto de sua vida, e agora teria de assisti-la partir. 

Contraiu o maxilar, tentando impedir que seus braços tremessem. Estava esgotado de ser testado pelo destino daquela forma; esgotado de reprimir tanta frustração dentro de si. Emma percebeu sua inquietação, mas imaginava que, assim como ele, ela temia suas próprias palavras. Seus lábios abriram por uma fração de segundo, mas se fecharam logo em seguida quando viu que haviam chegado ao porto. Se encolheu, encostando a bochecha no ombro de Connor, também dando um longo suspiro.

↓ Música ↓

Já havia visto o navio de Timothy naquela semana; uma fragata imponente e bem armada, da qual ele gostava de se gabar, clamando ser uma das maiores posses da Ordem. Seus três pares de velas vermelho-escuro projetavam uma enorme sombra sobre o Aquila e o Mockingjay, agora ancorados em pontos mais distantes para que a embarcação — o Bohemian Melody — pudesse aportar no píer da fazenda.

A tripulação de Timothy terminava de levar a bordo os caixotes e barris com mantimentos que Achilles os havia concedido para a jornada, carregando-os em duplas para dentro através de uma longa rampa de madeira que os conectava ao Melody. James estava parado no píer, ao lado do capitão, e ambos se viraram com a chegada dos dois. Thatch tinha uma mão na espada e a outra no bolso do casaco de peles, e sua expressão era séria.

— Preparar para zarpar — Timothy comandou num brado, enrolando de volta um mapa que tinha em mãos, e aproximou-se quando Connor colocou Emma no chão, pegando-a e passando seu braços sobre seus ombros. — Pronta?

Antes que pudessem ouvir a resposta de Emma, o grito agudo de uma águia soou primeiro, e todos olharam para o céu quando Akwe voou próxima às velas do Melody, e pousou em uma das vigas no mastro, os olhos amarelos focados em sua companheira. Aparentemente, a ave não iria a lugar algum sem ela. Observou enquanto a assassina sorria, e depois se virava para fitar Connor, que agora estava plantado no lugar, as mãos fechadas em punhos.

Timothy deu um passo em direção ao navio, começando a subir a rampa, mas quando ela não o acompanhou, ele parou. Então, mesmo com tantos impedimentos, Emma tentou dar um passo na direção de Connor, soltando-se do capitão. É claro, a tola falhou quando apoiou seu peso na perna ferida, mas assim que Connor a segurou, ela o abraçou, laçando seu pescoço com os braços, os únicos membros que ela ainda conseguia controlar. Lentamente, Connor a envolveu de volta.

— O que está fazendo? — Murmurou.

— Obrigada por tudo — Emma sussurrou, baixo o suficiente para que apenas ele conseguisse ouvi-la.

Novamente, falhou em arquitetar uma resposta. Moveu-se para tocar suas testas, os olhos fechados, e sentiu-se fraquejando ainda mais quando ela avançou mais e cobriu seus lábios com os dela. Sentiu raiva, por um breve segundo; ela não estava tornando nada mais fácil. Quando se separaram, seus lábios gelados se abriram enquanto ela sussurrava:

— Eu sinto muito — e tentou se afastar.

— Vamos, Emma — Timothy a pegou de volta, e Connor o ouviu murmurar antes de se afastarem e sua mão de desvencilhar da dela: — Não prolongue isso mais do que é necessário.

Todos os seus instintos gritavam em seu interior, implorando que fizesse algo. Manteve-se parado, no entanto, como uma árvore centenária que assistia enquanto os anos passavam ao seu redor, sua mente perdida como uma folha dançando com a brisa. Num silêncio torturado, Connor os observou enquanto subiam juntos a rampa, e abordavam o navio. Para seu maior desapontamento, Emma não olhou mais para trás.

