Sensei escrita por Maddy Ferguson


Capítulo 1
Parsley, sage, rosemary and thyme


Notas iniciais do capítulo

Nas músicas medievais, geralmente há a presença de muitos simbolismos. Um que representa muito bem o espírito do conto são as declarações implícitas em "Scarborough Fair". Segundo a linguagem das flores, temos o seguinte significado: Parsley, que é a sálvia, significa "eu quero que você seja a mãe dos meus filhos"; sage, a sálvia, "sou fiel"; rosemary, o alecrim, "pense em mim" e por fim, thyme, o tomilho,"eu sou seu". É bonito pensar que há tanto sentimento em coisas tão delicadas e pequenas.Espero que gostem.

Sugestão de trilha: Por se tratar de uma música folclórica e clássica inglesa, há inúmeras versões, mas deixo aqui as minhas inspiradoras: A de Simon & Garfunkel, clássica, e a que se adequa como uma luva a esse conto, a do Nox Arcana. Deixo os links para apreciação! :)

https://www.youtube.com/watch?v=Dau2_Lt8pbM
https://www.youtube.com/watch?v=sgbo2QWLBzI



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Se alguém se importasse com Violet Ingram, haveriam testemunhas do delicado ritual que ela executou naquela noite. Não era o caso, e os únicos olhos que puderam vê-lo foram os seus, violetas, quase negros, que a espreitavam do espelho.

Isso por que Violet não era senão um nada. Menos substancial que o seu reflexo vítreo. Estava morta. Ao menos na parte que importava. Mergulhou naqueles olhos da cor do céu que surge quando o sol se põe, a qual devia seu nome. Despiu-se, revelando o corpo de curvas generosas, sendo imitada à perfeição por sua gêmea espectadora. O ritual estava começando.

Era uma das raras mulheres no Japão que sabia atar um obi sozinha, mesmo sendo ocidental – uma inglesa suburbana. Olhou para o belíssimo quimono que sua mãe lhe dera quando a visitara, estendido sobre a cama no seu horrível apartamento. Para conceder-lhe a benção das gueixas, brincara ela. Ele brilhava, vermelho, como uma chama. Fênix douradas flutuavam no bordado, e contrastando com ele, o obi roxo com minúsculas violetas verdes. O colarinho era branco e vermelho, como o de uma maiko fresca como uma rosa rubra.

Seu rosto já era pálido, então ela limitou-se a contornar os olhos de preto, ressaltando sua cor, e pintar seus lábios cheios de vermelho. O cabelo negro preso no alto da cabeça com um pente de âmbar decorado. Calçou suas geta pretas sobre as meias brancas, e olhou-se no espelho. Estava pronta.

Apagou as luzes e trancou a porta do apartamento. Não havia ninguém na rua, por serem três da madrugada, e até as luzes pareciam sonolentas. Era a hora dos mortos, e os que estavam vivos dormiam placidamente em suas camas macias. Mas ela pertencia aos primeiros, então nada temeu. Pegou as chaves do apartamento e jogou-as num bueiro. Não queria ser tentada a voltar. Estava decidida.

Violet estava indo se matar.

Na rua onde morava, agora só se ouvia um som: O eterno toc-toc-toc das geta da falsa aprendiz de gueixa sobre o asfalto. Era a época preferida dela, o fim do outono. Isso a confortava um pouco. Afinal, só faltavam sete quarteirões para a ponte. E a paz que desejara tanto.

Ela não se considerava fraca por sua opção. Era a última que lhe restara. Pobre criatura solitária na noite de Tóquio, já quase tão morta quanto os milhões de antigos fantasmas da cidade. Inteligente e tímida, crescera numa solidão impenetrável desde muito pequena, embora isso não a perturbasse. Não até o Mal acontecer.

Depois disso, a vida da menina de doze anos se tornou um inferno. Jurou que deixaria a Inglaterra, e se esforçando exaustivamente para conseguir realizá-lo, começou a alimentar o sonho surreal de que, se ela se mudasse para o Japão, tudo seria tão diferente naquele mundo maravilhoso ao qual ela não pertencia, que o Mal finalmente seria deixado para trás em sua vida. Seria um recomeço, tão almejado.

Estava enganada. A estadia no Japão, estudando História da Arte numa boa universidade, não curou sua chaga oculta, apesar de ter tido seus bons momentos. Aos poucos, ela foi se dando conta de que aqueles poucos minutos durante os quais o Mal se abatera sobre ela a deixariam doente por toda vida, como já estava - uma depressão profunda instalada em seu peito durante sete longos anos. Quando procurou um psicoterapeuta como sua última tentativa, desesperada e secretamente, não conseguiu falar nada e mentiu tanto que o tratamento foi completamente ineficaz.

