O Preço da Honra escrita por Julia Nery


Capítulo 22
Uma Garrafa de Rum


Notas iniciais do capítulo

Disclaimer da música:

Enough for One Life - Assassin's Creed: Revelations
Por Jesper Kyd ✔



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Na viagem de volta à fazenda Davenport, o ar parecia exponencialmente mais leve. As ondas batiam suavemente contra o casco já não tão intacto do Aquila e a tripulação estava muito mais calma, ajudando os feridos no convés superior e inferior do navio. Emma encontrava-se sentada na balaustrada – que ainda fumegava com os resquícios de tiros de canhão em alguns pontos – e pela última meia hora estivera testando a paciência de Connor, tentando fazê-lo ensinar a ela como se pronunciava seu nome indígena.

— Ratonhnhaké:ton – ele murmurou, manejando o Aquila sem oscilar em suas expressões faciais, ou pelo menos tentando fazê-lo.

— Ratonhagedon – Emma respondeu, concentrando-se nas letras e na pronúncia.

— Não. Ratonhnhaké:ton.

— Eu desisto – Emma suspirou. – É difícil demais.

— Não foi fácil aprender sua língua também. Principalmente com um professor como Achilles.

Emma deu um pequeno sorriso e desceu da balaustrada, andando devagar em meio aos restos de madeira que ocupavam parte do convés superior, e de lá, observou o Mockingjay, que deslizava atrás deles, levando o resto dos sobreviventes. Emma conseguia ver James de longe, com os olhos esmeralda no horizonte, onde já era possível ver o continente e as gaivotas barulhentas que acompanhavam os navios.

Dr. Lyle, o médico da fazenda Davenport, os aguardava no porto da propriedade sob a ordem de Connor, usando roupas demasiado finas demais para aquele ambiente; sapatos encerados e brilhantes – agora um pouco sujos de areia do cais –, um sobretudo verde com um lenço branco na gola, e pequeninos óculos que ironicamente faziam seus olhos ficarem grandes demais. Era um homem bom e brilhante, mas suspirou ao ver a quantidade de pessoas que os assassinos e James ajudavam a descer ao píer.

— Vocês nunca se cansam destas loucuras? – disse, apenas, em um tom baixo e soturno. – Vamos, vamos. Diana, temos trabalho a fazer.

Da rampa que descia para o cais, Emma viu Diana correr até os feridos. Aquela mulher tão bondosa também ajudava o médico como assistente. O coração de Emma pesava um pouco em seu peito já naturalmente carregado; ela gostaria de ser capaz de fazer o mesmo por aqueles homens que tão bravamente lutaram. Mas ao ver a delicadeza com que Diana e Lyle tratavam dos necessitados a deixava mais tranquila; eles estavam em boas mãos.

Então, Emma subiu a colina junto com Connor, parando de vez em quando para olhar para trás, para a baía, e quando chegaram perto do penhasco, Emma sentiu o desejo de ficar um pouco sozinha.

Então virou-se. Notou que Connor a esperava pacientemente.

— Pode ir – murmurou. – O vejo mais tarde.

Era difícil ler as expressões de Connor; mas era algo com que Emma vinha se acostumando, e aprendendo a fazer. Ele pareceu levemente confuso, mas entendeu. Então, assentiu e continuou seu caminho, abaixando o capuz branco, revelando o cabelo longo amarrado atrás, e ajustou o arco nas costas.

Emma viu-se olhando para ele até que sumisse de vista e, então, virou-se novamente para o penhasco, para a vista e a brisa que a aguardavam. Sentou-se na grama gelada e cruzou as penas, colocando-se numa posição ereta ali mesmo, na beirada da queda. A última coisa que viu foi Akwe, sobrevoando os arredores, antes de fechar os olhos e deixar sua alma flutuar.

A noite logo caiu; um manto escuro e opaco que logo cobriu toda a fazenda. Mas Emma já havia saído de seu estado de meditação um quanto antes. Ela pretendia ir se encontrar com Connor então, mas não o encontrou em lugar algum. Apenas quando passava atrás dos estábulos da mansão, voltando da vila, lá de cima, viu luzes acesas no Mockingjay, no cais. Olhou para o Aquila, por instinto, mas o navio parecia deserto.

Deve ter ido se esconder com as corujas, pensou ela, sobre Connor. Sem mais delongas, então, em um passo rápido, desceu a colina de volta para o píer. Tropeçou uma ou duas vezes em pedras, ou talvez em seus próprios pés; de onde tirou a ideia de correr em uma descida? Estava um pouco ofegante quando chegou ao porto, agora vazio. Emma esperava que tudo houvesse dado certo com os sobreviventes; eles mereciam uma vida longa.