 

Emma

 

“A equipe de recuperação retornou esta tarde; infelizmente a mão de obra à disposição nestas colônias esquecidas por Deus não é impressionante, e sendo sua língua-mãe o espanhol do Rei Carlos III, eles raramente entendem o inglês. No entanto, trouxeram-me da Jamaica o Cajado de Seth, então pouco importa seu reduzido intelecto. Hoje também marca a data em que Capitão Phillips deveria me mandar seu relatório semanal dos mantimentos no Forte Bayonére — o qual os homens amorosamente nomearam de Garganta de Calypso, mas não recebi sua correspondência. Pode ser tolo e inconsequente, mas nunca falhou em reportar a mim na data correta. Temo que isso apenas possa significar uma coisa: os Assassinos o encontraram.”

“Minhas suspeitas confirmaram-se quando, em sua mais recente visita ao Norte esta manhã, Mestre Kenway informou-me de que Phillips está morto. Diz ter ouvido a notícia através de um oficial responsável por uma canhoneira que velejou pelos arredores após o ataque de cinco navios que assolou o Forte. Mestre Kenway disse que foi um erro meu permitir que os Assassinos pusessem as mãos em uma frota tão fortemente armada. O oficial detalhou o que viu, dizendo que Ronald fora pendurado pelo pescoço depois de ser assassinado por uma mulher de cabelos marrom-avermelhados. A selvageria de Emma Pierce não parece suscetível a um fim, e a cada vez que ouço a menção de sua presença, percebo o quão atrevida ela vem se tornando. Expressei a Mestre Kenway a necessidade de elimina-la, junto com qualquer um de seus associados, mencionando também meu desejo de ordenar a Benjamin Franklin que comece seu trabalho o mais cedo possível. Segundo o cientista, a localização do Castelo Skadi, onde faço minha morada em minha estadia na América, forçará o Diamante a revelar seus segredos, principalmente devido a algo que ele chama de “campo magnético”. Não compreendo a maioria dos termos científicos que o homem usa, mas meu único requerimento é que ele realize suas tarefas com dedicação e tenha sucesso. Kenway concorda com minhas visões tratando da morte de Emma e seus aliados, mas diz que isto têm de ser feito antes de qualquer avanço relativo ao Diamante ou ao Cajado. Ele não quer arriscar a possibilidade de os Assassinos colocarem as mãos nos artefatos quando seus poderes já estiverem despertados. No entanto, eu nunca permitiria que tal coisa viesse a acontecer.”

“Os vales, as montanhas e a neve são a única coisa que se mantêm entre este castelo e a assassina, e é apenas uma questão de tempo até que ela siga seu caminho até mim. Consigo senti-la se aproximando; a cada passo que dá ouço um sussurro reverberar pelos cantos empoeirados. Contudo, quando me viro, ela não está lá. Sei que esta paranoia é fruto da infeliz ansiedade que agora parece ser a única coisa que movimenta meus velhos órgãos. No tempo que lhe restava neste lugar, ordenei a Franklin que pusesse seus esquemas em prática. Pedi-lhe também que montasse armadilhas pelo castelo usando sua estranha e poderosa invenção chamada “eletricidade”. Em uma margem de dois dias ele foi capaz de cumprir suas ordens com perfeição. Explicou-me que o Diamante funciona como uma lareira crepitante; sem lenha, não se manterá acesa, o que levou-me a entender que eu teria de manter este fogo se quisesse a joia funcionando. No entanto, quando as descobriu, Kenway sentiu-se desafiado por minhas ações; ele não entende que o futuro de todas as nações está em minhas mãos. Ele retirou todos os soldados do castelo, deixando-me apenas com os corredores e torres vazios, com silvos do vento e estátuas empoeiradas. O peso agora reside em minhas costas, com o Diamante e o Cajado à mercê de minhas vontades. Ordenou que eu deixasse o castelo para que continuássemos as pesquisas num lugar seguro, mas eu estou ciente de que esta arma que agora possuo, fora deste local, será nada mais que uma mera decoração. Tentei fazê-lo compreender que a pesquisa está completa. Com aquilo, os Assassinos não teriam chances, e logo seriam exterminados como pragas. Kenway não foi convencido. Ameacei-o quando tentou tirar o Cajado de mim, quase dando um fim a sua vida. O garoto ainda tem muito a aprender. Chamou-me de traidor, expulsando-me da Ordem Templária antes de sair do castelo, levando consigo Franklin e os últimos dois cavalos. Vi-me incapaz de me importar com sua decisão. Sei que minha vida chegará a um fim, logo. Sinto-a cada vez mais perto. A deixarei que venha, no entanto. Contanto que eu respire o suficiente para vê-la sofrer ainda mais, darei as boas vindas à Morte. Tenho em minhas mãos o poder de nossos antepassados, e não permitirei que a esperança e a liberdade viva na cabeça de uma mulher que é movida pelo desejo de vingança e redenção, numa crente de um dogma onde tudo é permitido. Emma Pierce morrerá neste castelo, ou viverá às sombras dos fantasmas de sua dor e sofrimento, que a aterrorizarão para sempre. Eu terei certeza disso.”

