Neve em Berlim escrita por Lgirlsclub


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Agradecendo aqui à minha lindíssima beta que leu todas as versões e alterações que foram sendo feitas até que essa fic nascesse (e olha que foram muitas).
Boa Leitura!



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A primeira coisa que percebemos foi um choque de sotaques imenso. Ela era brasileira e eu alemão e, digitando inglês na internet, não imaginaríamos que seria tão difícil de fazer o meu inglês arranhado gerar comunicação com o dela, nível básico de cursinho, quando nos encontrássemos na vida real.

O primeiro dia foi o pior. Eu ri de três piadas – espero que tenham sido piadas – das quais não entendi uma palavra. Ela balançou a cabeça e sorriu amigavelmente para tudo que eu dizia. Acabou me pedindo desculpa – não estava entendendo nada da conversa. Consegui fazer, toscamente, um sinal para que ela visse que nem eu estava. Ela compreendeu e riu. E eu tive certeza de que queria ouvi-la rir novamente.

Era início de inverno na Alemanha. Para mim, era o normal. Já a brasileira parecia que congelava a cada rajada de vento. Berlim ainda não estava abaixo de zero, no entanto, eu esperava que ela visse neve antes de voltar para casa. Ela disse que não iria sobreviver ao frio de uma geada. Eu disse que ela não poderia perder a oportunidade de ver neve pela primeira vez.

Tirei meu casaco e pus sobre os ombros dela e encaminhei-a a Catedral de Berlim. Era uma construção antiga – havia sido finalizada por volta de 1900, se não me engano. Mas ela era tão antiga quanto majestosa. Era uma igreja de 114 metros de altura, que transpirava história por todos os seus poros.

Depois perguntei a ela se também sentira o passado pulsante da construção – não nesses termos, piegas demais e complicado demais para o meu inglês. O que a estrangeira sentira era totalmente diferente. Para ela, o mais chocante era que de uma fachada tão bruta e quase monocromática – cor de marfim, com seus detalhes e estátuas verde-água, tão perfeitamente combinados, pudesse esconder adornos tão delicados. O dourado fazia com que a igreja brilhasse por dentro. Em uma das cúpulas – a favorita dela – havia um vitral azul, dourado e branco, com uma pomba da paz em seu centro. Ela me disse que não havia melhor lugar para a paz repousar.

Mirei-a por um instante – seus cabelos negros que desciam em cachos até a metade das costas, seu sorriso largo e amigável, seus olhos castanho-escuros que brilhavam num entusiasmo contagiante. Por um minuto, achei que meus olhos – de um azul desbotado tristemente comum na Alemanha – deviam estar apagados perto dos dela, que pareciam reluzir de felicidade. Depois me convenci do contrário. Meus olhos deviam estar brilhando só de olhar para ela.

Quando saímos de lá, uma chuva insistente começou a cair. Ela pegou um guarda-chuva na bolsa e andamos, lado a lado, espremidos sob ele. Era um guarda-chuva vermelho e branco pequeno, barato, que por aqui custaria uns três euros. Mal cabíamos os dois embaixo dele. A não ser que andássemos realmente bem perto um do outro.

Minha mão roçava na dela, enquanto tentávamos segurar o cabo juntos, lutando com uma rajada de vento. Ela sorriu quando a mão dela encostou sem querer na minha. Eu me perguntei por que tínhamos que morar tão longe um do outro, ter culturas tão distantes, línguas tão distintas.

E não era só isso. Ela via beleza em tudo que olhava – cada pequena loja, cada pequena esquina ou flor. Ela ajudava senhoras a entrar no metrô. Ela sorria para tudo e para todos. Fazia carinho em cachorros cujo dono ela não conhecia. Não existia a palavra timidez em seu dicionário. Muito pelo contrário – ela parecia viver sob o lema da espontaneidade.

Eu, por minha vez, era tão envergonhado. Corava se tivesse que encarar por muito tempo alguém que eu não conhecia. E apesar de conhecê-la, também ficava completamente vermelho perto dela. Desviava o olhar constantemente. E pensava que não podia me apaixonar por alguém que não ia nunca mais ver. Ao menos não sem me machucar durante o processo.

Mesmo assim, o nervosismo fazia com que detalhes meus, que nunca me incomodaram completamente, se tornassem um tormento. Eu tentava, inutilmente, ajeitar meus cabelos que pareciam estar eternamente bagunçados. Aquela massa loira de fios lisos – que teoricamente deveriam ficar no lugar com facilidade – parecia ter participado da primeira guerra mundial. E perdido. O meu par de óculos, de um metal normal e simples, parecia agora uma péssima escolha – mas que, sem a qual, não conseguiria enxergar.