Emma aproximou-se do Mockingjay, escalou a lateral, apoiando-se nas entradas dos inúmeros canhões e pulou para dentro. A luz vinha da cabine de James, abaixo do timão. Emma bateu na porta, mas com esse movimento, viu que a mesma já estava aberta, revelando então sua presença a quem quer que estivesse ali dentro.

Um par de olhos verdes emoldurados por negros cílios a encarou de trás da mesa. James sorriu.

— Que bela surpresa vinda do elísio, Emma.

Emma revirou os olhos, mas sorriu, e tomou a liberdade de entrar.

— Poupe-me, Thatch.

— Imaginei que viria mais cedo ou mais tarde – continuou, recolhendo os mapas que estivera observando. – Não a encontrei mais cedo.

— Eu estava procurando.... – Emma hesitou, suspirando. – Alguém.

— Seu amigo carrancudo, sei – Emma abriu a boca para contestar, mas ele simplesmente continuou falando. – Enfim: recolhi os mapas necessários para que conversemos sobre as rotas de nossos... interesses em comum.

— Ótimo – Emma aproximou-se para sentar-se à cadeira em frente à mesa de James, mas ele a puxou para trás, fazendo com que Emma quase caísse no chão sentada, mas ele a pegou antes que isso pudesse acontecer.

— O que pensa que está fazendo? – disse.

Emma colocou-se em pé novamente e empurrou um James sorridente para longe.

— Você é inacreditável.

— Primeiro, vamos ao favor que você me deve – ele indicou a porta de saída. – Ouvi dizer que está havendo uma comemoração na pousada no topo dessa colina. Comemorações tem rum, Srta. Pierce.

— Mas...

— Não – James apontou um dedo cheio de anéis para o meio do rosto dela. – Além do mais, o capitão do Aquila é... Connor, é isso? É a ele que devo mostrar esses mapas. Vamos indo, então?

Emma fez cara feia, sentindo-se uma criança sendo repreendida por um adulto, mas seguiu James para fora de sua cabine. Já do píer, substituindo o silencio palpável da noite, já podia-se ouvir uma música que não estava ali antes. Então, juntos, subiram a colina.

— Você está parecendo uma assombração, parada nesse canto escuro.

Emma desviou o olhar do povo da vila que bebia e dançava ao som da música animada que preenchia o ambiente fechado. Sabia o que seus olhos procuravam, mas ele não estava em lugar nenhum. Estava começando a se permitir preocupar-se com ele, quando a voz de James se sobressaiu do resto dos variados sons, e viu-o se aproximando com as mãos ocupadas com uma – outra – garrafa de bebida.

— Talvez eu seja – Emma respondeu, descruzando os braços e suspirando, desistindo de sua procura visual.

— Bom, Emma – James puxou duas cadeiras para a mesa mais próxima e colocou dois copos e a garrafa sobre a superfície de madeira. – Aqui está o rum. Quer lenços para caso eu veja lágrimas nesses olhos de mel?

Emma bufou, e sacudiu a cabeça, aproximando-se para se sentar.

— Não chorarei mais. Não por isso.

— Então vamos logo com isso.

James serviu ambos os copos e deslizou um deles através da mesa, que parou nas mãos enluvadas de Emma. Ela girou o copo com o líquido opaco, vendo seu reflexo na bebida. Suspirou, antes de virar um grande gole para dentro de sua boca. Lá ia ela outra vez.

A conversa não durou muito; o suficiente para que chegassem até pouco menos da metade da garrafa, já quase vazia. James bebeu a maioria, é claro, mas, apesar de Emma resumir sua história cada vez que a contava, ela ainda aparentava surpreender alguns ouvidos, pois James pareceu ficar menos interessado no rum conforme a assassina falava.

— ... e eles estavam me enviando de volta para Sua Majestade quando você me encontrou – Emma deu uma risada; sentia-se um pouco alterada devido à quantidade de álcool presente naquela bebida. – Salvou, seria a palavra mais adequada. Minha vida é mesmo uma desgraça; não me surpreenderia se eu tivesse morrido ali mesmo, daquela forma tão desprezível.

— Não diga isso – James discretamente puxou o copo de Emma para longe de suas mãos, e ela nem mesmo notou. – Eu sinto muito, Emma.

— Não sinta – Emma mexeu os pulsos, brincando com as lâminas que iam e voltavam silenciosamente, presas em seus braços. – Cansei-me da pena dos outros. É passado.