***

Emma lera aquelas palavras no diário de Eberus repetidas vezes, e sentia a presença do templário nas páginas, tão evidente e tão forte que parecia difícil acreditar que realmente estava morto. No fim de sua vida, o grão-mestre se tornara tão obcecado por ela quanto ela própria era por ele. A alegrava saber que o aterrorizara tanto assim. A definição de “monstro” era apenas uma questão de ponto de vista, afinal.

A jornada de volta à Inglaterra foi abençoada com ventos saudáveis, livre de tempestades devastadoras ou calmarias arrastadas. No entanto, sem os cuidados constantes de Dr. Lyle, nas primeiras semanas Emma sentira tanta dor que não conseguia sair de sua cabine, um cômodo grande que ocupava toda a parte de trás do nível inferior do Melody. Timothy ocupava-se, na maioria do tempo, manejando o timão, e descia algumas vezes para checá-la e ter certeza de que não morrera ainda. Seguindo suas ordens, alguns homens lhe traziam comida e água doce. Algumas vezes, de sua cama improvisada, conseguia ouvi-los cantando no convés.

No segundo mês, Timothy recomendou que saísse da cabine e deixasse sua pele receber um pouco de luz. Emma estava hesitante, e apesar de estar menos intensa, a dor tornara-se uma inquilina permanente, fazendo com que estivesse sempre com um péssimo humor. Os marujos eram menos interativos que a tripulação do Aquila, raramente arranjando atividades para se entreter que variassem além de jogos de dados ou cartas, e quando finalmente aportaram em águas inglesas, havia trocado, ao todo, menos de vinte palavras com eles.

O homem ao mastro anunciou terra à vista, e não era difícil reconhecer a Inglaterra à frente, devido à nuvem cinza que parecia espiralar sobre a nação durante a maioria dos dias do ano. Timothy escolheu manejar o navio pelo rio Tâmisa, ancorando no coração da cidade, deslizando por entre as dezenas de embarcações que tinham o leito do rio como sua morada. Não apenas o Porto de Londres, mas todas as ruas à vista pareciam cheias, mais movimentadas do que Emma já vira. Akwe sobrevoava o ambiente, colocando os olhos aguçados naquele ambiente pela primeira vez.

Quando a âncora foi baixada, a assassina estava sentada na balaustrada, segurando-se nos cordames trançados. Graças aos dois meses, os cabelos haviam crescido, atingindo comprimento suficiente para a ponta da trança desordenada na qual estava preso tocar a base de sua coluna. Por baixo de uma capa grossa de tecido escuro, usava uma blusa simples de linho, calças e botas, além de um tecido vermelho amarrado na cintura por baixo do cinto.

Deixando o Melody para trás e puxando os capuzes para cima para se proteger da chuva fina, Timothy e Emma cruzaram juntos a cidade, dirigindo-se para o distrito de Whitechapel, onde se apresentariam para o conselho. Levava consigo uma bolsa surrada de couro que carregava o Diamante, o Cajado e toda a papelada que adquirira, além do diário de Eberus. Seguiu Timothy em silêncio, pois simplesmente não conseguia calar sua mente. Havia muito tempo desde que ouvira da má saúde de seu pai, e apesar de não concretizar os pensamentos, sabia que não ouviria boas notícias.