Todos os dias eu repetia a mim mesmo que não fazia diferença. Obviamente não fazia. Nada iria acontecer – nem nada poderia acontecer. Ela viera passar uma semana, por Deus. E depois ela voaria de volta para o outro lado do mundo. Aí eu a ouvia bater levemente na porta. E tudo voltava a importar. Porque por mais que eu dissesse a mim mesmo que não podia me apaixonar... Por mais que repetisse isso... Não havia nada a fazer. Ainda assim fui mentindo a mim mesmo, tentando me enganar, até que uma manhã, quando ela me chamou do lado de fora do meu quarto e eu senti como se meu coração fosse explodir de nervoso. Então fui obrigado a aceitar o fato. Eu já me apaixonara.

A semana que ela veio passar pareceu durar menos de um dia. Mesmo assim tivemos sorte: a neve caiu durante a noite do penúltimo dia dela na Alemanha e, no dia seguinte, eu pude leva-la novamente à catedral antes que ela voltasse para casa. Os olhos dela brilharam ao ver a mesma construção que ela adorara no primeiro dia, ornamentada com tapetes de neve branca e fofa que também cobria irregularmente o topo das cúpulas da igreja, como se abraçasse o prédio, tentando protegê-lo. Ela se agarrou em meu braço e murmurou alguma coisa que demorei a entender. Ela havia dito que parecia natal. E eu também quis abraça-la para protegê-la.

Eu sempre adorei a imagem de Berlim depois de um dia de neve. Mas olhando o jeito como ela tocava a neve, como se ela fosse algo mágico e frágil... Eu nunca tinha achado esse cenário tão lindo antes. Ela pediu para que eu tirasse fotos. Eu estava tão nervoso que tremia. Todas as fotos saíram fora de foco. Eu fiquei triste por isso. Queria ter uma foto dela na neve. Uma foto para lembrar como ela sorriu e brincou, como ela pegava a neve e moldava-a em suas mãos. Fecho os olhos e tento trazer essa imagem de volta a minha mente, num esforço sobre-humano de mantê-la a salvo do esquecimento. Mas talvez fosse melhor esquecê-la.

Chovia novamente quando saí para acompanhá-la até o aeroporto e eu duvidei que o tempo fosse mudar tão cedo. Eu já torcia, secretamente, para que a garoa se tornasse uma tempestade e ela ficasse presa no país por mais um dia. Se nevasse de novo, se nevasse o suficiente, talvez até mais dois. No entanto, na metade do caminho a chuva cessou, e passamos a andar lado a lado. Ela com uma mala em suas mãos. Eu passando distraidamente aquele guarda chuva de uma mão para a outra.

Era de um vermelho quase bordô salpicado de bolinhas brancas. Me perguntei mentalmente se ela o havia comprado no Brasil ou por aqui. Não era exatamente algo exclusivo – pelo contrário, era comum. “A única coisa comum nela”, pensei, “a única coisa que não é especial”.

Chegamos ao metrô que nos deixaria em frente ao aeroporto e eu amaldiçoei Berlim por ter uma rede de transporte tão eficaz. Eu daria tudo para que aquela viagem durasse mais alguns minutos. Ela me disse algo sobre o transporte público brasileiro ser terrível. Eu tive que me segurar para não dizer que então era eu que devia ter ido para lá.

Fiquei sentado com ela esperando o voo naquele saguão de aeroporto, observando pais abraçando filhos que partiam e filhos recebendo pais que retornavam. Eu senti que estávamos em desvantagem – nós que esperávamos as pessoas partirem. Nossa tristeza parecia ser tão grande quanto a felicidade dos que recebiam seus amigos, namorados e familiares de volta. Parecia que, para eles, Berlim estava um pouco mais completa agora. E para mim, parecia que ela perderia, em breve, um pedaço.

Ela segurou minha mão a apertando tão de repente que quase deixei o guarda-chuva cair do meu colo. Segurei-o com a outra mão e fiquei admirando como parecia tão certo ter a minha mão na dela. Como o calor da palma dela aquecia reconfortantemente a minha. Como nossos dedos se encaixavam tão bem. Alemanha não perderia um pedaço. Ficaria sem qualquer significado.

Eu me preparei para dizer algo – qualquer coisa, que eu a amava, que queria que ela ficasse, que eu iria com ela. Eu sabia que era loucura, mas eu precisava tentar qualquer coisa, qualquer coisa que me fizesse sentir que eu não deixara que ela escapasse sem lutar. No fim, não disse nada, só fiquei boquiaberto quando chamaram o voo dela no exato momento em que eu começara a falar.

Ela andou apressada, soltando a minha mão no caminho. E eu pensei que era a última vez que eu a veria em pessoa. E a minha última visão dela era ela se afastando – partindo para bem longe de Berlim, da Alemanha e de mim. Ela quase havia desaparecido quando eu notei que ela havia esquecido o guarda-chuva comigo.

