Candidatos a Deuses escrita por Eycharistisi


Capítulo 70
Capítulo 70




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/528977/chapter/70

– Gina – chamou Niko, pela enésima vez, correndo atrás da rapariga – Gina!

Conseguiu por fim pegar-lhe no braço e puxá-la para o encarar, segurando os seus dois braços para a manter quieta.

– O que é que se passou, Gina? – perguntou-lhe, num tom de voz mais suave.

Ela abanou a cabeça, tentando libertar-se de Niko.

– Fala comigo, Gina – insistiu o rapaz, abanando-a suavemente – Sabes que podes confiar em mim. Lembraste do que o teu pai disse naquela carta? Tu não tens de aguentar tudo sozinha…

– Não te atrevas a falar no meu pai! – gritou Gina, a sua voz quebrando-se no final.

Foi assim que Niko percebeu que ela estava a lutar contra o choro, puxando-a contra si e abraçando-a com força.

– Eu vou falar no teu pai – murmurou Niko – Vou falar no teu pai, uma e outra vez, até tu ouvires o conselho que ele te deu! O teu pai morreu ao dar-te aquele último conselho e tu deveria ouvi-lo…

– É isso que me irrita! – gritou Gina, soltando-se de Niko, limpando apressada e furiosamente uma lágrima que conseguira escapar-se pelo canto do olho – Sinto-me na obrigação de seguir tudo aquilo que o meu pai deixou nesta carta só porque ele está morto! – continuou, abanando a carta do pai na frente do nariz de Niko – Sinto-me obrigada a honrar o único pedido que ele me fez, o último antes de morrer… mas eu não quero! Eu não quero, eu não quero, eu não quero! – negou Gina, agarrando e puxando os cabelos.

– Gina, para – pediu Niko, poisando as suas mãos sobre as de Gina e fazendo-a soltar os cabelos antes que se magoasse a sério – Para. Vem cá, deixa-me abraçar-te.

Fragilizada, Gina deixou-se cair nos braços de Niko, enterrando o rosto no seu peito. O rapaz apertou-a com força, acariciando os seus cabelos longamente.

Ficaram por vários segundos imóveis, até que Gina inspirou fundo e recomeçou a falar, recusando-se a erguer o rosto do peito de Niko para o encarar.

– Não fazes… ideia do quanto eu sofri em pequena – murmurou – E a culpa é toda daquele Adepto do meu pai. Do pai da Saya, que não chegou a tempo…

– Para, para, para – ordenou Niko, poisando suavemente os dedos sobre os lábios de Gina para a calar e estremecendo levemente com o contacto. O que ele não daria para baixar a cabeça e capturar aqueles lábios com os seus… – Se a culpa é de alguém, é das Parcas. Foram elas que começaram isto tudo.

– Elas podem ficar no lugar delas! – barafustou Gina, soltando-se de Niko, furiosa – Eu não quero governar mundo nenhum, não quero erguer os “alicerces do novo universo”. Raios, quero, por uma vez na vida, ser uma rapariga normal, nenhuma aberração…

– Tu não és uma aberração, Gina! – negou Niko de imediato – Que ideia é essa?!

Gina afastou-se na direção da alta janela do corredor, encostando o antebraço ao vidro enquanto olhava para o céu azul.

– Eu sei que sou uma aberração – murmurou ela – Toda a gente o acha. A minha… “mãe” dizia-mo todos os dias, enquanto me açoitava. Fui estúpida ao ponto de lhe ir a correr contar que os animais falavam comigo e que faziam o que eu mandava. E quando ela me mandou calar, dizendo que me esbofetearia se não o fizesse, fui ainda mais estúpida e tentei provar-lho. Chamei um coelho, pedi-lhe que fizesse um carinho à minha mãe – Gina cerrou o punho do braço que encostara à janela, já sem conseguir controlar as lágrimas, que lhe deslizaram pelo rosto, grossas e silenciosas – Assim que o coelho se chegou a ela para se esfregar nas pernas dela, a minha mãe apanhou-o e matou-o. Ainda… ainda consigo ouvir os gritos dele… a pedir-me ajuda – Niko deu um passo hesitante na direção de Gina, mas ela virou o rosto para o outro lado – Depois a minha mãe cozeu-o para o jantar e obrigou-me a comê-lo. Ainda me bateu quando apenas consegui vomitar para o chão, tão enojada que estava com aquilo. Nunca mais toquei num pedaço de carne, mas o meu “pai”… Quando a minha mãe se queixou do que eu tinha dito, ele, ao contrário dela, interessou-se. Decidiu levar-me com ele à caça uma vez. Tentei recusar, mas a minha mãe bateu-me e obrigou-me a ir. Obrigou-me a chamar toda a sorte de animais e matou-os a todos, assim que se aproximaram. Nessa altura não sabia que podia falar com eles usando somente a mente e não era capaz de os avisar do perigo. Durou dias essa tortura, o meu pai levando-me sempre com ele e ficando radiante por chegar a casa cheio de carcaças ensanguentadas – Gina inspirou fundo, recuperando algum controlo – Quando aprendi a falar com os animais somente pela mente, consegui avisá-los para ignorar o chamamento da minha voz. O meu pai esperou, esperou, mas quando percebeu que nenhum animal viria, chamou-me de bruxa e espancou-me ali mesmo, usando tudo, até a coronha da arma. Desejei mesmo que ele me desse um tiro e acabasse com aquilo de vez, mas ele não o fez.