— Não é pena, é compaixão. Quanto a seu pai... Ele lhe fez isso no rosto?

Emma virou-se para a janela, que funcionava como um espelho devido à noite lá fora. Viu mais uma vez a cicatriz que cruzava seu rosto, discreta, mas pesada como balas de canhão.

— Sim.

— Tenho certeza de que ele se arrependeu.

— Eu não teria tanta assim, Thatch. Você não o conhece.

— Você tentou, ao menos uma vez, conversar com ele?

— Ele não é o tipo de pessoa com quem se argumenta – Mais mentor do que pai, as palavras ecoaram na cabeça de Emma. – Imagino que o seu tenha sido um ótimo pai.

— Eu vi meu pai apenas algumas vezes em toda minha vida – confessou James, virando agora a garrafa em si para a garganta. – Era filho de Edward Thatch; seu coração estava no mar, e em nenhum outro lugar.

Emma virou-se para James novamente, mais surpresa do que antes e até mesmo pareceu mais sóbria.

— Você é neto de Edward Thatch? O Barba Negra?

James sacudiu os ombros, fechando os olhos de leve, como se se gabasse do fato.

— Nunca o conheci também – disse. – Mas isso é uma história para outra garrafa – James encarou o recipiente de vidro, em sua mão, agora vazio. Estava se levantando, provavelmente para arranjar outra garrafa cheia, mas Emma o impediu.

— Não – disse, levantando-se, e a sala pareceu rodar de um modo estranho. – Chega de rum.

— Mas nem mesmo falamos sobre os planos – ele indicou os mapas. – Eu os marquei, mas....

— Eu os levarei para Connor, e amanhã falaremos disso novamente. Minha história já é assunto demais para lidar em uma noite.

— Tem certeza? Posso acompanha-la. Você não parece ser alguém que bebe com muita frequência – havia certo humor no tom de James, mas Emma escolheu ignorar.

— Não se preocupe comigo – ela tentou dar um meio sorriso reconfortante, e pegou os mapas, segurando-os junto ao peito.

Aproximou-se da janela, e só olhando de perto notou que havia começado a nevar de leve, e não duvidava que talvez o clima piorasse um pouco. A assassina suspirou e puxou novamente seu capuz para a cabeça.

— Até amanhã, Thatch. Espero não te encontrar caído por aí.

Ele ergueu o copo enquanto Emma dirigia-se até a saída da pousada.

— Digo o mesmo, Srta. Pierce.

Emma abraçou-se mais firme aos papéis enquanto andava pela vila, lentamente deixando todo o barulho e comemoração para trás. Olhou para o céu escuro, esperando ver Akwe acompanhando-a, mas a águia provavelmente estava descansando no estábulo, junto à Sombra, no poleiro que Terry havia feito para ela. Então, olhou para frente, seguindo até a mansão.

Naquela altura, Emma sentiu a brisa deslizar em meio aos seus cabelos soltos. Ela então fechou os olhos e deixou o ar gelado entrar em seus pulmões. A neve começava a se acumular na grama já morta e úmida, mas Emma sentiu-se estranhamente confortável ali; revigorada de certa forma.

Então, ao invés de entrar para a segurança da casa, Emma, com o esforço de apenas um braço, escalou a pequena altura dos estábulos e se sentou lá em cima, na neve que começava a cobrir as telhas. Devido ao rum, não estava com tanto frio. De lá, observou a paisagem congelada da fazenda. As árvores dançando com a brisa, os flocos brancos flutuando no ar, os navios no porto rangendo na baía. Então, sua mente foi mais além do oceano que se estendia diante de seus olhos.

Pensou em Kara, na Inglaterra, e o que estaria fazendo agora, ou nos aprendizes e recrutas, o que estariam aprendendo? Emma seria a responsável pelo treino dos recrutas alguns anos em diante, se não houvesse saído nesta missão e dedicado tempo a seu treinamento. Ela, uma Mestra Assassina. Emma deu outra risada junto ao vento; era difícil imaginar. Era mais difícil ainda imaginar alguém a tratando com o respeito que um Mestre merecia; da forma que seu pai era tratado na guilda, ou da forma que Ezio e Altaïr foram respeitados através dos séculos. Aquilo nunca aconteceria. Ela era uma desonrada, alguém que cometera erros severos e imperdoáveis; ela nem mesmo merecia.