Ninguém nunca soube qual era o problema daquela menina melancólica que não permitia que nenhuma pessoa se aproximasse. Nem mesmo sua mãe sabia de seu horrível segredo. E agora, ninguém jamais teria a oportunidade de saber e tentar resgatar a jovem que caminhava para a Morte.

Dois quarteirões adiante, Violet entrou num bairro antigo, que poderia remontar a Edo do século XIX: Suas belas casas tradicionais cochilavam placidamente atrás de seus muros baixos e jardins perfeitos. Ela pensou em quantos velhinhos adoráveis viviam naquele lugar. Se imaginou assim, trabalhando numa hortinha sob o sol da manhã, idosa e sorridente. Mas essa não era Violet Ingram. Violet era a ‘excêntrica estrangeira que se suicidou na ponte do Kandagawa vestindo um quimono’, estendida nos braços de algum bombeiro, um cadáver branco e flácido. Faltavam só três quarteirões agora.

As más línguas diriam que naquela simpática ruazinha espíritos de antigas oiran cochichavam entre si, cobrindo suas rubras bocas com as mangas dos quimonos e flutuando no ar enquanto riam da garota branca que tentava imitá-las. Os fantasmas dos samurais, porém, inclinavam as cabeças e colocavam a mão no cabo das katanas em respeito a garota que ia lavar sua honra de sua alma nas trevas do rio. Talvez aqueles espectros a convidassem a se juntar a eles, mas certamente havia um destoante: Quem, senão um fantasma de uma gueixa com um belo coração, poderia tocar notas tão doces quanto as que ela ouviu no ar frio da madrugada morta?

Violet parou no meio do quinto quarteirão e ouviu.

É Scarborough Fair, reconheceu, mas estão tocando-a num shamisen. Não pode ser real.

Mas era. E o coração dela cantou sua música predileta, batendo como se percussionasse a canção escrita tantos séculos antes, onde o sol se escondia, e tocada num instrumento tão antigo quanto, na terra do sol nascente.

Are you going to Scarbourough Fair? Soluçou o shamisen na madrugada negra. Parsley, sage, rosemary and thyme. Recitou ele, enfeitiçando a jovem que estacou diante do muro da casa de onde aquela música mágica fluía.

A Morte podia esperar. Violet precisava ouvir aquela pérola que lhe era concedida durante sua caminhada final. Remember me to one who lives there, a canção pediu, she once was a true love of mine.

Violet levou as mãos frias ao rosto, e explodiu em lágrimas. O bambu flutuava calmamente na brisa noturna acima dela, quase ocultando o soluço doloroso com seu sussurar. Mas não o suficiente.

– Eu já vi muitas coisas – interveio uma voz gentil – Mas nunca imaginei que encontraria uma maiko chorando perdida no meu jardim.

A garota sobressaltou-se e tentou fugir, mas só conseguiu torcer o pé com a geta na calçada. Recostou-se no muro sem poder andar, o rosto pálido e os olhos borrados pelas lágrimas.

– Não tenha medo – pediu seu interlocutor – Não vou machucá-la. Mas não sei se podemos dizer o mesmo de você mesma – completou, tão perto da verdade – Tome meu lenço. Precisa-se deles quando se chora.

Violet enxugou os olhos com o lenço branco, sujando-o todo. Já conseguindo ver claramente, deparou-se com um homem alto, jovem, vestido elegantemente com uma calça e colete marrons e uma camisa branca num estilo antigo. Seu rosto, elegantemente anguloso como o dos japoneses, tinha traços tão suaves e bonitos que ela se sentiu constrangida em encará-lo, a despeito do sorriso bondoso que se estendia aos olhos castanho escuros dele, o mesmo tom de seu cabelo liso e esvoaçante na brisa da madrugada. Desejou fugir dali.

– Obrigada – murmurou ela – Desculpe-me. Sujei seu lenço.

– Não se incomode com isso, senhorita.

Silenciaram. Sem que percebesse, a ponte pareceu mais distante aos olhos dela.

Ela apoiou-se no muro enquanto ambos olhavam para a rua. Depois de um longo tempo, ele disse:

– Não sei onde você ia com tanta pressa a essa hora, mas tenho um pedido. Não me sentiria bem se você fosse embora com seu tornozelo machucado no meio da madrugada, sabendo que fui eu quem causou isso. Deixe-me cuidar dele, e acompanhá-la até sua casa.

Aquilo era tão inesperado que a fez vacilar. Quis recusar, e terminar o que tinha vindo fazer. Apesar disso, estava curiosa. Morta como estava, que mal ele ainda lhe poderia fazer? Talvez devesse ver o fim disso.

– Gostaria de saber quem estava tocando – perguntou.

– Talvez eu possa lhe contar.

