Avião escrita por Star


Capítulo 1
"Tia, eu quero avião"


Notas iniciais do capítulo

História inspirada no aeroporto de Natal quase deserto às 03:20 da madrugada



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Elena digitou algumas coisas a esmo na tela do computador. Já fazia cinquenta e cinco minutos desde que o último passageiro viera para um check-in e ela lutava para não deixar os olhos se fecharem. Trabalhar durante o turno da madrugada era desgastante e mesmo estando no emprego já há cinco meses ela ainda não conseguia se acostumar. Alguns dias chegavam a ser mais fáceis, mas a noite mal dormida da noite anterior martelava sua cabeça com o aviso de jamais perturbar oito horas de sono novamente.

O aeroporto estava praticamente deserto, salvo por um ou dois solitários de roupas sociais bebericando café e com a infelicidade estampada nas olheiras, como o esperado das três da madrugada de uma terça-feira no meio de maio. Apenas um terço dos empregados permanecia para o turno da madrugada e aparentemente quase todos eles gostavam de passar o tempo com cochilos espasmódicos em cantos escuros da sala de desembarque de bagagem. Não que a atividade fosse lá muito grandes coisas dentro do aeroporto da cidade de Belo Horizonte durante o resto do ano, tanto de funcionários quanto de passageiros, mas pelo menos quando o sol aparecia trazia junto algumas famílias para os vôos matinais e tornava mais fácil espantar o sono. Aquele espaço de tempo entre as duas e as seis era o que matava.

Elena piscou lentamente, os olhos pesados como se a maquiagem que passara pesasse quilos. A dor de cabeça que o cansaço causava parecia apertar o seu crânio aos pouquinhos, em uma tortura lenta e cruel. Digitava qualquer coisa nas telas de formulário, tentando prender sua atenção e evitar que desabasse em um cochilo outra vez. Esperava que Caio, o rapaz da cafeteria, passasse a qualquer minuto para lhe trazer um café pingado e puxar conversa e pudesse a acordar um pouco. Toda a família a chamava de boba e repreendia que entre tantos pilotos bem vestidos e financeiramente estáveis ela pudesse estar arrastando asa logo para o jovenzinho franzino da lanchonete, mas somente Elena sabia o bem que lhe fazia o café forte e a conversa jogada fora no meio da madrugada. Ansiava por esse momento todos os dias.

Curiosamente, aquela que mais gostava de apontar o dedo para Elena e rir da sua pouca pretensão amorosa era senão a mesma culpada do seu quase desfalecimento por cansaço dos últimos dias. A irmã de Elena adorava caçoar do rapaz da cafeteria e o fazia com a implicância e dedicação de uma criança da quarta série, mesmo que estivesse morando de favor na sua casa nas últimas semanas por culpa de uma discussão com o Senhor Marido Maravilha. Sua irmãzinha mais velha aproveitara a chance e trouxera junto o primeiro filho, no auge de seus oito meses e no pico de desregularização do seu relógio biológico, que tinha muito prazer em ter crises histéricas de choro nas horas mais inconvenientes. Elena mal podia se lembrar da última vez que conseguira dormir mais de três horas sem ser interrompida por um ué-ué incessante. Claro que amava o sobrinho – ou, pelo menos, achava que em algum pedaço no seu interior deveria amar – mas podia jurar por Deus que na próxima vez que ela acordasse vinte minutos depois de se deitar com aquele berreiro perfurando seus tímpanos iria embarcar aquele pequeno demoniozinho em um avião e despachar para o Himalaia.

Elena meneou a cabeça, se permitindo a satisfação de deixar os olhos fechados por um segundo ou dois. Minha nossa, como precisava daquele café hoje. Poderia beber um litro inteiro. Deixou a imaginação planar e podia quase sentir o aroma forte e o vapor subindo por seu rosto quando ouviu um “oi, tia” vindo de algum lugar. Elena despertou imediatamente e olhou ao redor, procurando se o que ouvira estava realmente ali ou se não seria uma alucinação. Junto do chão limpíssimo e brilhante do aeroporto estava um garotinho, olhando de baixo para ela, tão pequeno que a sua cabeça ficava exatamente debaixo do balcão. Usava calças e blusa comprida de um azul escuro, sapatos de cadarços desamarrados e segurava em uma das mãos um ursinho de pelúcia velho amarelo que arrastava no chão.

— Eu quero avião – o garoto disse, seriíssimo.