Emma observou suas botas sujas de lama e neve. Por que ela estava pensando assim? Não era para isso que estava ali? Colocando sua vida em risco quase diariamente, tendo suas forças e convicções testadas a todo momento e sempre saindo destas provas com algo quebrado ou uma nova cicatriz. Lá embaixo, na estrada, Emma viu uma mulher andando até a vila com uma cesta coberta no braço e um lenço sobre o rosto e cabeça, o vestido arrastando-se pelo chão. A assassina bufou; do que estava reclamando? Ela nunca conseguiria viver uma vida quieta e parada. Simplesmente não combinava com ela.

Emma ouviu o som de uma porta se abrindo, e virou-se ainda no telhado. As luzes do escritório na casa estavam acesas, e essa claridade escorreu para fora da casa, iluminando os estábulos o suficiente para que ela fosse revelada ali.

— Emma? – a sombra alta que falava com ela era Connor. Onde ele esteve o dia todo?, Emma perguntou-se.

— Achei que tinha se perdido na floresta – Emma riu novamente; aquela possibilidade era insanamente remota. – Ou não. Talvez só não queira ficar perto de pessoas.

Connor ficou em silêncio. Emma não conseguia ver direito seu rosto, mas tinha certeza de que ele estava confuso novamente.

— Você quem disse que queria ficar sozinha.

— Eu não disse exatamente isso, mas tanto faz – Emma levantou-se no telhado; algo arriscado, e saltou de lá, tentando não cair, e parou - quase - em pé no chão, segurando com cuidado os mapas de James.

— Você está bem? – perguntou ele. – Onde esteve?

— Com James – Emma foi até a porta, e suspirou, finalmente entregando a ele os papéis enormes. – Ele disse que você deveria ver isso, capitão.

Connor observou os mapas, como se, na verdade, não quisesse nada que viesse de James Thatch, mas então os pegou, depois deu espaço para Emma e indicou o interior da casa para ela.

— Entre logo, vamos. Suba e durma um pouco, foi um dia cheio.

O calor de dentro dos cômodos – provavelmente proveniente de uma lareira – a abraçou como uma mãe que dava as boas vindas e Emma encostou-se contra a porta após fechá-la, deixando seu corpo gelado absorver a mudança de temperatura tão confortável. Mas ela não queria dormir.

— Não – Emma recusou-se. – Quero ver os mapas. Por favor.

Connor, que havia começado a voltar para o escritório de Achilles, parou e observou-a. Então, suspirou discretamente e assentiu, e Emma seguiu-o.

Ele disse para que ela se sentasse na cadeira atrás da escrivaninha, e a assassina o fez, dobrando as pernas e abraçando os joelhos enquanto ele abria os mapas na mesa e os estudava em silêncio, com as mãos espalmadas e abertas enquanto ele se inclinava sobre a escrivaninha.

Mas, por mais que Emma - apesar de não entender muito sobre mapas - quisesse ver tudo o que estava ali, assim que se sentou, o cansaço tomou-a, e suas feridas ainda abertas começaram lentamente a incomodá-la embaixo de suas ataduras. Sem mesmo perceber quanto tempo eles ficaram ali no escritório, Emma então fechou os olhos e apoiou a cabeça no antebraço de Connor, começando a cair no sono e, estranhamente, seus lábios cheios estavam um pouco curvados em um sorriso.

Connor POV

Connor bufou. Aquele tal de James Thatch sem dúvidas havia levado Emma para a pousada de Corinne e oferecido a ela algumas canecas daquela vil bebida dos colonos; ele nunca a vira rir mais de duas vezes em menos de cinco minutos, e agora ela sorria até em seu sono.

— Emma?

Mas ela já estava quase completamente dormindo, em uma respiração suave e profunda. No entanto, murmurou:

— Me deixe em paz, Ratonhnhaké:ton.

Connor, mais do que surpreso, deu um pequeno sorriso. Então, com cuidado, passou os braços por trás das costas de Emma e a levantou no colo sem esforço algum. Ela resmungou e passou os braços pelo pescoço dele, aninhando-se em seu peito.

Após deixá-la em sua cama no segundo andar, Connor observou o apanhador de sonhos que havia feito, pendurado acima de Emma. Observou-a também. Ela estava segura, agora, e nada aconteceria a ela enquanto estivesse sob sua proteção.

O vento soprava cada vez mais forte lá fora, e os galhos das arvores lá fora roçavam no vidro da janela. O assassino se afastou, deixando-a em um sono, ele esperava, sem aterrorizantes pesadelos, e em um sopro forte, apagou a vela na mesa de cabeceira. Saiu então do quarto, fechando a porta atrás de si.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler, comentários são muito apreciados ♥