Observou a cidade, que parecia nova a seus olhos que não a viam fazia quase cinco meses. Mesmo Whitechapel, um distrito que era tipicamente calmo e silencioso, estava cheio de carruagens transitando pelas ruas lamacentas, carregando todo tipo de carga com selos de países que Emma nunca ouvira falar. Mesmo já sendo a maior cidade do país, Londres parecia estar se tornando um local cada vez mais influente. Perguntou-se se este era o motivo de os templários estarem voltando seus olhos para aquele lugar repulsivo; aparentemente, naquele momento mais do que nunca, viam um futuro por trás das dezenas de prostíbulos e tavernas imundas.

Ainda atordoada pela dor em sua perna, Emma mancou durante a maior parte do trajeto, e ficou feliz quando Timothy finalmente reduziu o passo, percebendo que já haviam chegado. Lembrava-se da pequena alameda escura e úmida que levava à porta da casa com janelas falsas onde a Ordem fazia sua sede, mas a praça por onde passaram para chegar ali era totalmente desconhecida, e incluía novos bancos, canteiros com magnólias e até uma estátua de um homem qualquer que não a interessava.

— Pode melhorar seu humor — Timothy murmurou enquanto posicionava sua lâmina-oculta na fechadura especial da porta. Sua barba também havia crescido. — Sua missão está completa. Tem o direito de se regojizar em seu sucesso.

Sabia que ele estava tentando ser prestativo, mas Emma se manteve em silêncio. O sentimento de plenitude que ela sentira um tempo atrás se fora por completo, como a chama de uma vela sendo extinguida. Sentia-se incompleta, de certa forma. Estava na cidade onde crescera, e, no entanto, se sentia uma completa forasteira. Ergueu o rosto para o céu cinza e observou Akwe, pousada no telhado alto da casa. Ponderou como sua companheira tinha sorte. Então, entrou pela porta aberta atrás de Timothy.

A sede, assim como Londres, parecia ter tido sua população aumentada. A observaram durante todo o caminho até as grandes escadarias que levavam até a câmara do conselho. O ambiente estava escuro, como sempre, iluminado apenas por tochas, mas Emma conseguiu ver a expressão de seus Irmãos. Todos estavam surpresos em vê-la ali; claramente notícias de sua missão eram ansiosamente esperadas. No entanto, nada superara os rostos dos membros do Conselho quando, após ser anunciada por Timothy, que ficou do lado de fora, Emma deu um passo para dentro da câmara.

A maioria dos Mestres não estava presente, como Emma esperara; havia muito acontecendo lá fora e sua ajuda provavelmente era requerida. Mestre Lucius foi o primeiro a se levantar enquanto Emma se curvava lentamente diante de seus mentores, mas apesar de seu cuidado, os músculos de seu abdômen se contraíram, e a dor a fez engasgar, dando um passo débil para frente, apertando o estômago.

— Emma —Lucius começou a andar em direção a ela, os olhos arregalados, mas a assassina ergueu a mão enluvada, indicando que estava bem e que ele não precisava se dar o trabalho.

— Mestres — endireitou-se, engolindo em seco, o rosto levemente mais pálido e baixou o capuz. — Sei que levei mais tempo que seria adequado, mas retorno de minha missão com sucesso —foi até a mesa e depositou a sacola de couro no centro. — Trago o Diamante de Kalista, e um novo artefato, o Cajado de Seth, além dos pergaminhos contendo as poucas informações que existem sobre estes objetos e o diário de Eberus Fitzgerald, que está morto, assim como seus comparsas Thomas, também conhecido como Rufus Mason, e o Capitão Ronald Phillips. Connor, da Irmandade das Colônias, está cuidando do restante da presença Templária na América. Os pergaminhos não oferecem a luz que procuramos, mas é um alívio que tudo agora esteja em posse da Ordem.