Corri apressado, dizendo o nome dela da melhor forma que conseguia encaixar no meu sotaque. Ela virou e sorriu, enquanto eu, já sem fôlego disse, ridiculamente, que ela havia esquecido o guarda-chuva comigo. Ela me puxou de leve e encostou seus lábios nos meus. E demos o nosso primeiro beijo naquele aeroporto, ela com as malas prontas, eu querendo devolver um guarda-chuva. Ela encostou a testa na minha, e como se agora falássemos a mesma língua da mesma forma, entendi completamente o que ela disse. “Achei que você nunca viria me devolver”.

A brasileira foi andando até sair da minha vista, balançando levemente aquele guarda-chuva barato que agora me parecia tão especial e parando uma última vez para me olhar. Eu tentei sorrir, mas não consegui. Acho que estava estampado na minha cara – eu não queria que ela voltasse para a casa.

No entanto, nós dois sabíamos: ela tinha que voltar. Ela tinha o trabalho dela, a faculdade que ela estava terminando, os amigos, os familiares – a vida dela estava no Brasil. E as minhas obrigações, em Berlim. Não sei exatamente quanto tempo passei sentado no saguão do aeroporto. Também não sabia o que eu achei que ganharia ficando ali. Só fui descobrir quando vi que me encaminhei, automaticamente, de volta à Catedral – eu estava refazendo o caminho, como se esperasse que houvesse ficado algo dela nele. Ou algo dela em mim.

Mas tudo que consegui foi ver uma igreja melancólica, que agora me parecia grande demais. Triste demais. Sentei-me ao pé dela, mesmo assim, enquanto procurava alguma coisa – qualquer coisa – dela que tivesse ficado para trás. Então, eu vi. Balançando-se suavemente, aquele pequeno, vagabundo e ainda assim perfeito guarda-chuva, protegendo o corpo de uma mulher que, na multidão de turistas, parecia procurar alguém.

Meu coração disparou tão rápido que eu não sei quando e nem como comecei a correr, distribuindo cotoveladas, recebendo muitas de volta, mas ganhando espaço no meio daquela massa de pessoas. Já estávamos quase fora do território da igreja quando a alcancei. Pus minha mão em seu ombro. Ela se virou rapidamente, me olhando preocupada. Mas ela não era ela. Pedi desculpas, frustrado. Disse que a confundi com outra pessoa. A desconhecida me perguntou se poderia me ajudar a buscar quem eu perdera. Eu agradeci, mas disse que a pessoa estava perdida muito longe dali. E que nós sabíamos que íamos nos perder.

A turista sorriu sem jeito e me desejou sorte. Agradeci em voz baixa. E saí pela multidão, xingando aquele maldito guarda-chuva, tão absurdamente comum. Cada vez que o procurava, acreditava vê-lo. E de fato, muitas vezes eu o via. Acompanhado de outra pessoa.

Me encostei numa das pilastras da igreja e me perguntei se era assim que tudo terminava. Comigo buscando pateticamente guarda-chuvas pelas ruas, sabendo que o dela está do outro lado do mundo. Travei meu maxilar. Talvez seja assim que realmente acaba. Comecei a sentir frio e notei que ela partira com o meu casaco. Eu ri, insanamente, pensando na possibilidade de ele também a perturbar. Mas no fundo, sabia que não seria assim. Ela tinha algo meu. Uma lembrança. Eu tinha um fantasma que eu perseguiria pelas ruas de Berlim.

Senti algo cair em minhas costas e olhei para cima. Começava a nevar novamente. Aquela neve branca e límpida que ela tanto amara. Sorri comigo mesmo. Ela também me deixara alguma coisa.

A neve de Berlim parecia reluzir, como os olhos dela – o que era irônico, já que a neve era tão branca e pacata e os olhos dela tão escuros e vivos. Se eu fechasse os olhos, poderia vê-la – e quase senti-la. E eu tive a certeza de que ela estava certa, a neve era quase um natal. Ela me traria de presente, todo inverno, a lembrança daquele sorriso e de quão maravilhosamente nervoso ele me fazia me sentir.

Naquele momento eu soube, de uma forma tão pungente quanto a crença de uma criança, que a neve nunca mais seria a mesma. Era louco e ilógico e eu me sentia confuso e dizia que era impossível que a sentisse tão perto em meio a nevasca, enquanto eu sabia que ela estava cada vez mais e mais longe. Completamente impossível...

... Tão impossível quanto se apaixonar por alguém que mora do outro lado do mundo.

Eu comprei um globo de neve semana passada. Para que me lembrasse dela até que o próximo inverno chegasse. E quando ele chegasse, eu me sentaria do lado de fora da Catedral, todos os dias, esperando que a neve trouxesse de volta aquele sentimento. Como se os flocos fossem pequenos milagres que caíam do céu.


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