Bloqueio de Escritor escrita por little wolf boy


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem!



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Você, leigo leitor, já deve ter ouvido falar de bloqueio de escritor. Talvez tenha se deparado com o termo em alguma conversa de escritores, ou talvez tenha sido essa a esfarrapada desculpa que seu autor favorito deu por não postar mais capítulos. Provavelmente pensou que era uma coisa boba, ou que talvez nem existia; uma saída para escritores folgados procrastinarem por aí.

Se, por qualquer motivo, você tomou a decisão de escrever suas próprias histórias, viu que não podia estar mais enganado. O bloqueio chegava sutil, como quem não queria nada. Iria se aproximando e aproximando, até que, quando você percebia, estava afogando-se em desespero e quantidades exorbitantes de café.

O que era exatamente o que estava acontecendo com Clarice.

Na sua mesa, latas de refrigerante, embalagens de salgadinhos e muitos, eu repito, muitos copos vazios de café. Ela estava sentada, o cabelo castanho escapando do coque frouxo e olhos adornados de olheiras arroxeadas. Na sua frente, a maldita tela vazia do Word parecia quase zombar dela.

Ao contrário de seus dourados anos de adolescência, quando escrevia histórias de amor épicas entre Draco e Hermione (que eram perfeitos um para o outro em sua persistente opinião) e coisas como bloqueios eram tristes, mas superáveis, agora ela tinha um emprego. Coisa que talvez sua mãe discordasse, mas ser escritora era um emprego pelo simples fato de eles terem prazos.

Clarice odiava prazos, esses pequenos números maldosos que gostavam de incitar o pânico em si. Ela também odiava bloqueios, coisas horríveis que vinham para traumatizar. Quando os dois decidiam se juntar…

Estava sem dormir há pelo menos um dia e meio. Não via a luz do sol há uma semana, e ela estava bastante certa de que precisaria de uma refeição de verdade em breve, porque tinha quase certeza de que não era fisicamente possível sobreviver com café e cheetos por mais um dia. Antes de tudo isso, no entanto, precisava preencher essa tela.

Clarice tentou começar mais uma vez, e quase que imediatamente apagou todas as palavras. Depois de tentar ameaçar e barganhar com o computador, a mulher tomou uma respiração profunda. Precisava trazer a grande arma.

Ela sairia de casa em busca de inspiração.

Levantou-se, espreguiçando-se, e tomou um longo banho. A roupa foi escolhida sem atenção, e logo ela se encontrava fora, caminhando por entre a rua conhecida da sua casa. Mordeu o lábio, nervosa, e deu uma olhada em volta. Seu plano não ia muito longe disso.

As pessoas andavam pela calçada, cada uma cuidando da própria vida, vez ou outra parando na rua para cumprimentar um conhecido e trocar as novidades. Uma mulher com um carrinho passou vendendo pipoca, o que lhe lembrou de sua fome. Pouco tempo depois, se encaminhava para o parque do bairro com um pacotinho do lanche na mão.

A arquitetura do lugar era simples. Casas pintadas de cores vibrantes entrecortadas por lojinhas de acessórios e muitas de comidas. Havia uma padaria, também, e de lá saiu o cheiro de pães recém feitos. Um pequeno restaurante anunciava que o prato do dia, feijoada, estava pela metade do preço. O chão era feito de paralelepípedos cinzentos em vez de asfalto, e pessoas, bicicletas e crianças invadiam a rua; carros aparecendo só raramente.

Observava tudo pelo qual passava. Um garoto carregando um saco de pães para casa e abrindo, sorrateiro, uma bala escondida que sua mãe provavelmente não o permitira comprar. Uma senhora esforçando-se para carregar um saco de laranjas que parecia pesar mais que ela, e um homem, que andava do lado, precipitando-se para ajudar. Duas garotas andando aos risinhos ao apontar para um rapaz bonito com jaqueta de couro que caminhava não muito a frente.

Clarice se sentia um pouco como uma narradora observadora vendo todas aquelas pessoas. Logo, querendo subir de nível, tornou-se onisciente, inventando histórias para cada um que passasse por si. Aquela moça de cabelos pretos estava perdidamente apaixonada pelo namorado da irmã. O velho senhor de chapéu havia sido um velejador aventureiro em seus tempos de juventude. A adolescente de tranças ruivas estava revoltada com os pais por ter de se mudar.

Antes que percebesse, estava no parque de seu bairro. Era um lugar bonitinho, apesar de um tanto malcuidado. Entre as diversas árvores, havia duas que davam bonitas flores amarelas no mês de junho e uma, grande e cheia de troncos, que sempre abrigava crianças aventureiras que decidiam que queriam tocar o céu. Mesas de concreto se espalhavam pelo lugar, onde sempre tinha velhinhos jogando xadrez, e havia bancos de metal nas bordas.

Ela se sentou em um deles, o pacote de pipoca que mal havia comido na mão. Um menino e uma menina brincavam no parque pouco infantil, desafiando um ao outro a pular nas mesas cada vez mais distantes, correndo como se estivessem partindo em grandes aventuras. Não demorou muito antes deles decidirem subir na maior das árvores. A menina, usando um rabo de cavalo loiro, era melhor do que o menino em subir na árvore, pendurando-se num galho alto e zombando do garoto, que se afastava, mal-humorado. A menina loira não demorou a ir atrás dele, logo voltando às brincadeiras de antes.