Os mentores mantiveram-se em silêncio, diregindo as informações que Emma atirara a eles em um só fôlego, e todos olharam ao mesmo tempo para a sacola. Mestre Samson avançou, pegando com cuidado a aba da bolsa, abrindo-a e verificando seu conteúdo. Os outros mentores, Aedan e Javier, Lucius também, observaram com cuidado quando Samson pegou o Diamante em suas mãos enluvadas, observando-o com seriadade. Estava apagado e opaco.

— Estudaremos tudo com cautela — Aedan puxou os papéis, correndo os olhos pelos desenhos e textos antes de erguer os olhos para ela outra vez. Seus olhos sêniores embaixo das sobrancelhas grisalhas eram solidários. — Você está bem, Emma?

— Percebo que passou por árduos empecilhos — Lucius comentou, sua expressão triste.

— Sim, Mestre Lucius — Emma baixou os olhos. — Mas pouco importam minhas feridas — fechou as mãos em punho. — Eu... gostaria de saber de meu pai.

Os mestres estudaram sua aparência cansada e doentia. Apenas a sutil mudança nos olhos de cada um foi o suficiente para Emma entender o que hesitavam em verbalizar. Havia ficado fora tempo demais, e não iria surpreender se os mentores houvessem esquecido de que ela ainda não sabia. Contraiu o maxilar, tentando controlar o calor que subiu por seu corpo; a angústia fez sua visão se embaçar, e sentiu uma pressão estranha em suas têmporas. O vazio em seu peito se intensificou mais do que ela acreditava ser possível, e, de repente, a sala pareceu cair em uma penumbra mais intensa.

— Todos sentimos muito, Emma — Lucius aproximou-se, descansando a mão enrugada em seu rosto pálido, mas ela não registrava suas palavras. — Ahberon foi nosso irmão, em armas, na Ordem, e em alma.

— Seus feitos não serão esquecidos, Emma — Javier murmurou. — Fez um ótimo trabalho. Seu pai, sem dúvidas, teria muito orgulho.

— Realmente é uma surpresa que esteja aqui, viva, e não desejo soar insensível — Samson baixou o capuz vermelho escuro, revelando seus cabelos negros. — Mas temos de informar a ela sobre Crawley. Kara informou-nos que logo partiriam da Casa.

Aquelas palavras atiçaram os ouvidos de Emma, e ela ergueu os olhos que até então encaravam o chão como se a resposta para seus problemas estivesse ali. Samson retribuiu o olhar, e Lucius ainda a encarava com preocupação, preparado caso Emma decidisse cair de suas pernas ou algo parecido.

— T-Timothy mencionou Crawley — Emma sussurrou, obrigando-se a manter uma postura normal, mas era difícil controlar o tremor em sua garganta seca.

— Sim, todos em sua guilda serão transferidos para a sede no Sul — Samson prosseguiu, e sua voz era um eco distante na mente de Emma. — A localização da Mansão Pierce foi comprometida, e duvido que esta informação esteja morta com Eberus. No entanto, com a nova estrada que foi construída, o caminho até Crawley será menos tortuoso. Acredito que Frye esteja atrás de outros Artefatos, mas apenas ele poderá lhe informar.

— Agora que Emma está aqui, creio que podemos dar seguimento a nossos planos para ela — comentou Aedan, apoiando as mãos sobre a mesa. — Teria sido do desejo de Ahberon que ela tomasse parte neste conselho. Inúmeras vezes, ela se provou capaz de defender o ideal em que nossa Ordem acredita, e tenho certeza de que ela seria uma boa mentora em Crawley, tanto para seus antigos irmãos, quanto para os novos recrutas.

— Estou de acordo — Lucius murmurou. — O legado dos Pierce tem de continuar. Emma se tornará uma grande Mestre Assassina.

— Certo, certo, podemos promovê-la, mas não há tempo para formalidades — Samson coçou o pescoço. — Há muito a ser feito, especialmente com as novas informações que temos em nossas mãos.

