O Preço da Honra escrita por Julia Nery


Capítulo 23
Sangue e Neve




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/533470/chapter/23

Emma acordou em um processo lento. Ela havia despertado, mas estava tão terrivelmente confortável em sua cama que não queria abrir os olhos. Mal conseguia imaginar o frio que deveria estar lá fora, e a ideia de ficar embaixo dos cobertores parecia mil vezes mais atraente. Mas, é claro, sempre havia algo acontecendo na fazenda Davenport que a obrigasse a se levantar.

Desta vez, foram disparos de canhões.

O som veio da baía, e Emma puxou as cobertas para o lado, e sem dar muita atenção ao fato de que ainda estava completamente vestida, correu até a janela para tentar enxergar algo além do desfiladeiro onde a casa de Achilles se encontrava, mas não havia nada a ser visto.

Ela se apressou a amarrar o cinto de armas de volta à cintura, e lavou o rosto na bacia de água morna que Diana deixava em sua cômoda toda manhã. Não que Emma precisasse de uma cômoda; suas roupas quase nunca passavam muito do padrão, a não ser quando seus robes estavam tão repletos de sangue que precisavam ser lavados.

Emma saiu então de seu quarto, sentindo o frio abraçando-a, ainda ouvindo os canhões à distância, e quando chegou ao primeiro andar, e viu Connor ainda no escritório observando os mapas, apressou-se a questioná-lo. O assassino também se encontrava em seus robes, com os cabelos levemente longos caindo ao lado do rosto. Se não estivesse tão distraída, ela teria tomado um segundo para apenas observá-lo ali, em toda sua concentração.

— O que é isso? — ela entrou no escritório, ainda tentando transformar seu cabelo longo e bagunçado em uma trança organizada. — Estamos sendo atacados?

— É claro que não — Ele bufou, ainda com os olhos atentos nas folhas abertas sobre a mesa. — Estão testando os canhões novos para o Aquila.

— Onde conseguiu canhões novos?

— Não percebeu a ausência de Achilles nos últimos dias? — explicou ele. — Ele foi à cidade.

Emma parou onde estava, normalizando sua respiração, sua pressa se desfazendo outra vez. Ela suspirou, e apenas então parou para tentar entender a cena em sua frente.

— Tão cedo, e você ainda está lendo estes mapas? — disse, dando a volta na mesa, e agora correndo os dedos pelos almanaques antigos de Achilles na estante do escritório. — Passou a noite inteira aí?

— Não — ele finalmente ergueu os olhos marrom-café para ela, com um pouco de humor neles. — Não é tão cedo quanto você pensa.

Emma franziu suas sobrancelhas finas e virou-se para o relógio de madeira que ficava acima da porta da frente, visível através do arco que servia de entrada para o escritório. Era quase uma hora da tarde.

— Por deus, eu dormi tanto assim? — Realmente, Emma percebia seu cansaço praticamente desaparecido, principalmente após uma noite inteira de conversas com James.

— Eu não quis acorda-la, você parecia cansada.

Então, alguém bateu na porta em um ritmo apressado. Emma começou a se movimentar para atender, mas Connor foi à sua frente. Ela espiou por cima do ombro dele enquanto atendia o homem que viera entregar cartas. Um sujeito de aspecto rústico e rural, que levava na cabeça um chapéu de palha envelhecido e no ombro uma bolsa de couro manchada repleta de remendos.

— Bom dia — disse ele. — Carta urgente para Emma Pierce.

Emma sentiu um arrepio ao som de seu nome, e se perguntou de quem poderia ser aquela carta. Ela não tinha contatos nas colônias, pelo menos não para que mandassem algo urgente.

— O que quer dizer com isso? — Emma perguntou antes que Connor pudesse dizer algo.

O homem teve de se erguer um pouco na sela para conseguir ver Emma atrás de Connor. Ele removeu a carta da sacola e a esticou para a assassina, que esticou o braço por cima de Connor para pega-la. No fecho do envelope, havia o selo marcado em cera negra do símbolo da guilda de Emma; a insígnia assassina cercada por galhos de Pinheiro e duas espadas atrás se cruzando. As pernas de Emma vacilaram. Aquilo não poderia ser bom.

— O envelope chegou em Boston através de um falcão com asas azuladas e olhos brancos — explicou o entregador. — Imaginei que não era algo comum, uma vez que cartas vêm junto com navios e demoram meses para serem entregues. Aquelas aves podem atravessar o oceano em uma velocidade inacreditável. Imaginei que fosse algo urgente.