Alguns bancos a frente, um morador de rua maltrapilho brincava com um vira-lata esquelético. Ele não tinha nada, deitando-se sobre alguns papelões velhos e com um cobertor sujo e esfarrapado cobrindo o colo. Apesar disso, seu sorriso amarelado era longo quando ele gargalhava ao brincar com o cachorro imundo.

Subitamente sentindo-se culpada, Clarice se aproximou. O homem parou de gargalhar, coçando a orelha do cão, ainda sorrindo. Ela sorriu de volta, sentando-se ao lado dele, e lhe ofereceu a pipoca. O mendigo lhe deu um olhar agradecido, pegando um punhado e dando metade para o cachorro.

— Que Deus lhe abençoe, minha filha — ele falou, a voz rouca como que se não usada a um longo tempo. Ela sorriu de volta.

— É Clarice — respondeu, estendendo a mão. O homem lhe deu um olhar torto, claramente não acostumado a receber esse tratamento.

— Roberto. E esse é o Chico — Disse de volta, apontando para o cachorro tricolor. Sua mão voltou suja do aperto. Ela não podia se importar menos.

Clarice ficou um longo tempo lá. Roberto logo se acostumou com sua estranha presença e começou a conversar com ela. Seus anos de infância pobres no nordeste e uma adolescência cheia de esperança no Rio eram contados em cada ruga que adornava seus olhos, na pele queimada de sol e nas mãos calejadas de trabalho duro. Ela soube de como ele havia lutado até conseguir um trabalho na feira local e um quarto numa pensão qualquer. Soube da esposa, dona Cecília, e dos filhos, Júlio, César e a bela Maria, e como ele gostava de levar eles no parque para tomar sorvete. Como Júlio tinha conseguido sair do país e César se perdera na bebida. De Maria, que com filho moço, acabou morrendo num acidente e como dona Cecília foi vencida pelo câncer. De como ele perdeu tudo, até acabar naquela praça, brincando com o Chico.

Ela não podia impedir as lágrimas no final. Porque aquela era a vida. Era bonita, era triste, e era injusta de um modo que não devia ser. E ela sempre continuava, não importa o que você queria.

Quando Roberto terminou seu conto, ele também tinha lágrimas deslizando dos olhos escuros e perdendo-se na barba acinzentada. Clarice olhou para cima, notando que o sol já estava se pondo e uma chuva ameaçava vir. Sorriu, levantando-se e despedindo-se de Roberto. Já havia dado alguns passos à frente antes de voltar, como que numa realização atrasada, e entregar um maço de notas que tinha no bolso.

— Para comprar um jantar para o senhor e o Chico — ela disse com um sorriso torto, antes de ir mais uma vez.

No seu caminho para casa, a chuva cumpriu sua promessa e começou a derramar-se. As pessoas andavam apressadas, abrindo guarda-chuvas multicoloridos. O aguaceiro ficava forte e ela se sentia encharcada, mas não se importou.

Tomada por um súbito impulso de menina, começou a rodopiar no meio da chuva, rindo e dançando na sua própria música. As pessoas que passavam lhe davam olhares estranhos. Algumas sorriam nostálgicas, como se aquela desconhecida lhe despertassem doces memórias. Outros riam um pouco, incrédulos com a aparente loucura, antes de voltarem aos seus caminhos. Um garotinho de cabelos encaracolados fugiu de baixo do guarda-chuva da mãe para lhe seguir, rodopiando ao lado dela.

— Carlinhos, venha aqui, você vai se molhar — a mãe disse, chamando o garoto, que lhe seguiu, obediente. No entanto, ela podia ver um sorriso no rosto de ambos.

Não demorou para chegar em casa, saltando nos paralelepípedos e molhando o piso laminado da sua pequena sala de estar de um modo que faria sua mãe exclamar em horror. Sentia-se mais pura, mais feliz, e a criatividade exalava de cada um de seus poros. A casa, no entanto, não compartilhava de seu bom humor. Embalagens de salgadinhos e roupas usadas se espalhavam pelo chão, e seu estômago roncou lhe lembrando da persistente fome.

Com uma generosa pizza encomendada pelo telefone, Clarice deu um suspiro sofrido e se encaminhou para a vassoura como se estivesse caminhando para a forca. A limpeza levou um tempo, e ela começou a perguntar-se se o seu gato listrado tinha poderes de teletransporte, pelo simples fato dele parecer ir dormir em toda pilha de roupas que ela limpava.

A pizza chegou quase no mesmo momento em que ela terminou de limpar e tomar um bom banho, e começou a comer uma das fatias antes mesmo de sentar-se na mesa. Não demorou muito para sentir-se satisfeita. As mãos limpas, foi para sua mesa.

Clarice vestia um pijama folgado e pantufas felpudas como roupa de batalha, seus dedos postos no teclado como metralhadoras. Ao lado de seu computador arcaico, um copo de café expresso, e no seu rosto, sua melhor expressão obcecada.

— Vamos começar… — sussurrou, estalando os dedos.

Mais tarde, quando o livro já havia sido publicado e alcançado notório sucesso, Clarice iria, como era de costume, reunir-se com alguns poucos companheiros de batalha, e contaria sobre o horrível bloqueio que sofrera no meio de sua trajetória. Os escritores lhe encarariam, abismados, e com os olhos arregalados, lhe perguntariam como ela havia feito para superá-lo, como se esperassem uma descrição detalhista de métodos mirabolantes. No entanto, a resposta da mulher seria tão simples como era verdadeira.

— São as pessoas e a vida — ela diria. — Elas que são a maior inspiração que se pode querer.


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