Violet inspecionou a escuridão com seus olhos de ametista. Suspirou.

– Está bem.

Ele abriu o cadeado do portão e lhe deu o braço para ampará-la. Quando ela o tocou, estremeceu, mas teve coragem para perguntar:

– Quem é você?

– As damas primeiro.

– Você já o disse. Eu sou uma falsa gueixa perdida.

– Sim, entendo. – disse ele, sorrindo de leve – Sendo assim, pode chamar-me de sensei.

***

Violet estava decidida a ver onde aquela situação surreal a levaria. Não era como se temesse alguma coisa. Ou mesmo que houvesse algo a ser temido, naquele lugar: Sentada numa simples varanda que dava para o jardim, os únicos sons na noite eram o canto de uma cigarra e o ferver do misoshiru que o tal sensei insistira em preparar. “Já o estava fazendo antes. Além do mais, vai lhe fazer bem nessa noite fria.” Ele parece um velho.

Ela só percebeu que tinha ficado pronto quando a tigela foi colocada ao seu lado. Ele se sentou sobre as pernas, do outro lado da pequena varanda, e não a olhou. Violet se sentiu grata por isso. Pegou a tigela e sorveu o líquido lentamente.

– Obrigada. É reconfortante. – agradeceu.

– Concordo. – ele pegou o shamisen, oculto sob um pano estampado – Eu estava tocando. – dedilhou um trecho de Scarborough Fair. – A fusão entre Ocidente e Oriente cria uma beleza única.

– Eu também penso assim – disse ela.

– Percebi isso. Você é uma dessas uniões.

Violet encarou-o.

– Disse que era um sensei. Ensina quem?

– As crianças, é claro. – ele sorriu, e pousou o shamisen no colo – Elas são o estado puro da beleza. E podemos moldar um futuro melhor ao ensiná-las bem. Ser um professor é uma honra rara.

Os olhos dela estudaram-no.

– Você é esquisito. Mas apesar disso, confio em você.

– Em alguém que não conhece?

– Não é como se eu precisasse ser cuidadosa agora.

– Talvez seja a hora.

– De quê?

Ele moveu-se de seu lugar e sentou-se distante dela, na varanda.

– Tratar das feridas – levantou-se, pegou uma caixa na sala e voltou – De todas elas. O tornozelo, por favor.

Devagar, ela ergueu o mínimo possível da barra do quimono, tirou a meia e estendeu o pé sobre o chão:

– Não sei o que quer dizer.

– Não são muitas as pessoas que encaram a morte tão formalmente. Você é uma suicida. – pegou o pé e torceu-o rapidamente, arrancando um grito dela – Há certas coisas que doem mais se não as tocarmos. – quando ele começou a enfaixá-lo depois de aplicar uma pomada refrescante, não doía mais.

Ele calçou a meia sobre a faixa e aproximou-se suavemente.

– Já tratamos de uma. A mais simples. Você pode silenciar, e a levarei para a ponte para realizar o seu desejo. Ou você pode deixar seu segredo morrer comigo. Segredos são fardos. Deixe-me levar o seu. E viva. Pela beleza.

No colarinho dela, manchas de pequenas gotas cristalinas apareceram.

– Por quê?

– Sinto como se a tivesse esperado durante muito tempo.

Soluços irromperam no ar. Violet cobriu o rosto com as mãos, enquanto lágrimas escorriam por entre seus dedos. Um braço gentil a rodeou.

– Eu tinha doze anos – a voz dela parecia torturada, embora corajosa – Era muito só. Não costumava perceber a presença das pessoas facilmente. Nem quando me seguiram. Nem quando eu estava em perigo.

Palavras jorraram como uma torrente de sangue negro, vazando abundantemente de uma ferida antiga num coração frágil. Por sorte, os bambus abafaram aquele som para que nunca mais fosse ouvido no mundo, e ninguém além do sensei carregasse aquele fardo com o qual ele tinha se comprometido.

***

Quando os primeiros raios da aurora coraram o céu, Violet estava dormindo em sua cama, ainda com o quimono, e os cobertores puxados até o queixo, como uma criancinha. Junto à persiana, estava ele, olhando a luz incidir sobre o rosto aliviado dela. Por mais que seja prazeroso ver as jóias que são seus olhos cintilarem, nada se compara a beleza da paz nela, pensou.

Não se ouviam seus passos quando ele estava saindo. Mas ela ouviu. Talvez estivessem mais unidos do que imaginavam.

– Espere, sensei.

Ele olhou para trás, sorrindo. Sentou-se na cama, como ela pedia.

– Não vá embora.

Ele olhou-a, em silêncio. Tomou suas mãos com muita suavidade e levou-as ao rosto. Depois, as beijou e as colocou sobre o peito. Seu coração batia disparado como um tambor de guerra.