— Eu irei para o Sul — Emma afirmou num sussurro quase inaudível. — Os guiarei e treinarei com as forças que me restam. Obrigada pela confiança que mais uma vez depositam em mim — Emma puxou o capuz da capa para cima novamente. — No entanto, se não se importam, eu gostaria de me retirar, e ver meu pai e meu lar uma última vez.

***

↓ Música ↓

Kara a recebera com surpresa e alegria, e Emma sentira que a velha amiga desejava ouvir tudo de sua jornada e sua missão, mas era uma história para outro momento. Pedira para ser levada ao túmulo de seu pai, e Kara o fizera sem hesitar. Respeitara o luto de Emma, e sua necessidade de um pouco de espaço e silêncio após os meses mais turbulentos de sua vida.

Encarou a lápide de mármore com pesar, ajoelhando-se e inclinando-se para frente, correndo os dedos sobre a bela caligrafia dourada onde se lia “Ahberon Pierce 1722 – 1780”, sobre a insígnia assassina. Fora enterrado sob a sombra de um enorme carvalho na colina acima da Mansão, ao lado de sua mãe. Uma brisa úmida balançava os poucos fios rebeldes soltos de seu cabelo livre pelo capuz baixado.

— Este lugar sempre foi seu refúgio — Emma sussurrou, descansando as mãos no colo. O orvalho na grama umedeceu o tecido sob seus joelhos. — Sei que desde a morte de minha mãe, o senhor desejou um dia encontra-la novamente. Creio que o pensamento de que está ao lado dela seja meu único conforto — silenciou-se um segundo para suspirar.

"Estou cansada, pai. Meus membros doem, e meu peito lateja com a tristeza. Nunca me imaginei como alguém que precisasse de outra pessoa. No entanto, o senhor e ela se foram, e a única pessoa a quem confiei meu coração se encontra fora de meu alcance. Nunca me senti tão sozinha. Não me desfaço dos membros de nossa Ordem que estão ao meu lado, e me têm agora como sua mentora, no entanto, a solidão vem a mim. Choro por ti por dentro, e conhecendo-lhe, me diria para não fazê-lo, pois sou uma arma, e armas não choram. Tudo que posso dizer é que sinto muito por não ter estado aqui quando partiu. Gostaria de ter estado ao seu lado em seu momento de sofrimento, para lhe fazer companhia em seus últimos momentos. Acredito que é um dos custos com o quais terei de arcar com minha vitória. Não pude lhe dizer minhas palavras de gratidão, mas as direi agora. Agradeço-lhe por tudo que fez por mim. Mesmo com nossas desavenças, criadas pela escuridão do luto em sua alma, ensinou-me sobre o valor da coragem e da dedicação, e nunca deixou de fazer sacrifícios em sua lealdade com esta guilda, e a Ordem. Espelhar-me no grande homem que o senhor foi fez-me quem sou hoje. Levarei comigo toda a sabedoria que me passou. Sua memória nunca será esquecida, e seu espírito viverá nestas colinas para sempre."

Levantou-se com cautela, dando um passo à frente para descansar a mão sobre a lápide, o rosto tomado por sua tristeza, e a placa de pedra estava fria o suficiente para que sentisse sua temperatura através do couro da luva. Brevemente, o vento soprou com mais força na colina, fazendo as folhas do carvalho murmurarem num tom triste e melancólico. Em algum lugar, distante como um sonho, um trovão reverberou.

— Adeus... meu pai. Apenas as divindades sabem como sentirei sua falta.

***

Emma cruzou o hall principal da casa, sentindo o cheiro de tapeçaria e lavanda do qual sentiria falta. Não parecia estar no mesmo lugar, sem o murmúrio de seus moradores, ou das batidas de panelas na cozinha; todos os corredores agora estavam vazios e os móveis cobertos por tecidos brancos. Após correr os olhos pela última vez pelas paredes de granito bege e cortinas escuras, viu Kara e Timothy esperando do lado de fora, em frente à porta, e foi até eles.