Aquilo apenas aumentou a curiosidade de Emma e ela foi para dentro da casa novamente, esquecendo-se de agradecer ao homem. A última coisa que ouviu foi a porta fechando-se atrás dela, antes de rasgar a carta com seus dedos ansiosos e começar a ler:

 

“Querida Emma,

 

Mestre Lucius não ficará muito satisfeito quando descobri que usei Zarat, uma de suas aves favoritas, para lhe enviar essa carta. Mas ela é uma das aves mais velozes que possuímos, então acredito que ele entenderá. Temo dizer que não trago boas notícias.

Seu pai encontra-se muito doente. O clima frio de inverno, como você bem sabe, nunca é gentil nestas montanhas da mansão. Os curandeiros da guilda não sabem dizer ao certo o que é; tentam dizer gripes e infecções internas, e lhe dão infinitas medicações e alimentam-lhe com comidas quentes, mas ele não parece deixar do mesmo estado. Eu fico lhe fazendo companhia às vezes, e devo dizer que, apesar de todas as doenças que os curandeiros acusam, é tristeza que vejo em seu rosto. Afinal, dois dias após sua partida, três meses atrás, nós o encontramos no frio da manhã desmaiado ao lado do túmulo de sua mãe, e acreditamos que ele tenha passado uma noite inteira de tempestade ali. Tão perto do aniversário de morte de Mestre Sabrinna, e sabendo o quanto Mestre Ahberon a amava, não me surpreende tanto."

Emma apertou as bordas da carta, engolindo em seco e fechando os olhos. Sete anos atrás, mais precisamente algumas semanas antes daquele presente dia, sua mãe havia morrido a um acidente nas reformas da mansão. Estivera tão concentrada em sua missão que aquela memória ruim acabou passando despercebida. Emma reabriu a carta, com o coração cheio de pesar, e continuou.

"Não vou recobrir esta carta com ilusões e palavras de conforto, pois sei que você não aprecia isso. Não acho que seu pai ficará muito mais tempo entre nós, Emma. No entanto, eu acredito que ele esteja aguentando, usando suas últimas forças para seu retorno; acredito que ele queira dizer adeus à sua única filha.

Eu sinto muito, Emma. Verdadeiramente.

Espero que Zarat faça a travessia em segurança, e que você receba esta carta. E se você recebe-la, não sinta a necessidade de responder. Assim que a carta chegar, a ave é treinada para voar de volta para casa imediatamente.

Sinto sua falta, minha querida amiga. Espero que tudo esteja indo bem em sua missão, e que seus objetivos estejam sendo cumpridos com sucesso. Você é uma assassina especial, Emma, e eu acredito do fundo de meu coração que você nos fará orgulhosos. Inclusive seu pai.

Com amor e pesar,

Kara."

Emma segurou a carta, ainda observando sem realmente ver a bela caligrafia de Kara pintada no papel. Percebeu suas pernas fraquejarem novamente, e teve de se sentar no sofá, em frente à lareira. Sentiu seu estômago se contorcendo, seus músculos se contraírem, e ela esmagou o frágil pedaço de papel entre os dedos longos.

Ela queria chorar, sentindo uma adaga atravessar seu peito com a força de mil homens, e assistindo de perto mais um pedaço de sua miserável vida se desfazer como migalhas de pão; mas as lágrimas não vinham. Queria ficar furiosa, com toda a injustiça das circunstâncias na qual ela se encontrava, e socar algo, talvez sair para matar alguns guardas; mas ela havia se cansado de apenas lamentar-se das desgraças que pareciam ocorrer a todo momento. E ela sabia que seu pai estava se mantendo vivo por causa dela, mas não apenas para dizer adeus; para lhe dar motivação para continuar. Agora, mais do que nunca, ela completaria aquela missão. Em honra de seu pai.

— Emma — ela ouviu Connor chamando-a, parecendo estranhamente muito distante, como se a quilômetros de distância. Ele havia lhe dado tempo para ler a carta, e provavelmente havia notado a mandíbula de Emma tensionada, e a força com a qual ela agora segurava a carta em suas mãos. — O que é?

Emma engoliu em seco, umedecendo os lábios com a língua. Respirou fundo e se levantou, amassando a carta nas mãos por completo, e a jogou na lareira apagada. O papel quicou debilmente nas cinzas, e caiu no chão. Seu coração pesava no peito, e por mais que ela deixasse o ar fluir por seus pulmões em um ritmo que visava relaxa-la, não parecia estar dando certo, e sua mente zumbia com pensamentos como uma colmeia de vespas inquietas.