Elena automaticamente varreu o olhar pelo resto do aeroporto procurando por pais sonolentos que possam ter perdido de vista o pequeno, mas não encontrou ninguém além dos dois senhores apáticos sentados em cadeiras opostas na cafeteria que não mudaram de posição na última meia hora. Aquela criança parecia ter saído de algum sonho seu, ou, mais especificamente, de um pesadelo. O garotinho insistiu, como se achasse que ela não o tivesse escutado.

— Tia, eu quero avião.

— Olá... criança – ela diz, abrindo um enorme sorriso falso e se esforçando para que ele não parecesse o de um psicopata. A ideia de ter que lidar com aquela pequena criaturinha sozinha lhe dava um arrepio na espinha. – Onde estão os seus pais?

— Eu quero avião – ele repete, insensível ao seu esforço de soar amigável.

Elena pigarreia. Olha ao redor de novo, e de novo. Espera ouvir a qualquer minuto uma mãe desesperada saída do banheiro com o cinto ainda aberto pra lhe livrar daquilo.

— Onde está a sua mamãezinha? – tenta outra vez, fazendo uma voz melosa que irrita seus próprios ouvidos.

— Eu quero avião.

— Ela está no banheiro, está?

— Quero avião.

Muito bem. Talvez isso acabe sendo mais difícil do que o que parece.

— Qual é o seu nome?

"Avião" é a resposta que Elena tem quase cem por cento de certeza que irá receber, mas o garotinho surpreendentemente resolve estender seu vocabulário.

— Binho.

Pelo menos é um começo, Elena pensa, apesar de não conhecer muitos nomes como aquele.

— Ok, Binho, você quer um avião? – Ela pergunta e o garotinho faz que sim com a cabeça. – E a sua mãe, ela não quer um avião também?

O garoto sacode a cabeça enfaticamente. Elena pergunta sobre o pai e ele faz o mesmo. Ela começa a considerar a possibilidade de despachar a criança para a sala de segurança e mandar anuncia-lo, mas também não vê nenhum dos guardas por perto. A jovem atendente pede para que ele espere e circula o balcão pra dar uma melhor olhada ao redor. O garotinho a segue, arrastando o ursinho de pelúcia velho.

— Você tem avião? – ele pergunta, inquisitivo.

O guarda provavelmente tirou um tempo pra tomar café, Elena conclui mentalmente. Isso se não estiver cochilando na sala das máquinas, aquele velho preguiçoso. Talvez ela possa tomar conta do pequeno por alguns minutos até que mais alguém apareça. Talvez ela possa jogá-lo pra cima de algum dos senhores tomando café e exigir que tomem mais cuidado.

— Nós temos, sim – ela diz, virando-se para ele. Deu uma boa olhada no moleque. Ele deveria ter pelo menos seis anos, cabelos castanhos lisos e olhos escuros. Só então percebeu que ele ainda usava pijamas. Seria o filho de algum funcionário que se perdeu? Mas será possível, além do sobrinho demoníaco, agora tinha que vigiar o filho dos outros. Não sabia porque não acrescentava logo “serviço de babá” no seu curriculum. – De onde você veio?

— Eles sobem?

Elena demora um segundo ou dois até entender o que a criança quis dizer.

— Os aviões sobem, sim. Até bem alto – Elena suspira e tenta uma abordagem diferente. — Para onde você quer ir?

Se ele soubesse o destino, poderia puxar a ficha de passageiros e anunciar o nome dos seus pais nos auto-falantes.

— Lá pra cima – o garotinho aponta para o teto, como se apenas o seu avião específico fosse capaz de realizar tal feito e frustrando todas as expectativas outra vez. – Você consegue avião agora?

— Não, não. Os aviões só podem subir de manhã, quando as mamãezinhas e as crianças obedientes acordam – joga a indireta, esperando que ele capte alguma coisa.

— Não – o garoto, Binho, bronqueia, decidido. – Tem que ser agora.

— Agora você deveria estar dormindo, não deveria?

— Não! – O garoto bate o pé. – Quero avião!

Era só o que faltava. Elena suspira, massageando as têmporas para acalmar pelo menos sua dor de cabeça. Uma criança perdida e birrenta para fechar com chave de ouro a sua madrugada magnífica, como se já não bastasse o pequeno demônio de garganta de ferro que tinha de aturar dentro da própria casa.

— A sua mãe não vai no avião com você? – Tenta, pelo que a sua paciência jura ser a última vez.

— Não – ele nega, zangado. — A mamãe vai dormir.

— E por que você não vai dormir, também?

— Porque o Binho tem que encontrar irmãzinha.

Elena olha para o ursinho de pelúcia velho amarelo que o garoto arrasta pelo chão. Talvez ela finalmente tenha encontrado uma informação útil, afinal.