Hesitante, Emma fechou a porta da frente, trancando-a com sua lâmina oculta. A bela mansão que pertencera a muitas gerações de seus antepassados ficaria agora trancada apenas com os fantasmas, as memórias e a poeira. A propriedade seria leiloada junto com os móveis. O futuro da construção a entristecia, de certa forma, pois provavelmente seria demolida devido às trancas especiais, impossíveis de se abrir sem uma lâmina-oculta. Contudo, era a opção mais segura.

Todos os assassinos estavam no pátio em frente à entrada, ao todo trinta ou quarenta, e três comboios estavam preparados próximos ao enorme portão de ferro, carregando mantimentos para a viagem. Um dos assassinos trouxe, puxado pela rédea, o alazão negro de Emma, Prince, que relinchou alegremente ao ver sua dona. Respirou fundo e continuou a andar, dando as costas para a mansão e descendo as escadarias com uma expressão neutra.

↓ Música ↓

Parou ao lado de Prince, acariciando seu pescoço enquanto ele se a farejava. Quando Emma virou-se para os assassinos, visando comandar que partissem, todos tinham seus olhos nela, focando-se em sua nova Mestre com dúvida e ansiedade. Um pensamento, então, acertou-a como um raio; aquelas pessoas, agora, estavam sob sua responsabilidade. Tinha de encorajá-los.

— Um homem sábio uma vez disse — começou, endireitando-se e dando um passo à frente. — “Somos um. Enquanto dividimos a glória de nossas vitórias, também dividiremos a dor de nossas derrotas. Desta forma, nós crescemos mais próximos, crescemos mais fortes”. A verdade nestas palavras não pode ser medida. Encaramos muitas desventuras, mas, isto também, superaremos. Somos uma família, uma irmandade. Aprendi da maneira difícil que nada bom vem do temor de um futuro desconhecido. A vida é um ciclo de adaptações, e devemos fazer o melhor com o que nos é disposto. Além disso, não importa onde estejamos, não importam as circunstâncias, nós nunca pararemos de lutar. Somos Assassinos; este é nosso eterno compromisso.

Em sincronia, cada um dos assassinos, colocou sua mão direita fechada em punho sobre o coração e, lentamente, curvaram-se diante dela. Emma piscou algumas vezes, atônita, e seus lábios tremularam, tocada por aquele gesto simples, mas extremamente significativo. Akwe sobrevoou o pátio, emitindo seu grito agudo, suas penas refletindo a pouca luz do sol. Emma vestiu o capuz e apoiou-se na sela de Prince. Impulsionando-se para cima, montou-o.

— Vamos em frente — comandou Emma num tom alto e claro.

“Crawley nos espera.”


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Notas finais do capítulo

Ficou comprido, mas acho que como episódio final dá pra perdoar kkk
Bom, é isso, queridos. Emma conseguiu recuperar sua honra e o respeito de seus irmãos, além de agora ser Mestre Emma não é mesmo?
Sei que sempre repito isso, mas é pra vocês entenderem o quanto significa pra mim aqueles que acompanharam até aqui, depois de quase três anos desde que postei o primeiro capítulo da fic. Não foi fácil, mas o apoio de vocês foi crucial para que chegássemos tão longe. Espero que todos tenham gostado.
Eu decidi que vou colocar a história como terminada, e vou colocar a "continuação" em outra história. Porque tecnicamente, a história do Diamante de Kalista e Emma Pierce acaba aqui, o que vem depois é apenas um extra. O que vou postar vai ser apenas o epílogo, dando uma espécie de final alternativo, para aqueles que querem saber o que acontece com a Emma depois dos acontecimentos deste aqui. Não é uma sequência direta dos fatos, vai acontecer cerca de três anos depois, então é só um capítulo extra de despedida.
Mas é isso, meus amores. Obrigada mais uma vez a todos que leram!
Não vou sair do Nyah, ainda tem muitas histórias que quero postar aqui, então fiquem ligados!
O Aquila agora aporta e recolhe suas velas, após uma longa jornada!
Até a próxima!