Ela fechou as mãos em punho, com tanta força que sentiu suas próprias unhas machucando a pele sensível de sua palma. Ela não conseguia falar, seu maxilar estava travado devido à sua tristeza e pesar.

Quebrando o silêncio e movimentando um pouco o ar parado da casa, a porta da frente se abriu, trazendo um vento gelado para dentro, um certo capitão com um sorriso no rosto e uma caixa de madeira nas mãos, cujo conteúdo era impossível de se identificar. O ar frio tocou o rosto pálido de Emma, e a sensação foi boa.

— Você é mesmo um jovem encantador, James — a voz maternal de Diana clareou um pouco o recinto; ela vinha logo atrás do capitão do Mockingjay. — Sem dúvidas quero ouvir mais de suas aventuras. Obrigada por me ajudar a trazer estas coisas aqui para cima.

— O prazer foi inteiramente meu Diana — James logo foi entrando na casa, observando tudo a seu redor, desde a pintura, até os moveis rústicos, e estava tão radiante quanto um cisne para quem havia passado a madrugada bebendo na pousada de Corinne, mas Emma não queria e nem conseguia pensar nisso agora.

— Emma — Connor andou até ela e segurou seus ombros, olhando fundo em seus olhos. — O que estava na carta?

Emma não respondeu. A assassina ainda se encontrava parada no meio da sala, junto a Connor, ambos parecendo um par de estátuas em um museu. Diana seguiu para a cozinha, e James estava prestes a segui-la, mas reparou nos dois na sala de estar.

— Bom dia Emma, Connor — cumprimentou, e logo sentiu o peso do ar naquele cômodo, e o sorriso lentamente se desfez. — Está... tudo bem?

— Connor — Emma murmurou, obrigando sua voz para fora com a força de quem içava sozinho a âncora de um navio. — Por que você e... James não discutem sobre o depósito? Vão em frente, eu... Preciso de ar fresco.

~

Emma fechou a porta atrás de si após pegar suas luvas e fechou os olhos, sentindo o ar voltar a entrar em seus pulmões, e o que parecia ser o início de uma dor de cabeça começou a desaparecer. Observou os estábulos, e viu Sombra mastigando pacientemente um pouco de feno, e Akwe estava pousada ao seu lado, e parecia estar dormindo.

Emma desejava ir sozinha, de qualquer forma. Então puxou o capuz para a cabeça, protegendo-se do frio, e andou em direção à paisagem branca que era a floresta, apenas com o som de seus próprios pés afundando na neve acompanhando-a.

A assassina andou por algum tempo, tendo companhia de tempos em tempos de algum cervo ou alce que casualmente passava por ali, e tentava manter o oceano sempre às suas costas, para não se perder.

Por um momento, Emma desejou com pesar que Kara não houvesse enviado a carta. Mesmo agora, num lugar silencioso como a floresta da Fronteira, Emma não conseguia se concentrar no ambiente úmido e frio à sua volta; sua mente vagava pelos labirintos da dor que ela agora sentia ao pensar em seu pai. A vida não era justa; quando se criava aquela pequena chama de esperanças para a luz no fim de um túnel escuro, lhe puxavam o tapete de baixo de seus pés, trazendo-o de volta à realidade.

Emma suspirou, e sentou-se na neve, encostando-se em uma das árvores e descansando a cabeça na casca úmida. Ela odiava distrações, e certamente odiava ter que ficar pensando em coisas pessoais quando deveria estar se focando na missão. Tinha certeza de que seu pai ou Lucius proibiriam a carta de Kara se ficassem cientes de seu envio. Talvez fosse por essa razão que Kara mencionou que Lucius ficaria bravo se soubesse que ela havia mandado Zarat para as colônias.

Emma foi arrancada de seus pensamentos longínquos por um som estridente que ecoou através da floresta congelada; um grito.

Levantou-se imediatamente, olhando à sua volta, tentando identificar de onde o som havia vindo e, como sempre, as árvores pareciam sempre as mesmas. Mas então, o som se repetiu, desta vez soando mais como palavras em outra língua, provavelmente algo na língua nativa. Emma então correu para o noroeste, de onde julgava estar vindo aquele provável pedido de socorro.

No entanto, quando a assassina finalmente encontrou o que procurava, parou a alguns metros de distância, a mão indo diretamente para sua cintura, onde falhou em encontrar sua espada. Logo à sua frente, uma jovem mulher nativa segurando o braço de uma criança estavam encurraladas, com as costas contra um enorme paredão de pedra, com cinco lobos rosnando e mostrando os dentes, prontos para ataca-las.