— Ela disse que iria te encontrar aqui hoje?

— Encontrar hoje – ele concorda com a cabeça. – Hoje. Agora.

— E onde está a sua irmã?

— Lá no alto – ele aponta novamente para o teto.

Elena suspira alto, dando-se por vencida. Vai esperar algum guarda aparecer para levá-lo dalí e pronto. Seja ele filho de algum dos funcionários ou de um passageiro, vai passar a noite na sala fedida a salgadinho dos seguranças.

Passos ecoam pela extensão do aeroporto e a jovem atendente vê o garoto da cafeteria se aproximar, com o seu avental verde e o bonezinho do uniforme que o deixam parecido com um adolescente.

— Boa noite, Eleninha – Caio diz, com um sorriso no rosto. Elena tenta se convencer de que não está corando, mas sabe que é inútil. O cheiro de café que acompanha o rapaz aonde quer que vá a atrái como uma abelha ao mel. Ele olha para o garotinho. – É seu menino?

— Não, não mesmo – Elena nega com as mãos, espantando a ideia como se só o pensamento lhe desse coceira. – Ele apareceu aqui no balcão e estou tentando descobrir de onde veio, mas ele não facilita.

— Tem certeza que não? Ele é a sua cara – Ele provoca e ri vendo a careta brava da atendente. Se ajoelha na frente do garotinho, bagunçando o seu cabelo. – Oi, camarada. Eu sou o Caio. Qual é o seu nome?

— Binho.

— Binho? Poxa, que nome legal. O que você está fazendo aqui, Binho?

— Eu quero avião.

— Você com certeza veio pro lugar certo, camarada. Mas você sabe onde está a sua mamãe? Eu tenho certeza que ela vai querer um avião também, não é?

O garoto discorda, acenando com a cabeça.

— Só eu quero avião.

— Ele disse que a mãe está dormindo e está procurando pela irmã – Elena explica, de braços cruzados. – Mas não sabe em que vôo a irmã está indo.

— Você está procurando pela sua irmã, camaradinha? – Caio pergunta e o garoto concorda. – Qual é o nome da sua irmã?

— Lu.

— Você não acha que a Lu também está dormindo agora, camarada?

O garoto discorda outra vez.

— Não.

— Não? Mesmo? Por que não?

— A Lu só dorme com urso – ele levanta o ursinho de pelúcia velho e amarelo, com pedaços da costura faltando e espuma branca fugindo de algumas partes, que estava arrastando pelo chão. – Tenho que levar urso da irmãzinha. Se não a irmãzinha não dorme.

O garoto falava com tanta determinação que Elena jamais vira homem algum demonstrar. Era por isso que ele viera até alí e tão tarde da noite, afinal. E um menino tão pequeno!

— Entendi, camarada. Que irmão legal você é – Caio bagunça o cabelo do menino outra vez e se vira para a atendente. – Você acha que consegue encontrar alguém com o que conseguimos até agora?

Elena pensa um pouco, mordendo as bochechas por dentro.

— Eu posso tentar.

Caio abre um sorriso que combina muito com seus olhos verdes levemente sonolentos.

— Ótimo, Eleninha. Eu vou ficar com ele na cafeteria enquanto isso – ele se agacha na frente do pequeno, para que fiquem da mesma altura. – A tia Elena vai conseguir o avião pra você. Diga obrigado pra tia Elena, sim?

O garoto se vira para ela.

— Obrigado, tia Elena — diz, ensaiadamente, e Elena sente, quase a contragosto, o seu coração se derreter um pouco dentro do peito.

— A tia Elena é bem bonita, não é? — Caio provoca outra vez e o garotinho acena com a cabeça, ao que Elena sente o seu rosto esquentar até quase pegar fogo.

— Tia Elena bonita.

— Veja só que pequeno galanteador esse garoto é —Caio diz, bagunçando o cabelo do menino e com um sorriso maroto no rosto.

— Xispem daqui, vocês dois — ela espanta os garotos, virando o pequeno direção da cafeteria. Caio ri, divertindo-se às suas custas, e fala com o garoto mais uma vez, estendendo a mão.

— O que você acha de tomar um chocolate comigo enquanto o avião chega?

O garoto segura a mão oferecida, obediente, e segue o outro até a cafeteria, devagar para não pisar nos próprios cadarços e lançando uns olhares ansiosos por sobre o ombro de vez em quando, como que para garantir que o avião não tivesse chegado ainda.