«As coisas apenas pioraram quando pedi para andar na escola. A minha mãe achava que eu tinha era de trabalhar com ela nas terras e para isso não precisava de saber ler ou escrever. Tentei aprender sozinha, mas sempre que a minha mãe me apanhava com um livro nas mãos, era mais um excerto de porrada que levava. Foi nessa altura que aprendi a curar o meu corpo, pelo que no dia seguinte já não tinha marcas nenhumas. A minha mãe ficava fora de si e batia-me de novo. Chamava-me bruxa, aberração… dizia que me ia bater tanto que nem os meus “feitiços” me curariam. Ela odiava-me! Odiava tudo em mim, odiava que eu andasse, respirasse, existisse… Chegou a odiar a minha pele, a dizer que iria acabar com este branco imaculado, que o iria deixar todo roxo… E as coisas não melhoraram quando eu finalmente fugi dali. As pessoas olhavam para mim do mesmo modo que ela, sem ódio, mas com nojo. Quando finalmente consegui entrar na escola, os pirralhos atiravam-me canetas e borrachas, chamavam-me bruxa velha… Quando cheguei ao segundo ciclo e as canetas e borrachas foram substituídas por socos e pontapés, decidi que já estava farta. A Marta – fez uma carícia na pequena cobra que tinha no pulso – ensinou-me a aterrorizar as pessoas com um só olhar e finalmente deixaram de me bater. Mas todos eles, sem exceção, continuaram a chamar-me aberração nas minhas costas – Gina virou-se para Niko, que estava parado atrás dela – Portanto, não me venhas dizer que não sou uma aberração. Mesmo tu, apesar do elo que nos une, achas que eu sou uma espécie alienígena esquisita e assustadora…

Gina parou de falar com um guincho surpreendido quando Niko segurou o rosto dela entre as mãos e lhe espetou um beijo demorado nos lábios.

– Para – murmurou ele, afastando-se apenas o suficiente para falar, fixando os seus olhos desiguais nos verdes de Gina – Tu não és uma aberração para mim, Gina. Tu és a mulher que amo.

Voltou a beijar Gina, mas desta vez a rapariga reagiu, empurrando-o com uma mão enquanto levava a outra atrás e lhe espetava um estalo.

– Fica longe de mim! – guinchou Gina, numa voz muito aguda, os olhos arregalados.

Niko limitou-se a rir, primeiro baixinho, mas acabando às gargalhadas.

– Do que te ris? – rosnou Gina, furiosa – Do que te ris, Lysandre?

Niko soltou um gemido a meio de uma gargalhada e levou uma mão ao peito, como se tivesse dores. No entanto, ainda tinha forças para soltar algumas risadinhas enquanto dizia:

– Amo-te, Gina. Raios, amo-te tanto que quase não aguento isto.

– E estás a rir-te por causa disso?!

– Bem… sim – confirmou ele – Porque cada vez que me recusas, sinto-me ainda mais motivado para te conquistar. Lutar para ter esses lábios nos meus é um doce tormento que antecipa o momento em que de facto te poderei beijar. Essa luta torna tudo mais delicioso, mais… excitante, inebriante. Provocas-me com cada estalo que me dás – disse ele, com um sorrisinho atrevido, dando um passo em frente.

Gina arregalou os olhos, ofendida e assustada com o atrevimento de Niko.

– Afasta-te de mim – murmurou ela.

Ele apenas negou com a cabeça, continuando a avançar para ela, um passo de cada vez.

– Afasta-te de mim, Lysandre! – ordenou Gina, sentindo a boca queimar ao proferir a ordem com o primeiro nome do rapaz.

Foi a vez de Lysandre ficar com os olhos arregalados, em completo estado de choque. O seu corpo não lhe obedecia, não se conseguia mexer. Não enquanto tudo o que quisesse fosse continuar a avançar para Gina.

– Gina, larga-me – implorou ele, numa voz débil.

Ela negou lentamente com a cabeça antes de fugir a correr.

Niko caiu de joelhos, ofegando como se estivesse com falta de ar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Candidatos a Deuses" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.