Emma, armada apenas com suas lâminas ocultas, abaixou-se para pegar um pedaço de madeira podre e a lançou na direção de um dos animais, atingindo-o bem na cabeça. A atenção de toda a alcateia voltou-se para a mulher que ousava se intrometer.

Pareceu uma boa ideia a princípio.

— Escondam-se! — Emma gritou para a mulher e a criança.

Então, um dos lobos, o que Emma atingira, correu em sua direção e saltou. Pega de surpresa, Emma caiu para trás com o impacto das patas do animal em seus ombros. Os ferimentos ali latejaram, e Emma grunhiu, segurando o pescoço do lobo, tentando manter os dentes afiados fora do seu próprio. Ela conseguia sentir o hálito quente que fedia a carne crua e sangue, tocando a pele fria de seu rosto. Emma, então, lembrando-se de sua arma, curvou o pulso para trás, ativando sua lâmina, enterrando-a no monte de pelos, e atingindo a pele do lobo, que ganiu e caiu morto a seu lado.

Rapidamente, Emma se levantou, e percebeu o resto da alcateia rondando-a, cercando-a como a presa que viam nela. Emma sentiu embaixo de sua bota outro pedaço de madeira, e lentamente se abaixou para pega-lo. Mas outro dos lobos que a estudava percebeu seu movimento.

No entanto, Emma foi mais rápida desta vez. Agarrando o tronco, ela o girou no ar, acertando o animal antes que ele pudesse acertá-la, e o lobo ganiu, caindo na neve. Mas outro lobo saltou e pegou Emma pela lateral, estando em seu ponto cego, ela não pôde vê-lo.

As patas e as unhas do animal pressionaram as feridas antigas de Emma, e ela grunhiu, lutando para tirá-lo de cima de si, e suas tentativas de arrancar a pele do rosto da assassina tornavam isso extremamente impossível. Então, o lobo ganiu novamente, rosnando logo depois, e olhou para trás.

Ambas a mulher nativa e a garotinha estavam arremessando pedras na direção deles, e o lobo se distraiu. Não deixando essa oportunidade escapar, Emma chutou o animal no estomago, e finalizou-o atravessando seu crânio com suas lâminas.

O lobo morto caiu sobre Emma, e um pouco do sangue quente e asqueroso caiu no rosto de Emma e ela, ofegante, empurrou-o para longe de si. Ainda tremia um pouco; tanta adrenalina após tudo que lhe havia ocorrido ainda a deixava um pouco zonza.

Tentou se levantar, talvez um pouco rápido demais, e observou os dois pares de olhos que a olhavam de volta com curiosidade, alívio, e medo. Depois de checar os arredores para ter certeza de que os lobos estavam todos mortos, ou tinham fugido, Emma notou um ferimento no antebraço da mulher, e ela parecia estar a ponto de chorar. Estavam encolhidas perto de uma árvore.

— Não se assustem — Ela tentou dizer, duvidando que pudessem entende-la, e ergueu as mãos enluvadas e sujas de sangue para tentar acalmá-las. — Você está ferida, eu posso ajuda-la.

Um novo som, um uivo subindo por cima das altas copas de pinheiros e carvalhos, fez com que as três pulassem de leve, em um breve susto. Aquilo dizia a Emma que elas não deveriam ficar ali, no meio da floresta, por muito tempo.

A mulher, dona de belas feições, olhos e cabelos escuros como uma lua nova, disse algumas palavras em sua língua, que Emma obviamente não conseguiu decifrar. E, apesar de haver certa seriedade e dúvida em seus olhos, seu tom era suave.

— Niá:wen — Ela murmurou, e aquela palavra Emma conhecia.

A mulher então disse mais algumas palavras, e apontou para o braço de Emma. Ela olhou, e tocou seu braço de leve, sentindo a umidade do sangue que começava a escapar de um ferimento reaberto.

— Não é nada — Emma respondeu, ainda um pouco ofegante. Apontou para o sul, para a direção da fazenda. — Temos que ir, vamos.

A garotinha se escondeu atrás da mulher, observando Emma com atenção em seus olhos também escuros. Mas a mulher, que a assassina suspeitava ser sua mãe, abaixou-se e acariciou seu rosto, e disse o que provavelmente foram palavras de encorajamento. Então, virou-se para Emma e indicou pra que continuasse o caminho através da mata.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada por ler, comentários são muito apreciados ♥