Elena volta para trás do seu balcão e abre a lista de passageiros embarcados nos dois dias anteriores e no dia seguinte. Eram mais de duzentas pessoas mas ela começou a passar os olhos pela listagem, procurando por garotas com nomes que começassem com Lu e pudessem ser o alvo daquele garotinho dedicado. De onde estava, podia ver o garoto sentado no balcão conversando com Caio, com uma xícara nas mãos, volta e meia ainda procurando por ela e pelo seu avião.

Já estava preenchendo a terceira folha de contatos com todas as Luanas, Lucianas e Lurdes que encontrava. Ela podia não ser uma grande adepta do culto adorador àqueles projetos de pessoas barulhentos e bagunceiros como todos os outros pareciam ser, mas valorizava muito a enorme determinação que mal cabia dentro daquele garoto tão pequeno. A forma como falava e andava, completamente seguro de tudo que estava fazendo. Elena queria poder proteger isso e não sentia que se importava com o trabalho que teria para o conseguir.

Em algum momento dentro da melodia ritmada das teclas sendo pressionadas, uma mulher entra de supetão correndo aeroporto adentro, toda afobação. Ela ziguezagueou de um lado pro outro dentro do espaço vazio e superiluminado, procurando por qualquer um, até que seus olhos encontraram com os de Elena e ela atravessa o aeroporto como um raio, esbarrando em todas as faixas de separação de filas.

— Por favor, ah, por favor – a senhora gagueja, quando alcança o balcão. Seus olhos estavam esbugalhados e Elena percebeu que usava apenas um casaco pesado por cima de uma camisola roxa. – Tem que me ajudar. Você não viu um garotinho andando por aqui, viu? Ah, por favor. Ele tem de estar por aqui. Encontrei sua bicicleta caída lá fora, não pode ter ido tão longe. Ninguém falou sobre uma criança andando por aqui? Ele deve estar de pijamas ainda. É mais ou menos deste tamanho – ela acenou a mão um pouco abaixo da altura do balcão, estava tremendo. – Tem cabelos escuros. Ah, seus pijamas são azuis. Você viu ele, viu? Por favor, me diga que viu.

Elena demorou alguns minutos tentando fazer com que a senhora se acalmasse e disse que o garotinho estava seguro e por alí. Apontou para o pequeno sentado em cima do balcão da cafeteria e balançando de sonolência enquanto conversava com o balconista. Assim que a mãe o viu, quase desabou em cima do balcão, tamanho fora o alívio que a apossou. Os seus olhos se encheram de lágrimas e ela começou a murmurar “obrigada” incessantemente, mesmo antes que Elena pudesse lhe dizer que não havia feito nada.

A senhora correu de chinelos pelo aeroporto até a cafeteria e Elena a observou apanhar o garoto no colo e beijar sua cabeça com a sede de quem achou que jamais o veria novamente. A mulher apertou o menino contra o peito, soluçando, e ele, imóvel, parecia não entender muito.

Elena achou que não seria muito problema deixar o posto por alguns instantes e foi acompanhar os dois.

— Obrigada, meu Deus, obrigada mesmo, obrigada, obrigada – a mulher repetia, em lágrimas, ninando a cabeça do menino no colo, o seu olhar ainda meio transtornado passando do filho para Caio, e de Caio para Elena.

— Não tem nada, foi só um achocolatado – Caio garante, humilde, acenando com a xícara que a garotinho segurava antes.

— A senhora é a mãe? – Elena pergunta, sentindo uma ligeira antipatia pela mulher. Que tipo de mãe irresponsável não perceberia o filho fugindo de casa à altas horas da madrugada? Nem mesmo ela deixaria o sobrinho fazer isso. O fato de ele ainda não saber andar ajudava a endoçar o pensamento.

— Eu sou, sim – a mulher concordou, tentando controlar o seu choro mas aparentemente incapaz de conseguir. – Oh, Deus, eu sei, devem estar pensando tão mal de mim. Eu sinto muito, filho, mamãe sente muito por não ter te encontrado logo, ah, meu menino.

Ela aperta os olhos e chora mais, quase sufocando o garoto dentro do seu abraço. Somente quando o garoto soltou um “mamãe, dói” ela consegue soltá-lo. Caio rapidamente some dentro da cozinha e volta com um copo d’agua para oferecer. A mulher aceita e bebe em goles grandes.

— Ele não costuma sumir desse jeito, sabe – ela diz, fungando. Agora que a onda de emoção passou, tenta se ajeitar passando a mão pelos cabelos e pelo rosto molhado, até perceber que não conseguiria mudar muita coisa. – Fabinho nunca desobedeceu, muito menos fugiu de casa antes. Mas algumas coisas aconteceram e... – os olhos dela se perderam dentro do copo d’agua por um instante. — Eu não sei, eu deveria ter imaginado.

— A senhora tem sorte – Elena diz, por pura convenção social. A devoção fervorosa da mãe chegava a quase anular o sentimento de antipatia que tinha pela sua irresponsabilidade. – Tem um menino muito esperto. Só tome mais cuidado com ele, por favor.

Tem vontade de acrescentar com um “Deus sabe o que poderia ter acontecido com essa criança solta pela rua à essas horas”, mas morde a língua. Pela imagem acabada da mãe é capaz de dizer que ela sabe bem o que poderia ter acontecido.

— Ele é muito esperto, mesmo – ela diz, acariciando com ternura os cabelos castanhos do menino. – Quase esperto demais pra mãe – tenta rir, triste.

— Ele chegou até aqui pedindo por um avião – Elena se deixa comentar, sem evitar a admiração que sentira pelo pequeno. A mãe tira os olhos do filho para ela — Disse que quer encontrar a irmã para lhe entregar o seu urso de pelúcia. Um menino muito bonzinho. Eu mesma quando era pequena quase não podia sobreviver com os meus irmãos e—...

Elena se obriga a parar no meio da frase. A mãe começara uma nova onda de lágrimas, maior do que a anterior, e soluça tão alto que sacode seu corpo inteiro no processo. Elena pensa desesperadamente em dizer ou fazer alguma coisa, com certeza absoluta de que dissera algo errado, mas Caio pousa uma mão no seu ombro, solidário, e entrega para a mãe um lenço de papel.

— Ah, meu menino — a mãe fala, sem conseguir conter o choro, passando a mão cheia de ternura pelos cabelos do garoto. — Você queria encontrar com a Lu, não queria?

O menino acena com a cabeça, levemente constrangido pela presença da mãe.

— Queria encontrar Lu — ele diz, afinal. Levanta o ursinho amarelo sem um dos olhos que carregava. — Lu precisa de urso pra dormir, mãe.

— Ah... Ela precisa, não é mesmo?

A mãe chora mais, se é que seria possível. Demora pelo menos meia hora até que a mulher possa se acalmar completamente. Ela agradece com fervor outras infinitas vezes e o pequeno Binho se despede com um “tchau, tio Caio, tchau, tia Elena”. Elena assiste enquanto ela e a criança saem pelo aeroporto, o pequeno olhando para traz e acenando com a mão do ursinho de pelúcia vez ou outra.

— Garotinho inteligente, esse – Caio conclui, com um suspiro, quando mãe e filho passam pelas portas automáticas de saída.

— A mãe e a irmã deveriam tomar melhor conta dele – Elena diz, severa, apertando os braços. – Eu não deixaria meu menino sair andando pela cidade desse jeito.

— É difícil evitar, se você tem que deixar a porta aberta – Caio fala, abanando a cabeça. Elena o olha, sem entender completamente.

— Por que deixariam a porta de casa aberta? Ainda por cima tendo uma criança em casa. É ridículo.

O garoto da cafeteria a encara, seus olhos verdes mansos e envolventes, fazendo Elena se sentir ser levada por eles até precisar desviar o olhar.

— Fabinho me contou – ele diz, devagar. – que a irmãzinha dele sempre chegava tarde, então a porta de casa sempre ficava aberta para ela. Então uma noite ela não voltou mais. A mãe disse para ele que ela tinha ido viajar para um lugar bem distante e que não sabia quando ela iria voltar. Mas Fabinho ainda insiste em deixar a porta de casa aberta, para ela.

— E daí? — Elena rebate, cruzando os braços. — Não dá pra ficar fazendo vontade de criança. Que ela ligue antes de voltar. Deixar a porta destrancada com um garotinho como aquele dentro de casa é muito perigoso.

— Não, Eleninha — Caio explica, paciente. — A irmãzinha do Binho nunca vai voltar.

Caio continua a fita-la, com seu pequeno sorriso triste, e Elena sente a clareza aos poucos de quando finalmente entende o que ele quis dizer. O avião que Binho precisava com tanta urgência, que fosse para cima, para o mais alto possível. Elena desvia o olhar quando percebe que não consegue segurar as lágrimas que sobem ao seu rosto, ao pensar na dedicação do pequenininho. Apesar de tudo, ela conclui, baixinho.

— É um garotinho muito esperto, mesmo.


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Notas finais do capítulo

Por favor, não deixem a porta de casa aberta quando forem dormir. O seu pequenininho pode fugir pro aeroporto e entrar num vôo via primeira classe pras Lituânia. Esses danadinhos.