– Eu nunca irei.

Violet moveu as mãos, segurou o rosto dele e aproximou o seu próprio.

– Sempre achei que essa fosse uma coisa preciosa. Queria dá-la a quem eu sentisse que era a pessoa certa a recebê-la.

Ele encostou sua face na dela. Quando ele move os cílios parece que borboletas pousaram em meu rosto, pensou. A voz dele não era mais alta que o bater de asas de uma delas quando sussurrou:

– Sempre pensei o mesmo. Ainda bem que finalmente a encontrei.

É realmente uma coisa preciosa. É a união de duas almas, criando uma beleza única, quando há um sentimento por trás desse ato, livre da vida e da morte. Como minha vida foi melancólica sem esse calor. Essa chama que vem antes do tempo e o transcende.

Quando os lábios macios e quase insubstanciais dele deixaram os dela, o abraço dele se manteve. Mas ela era só uma menina maiko cansada, e o peito dele era um porto seguro para a alma recém curada dela, e o sono a envolveu novamente. Dessa vez ela não percebeu quando ele a acomodou na sua cama e a cobriu novamente, com amor. Ou quando ele beijou sua testa e deixou-a, como se nunca tivesse estado ali.

She once was a true love of mine– sussurrou ele.

Mas Violet dormia profundamente, pela primeira vez em sete longos anos.

***

Quando o sétimo dia se passou e ela não teve notícias do sensei, Violet decidiu ir até a casa dele.

Você nem sabe o nome dele. E se colocar tudo abaixo com essa sua procura? Já não teve o suficiente, sua noite de vida e que lhe mostrou o amor?

Ainda não.

Não percebeu a mulher que a encarava de lá do muro, tão imersa estava em seus pensamentos, até que a outra pigarreou. O perfeito retrato da antipatia e competência, com seu rosto roliço e cabelos presos, repuxados. Os olhos estreitos exigiam uma explicação daquela gaijin estranha que espiava por cima dos muros alheios sem nenhum pudor.

– Eu... Estou... Procurando alguém.

– E quem seria?

– Eu não sei o nome dele, mas... Acho que ele mora aqui. Encontrei-o aqui uma semana atrás.

– Não sabe o nome e nem o endereço? Como quer achar alguém desse jeito? Não sei o que quer, mas saia daqui, garota.

– Por favor – implorou Violet – Eu preciso reencontrá-lo. Ele é chamado de sensei – desesperou-se.

– Longe daqui! Não vou deixar que perturbe minha patroa!

Violet estava quase chorando quando ambas foram interrompidas.

– Tomoe! Não perturbe a menina. – disse uma voz grave, cheia de força e austeridade. Violet deteve-se, fascinada pela figura de uma senhora muito idosa, mas rija como aço e com cabelos dessa cor, vestida com um yukata lilás e com um guarda-chuva tradicional de bambu na mão.

– Tachibana-sama, a senhora não deveria...

– Não se preocupe, Tomoe – disse a Sra. Tachibana – Eu estava esperando essa moça. Venha. Tenho um recado do sensei para você.

A conversa só iniciou-se realmente quando Tomoe serviu chá para a Sra. Tachibana e Violet.

– Qual é o seu nome, minha menina?

– Violet Ingram, senhora.

A Sra. Tachibana suspirou.

– Eu preciso que você não me interrompa. Se você acreditará nessa história ou não, é problema seu. Prometa-me – Violet assentiu. Já não sabia o que pensar. A senhora continuou – Eu preciso cumprir minha promessa.

Foi até uma caixa antiga e pegou uma foto amarelada, em tons de sépia.

– Talvez lhe interesse saber que eu nasci nessa casa. Antes de me casar, meu sobrenome não era Tachibana. Eu era a pequena Saki, caçula de sete irmãos, Oyashiki como meu irmão Seiichi.

Uma eternidade pareceu se passar quando a Sra. Tachibana lhe estendeu a fotografia. O medo estremecia-a quando Violet estendeu a mão.

E pegou a foto.

E chorou ao ver quem estava nela.

– Não pode ser – disse, cobrindo o rosto com as mãos.

Na foto, de décadas atrás, com um menino pequeno no braço, estava alguém que ela conhecia muito bem. O mesmo rosto suave, bondoso, belo. O sorriso que se estendia aos olhos. A roupa clássica e simples.

Muito tempo se passou até que as lágrimas secassem e Violet entendesse. Que sua história não era comum. Nunca fora. E por isso era muito mais bela.

Nada poderia fazer mais sentido do que ele ter-lhe devolvido a vontade de viver. Agora, ela ia ouvir o que ele tinha a dizer, mesmo que ele não estivesse perto dela. A Sra. Tachibana alisava-lhe delicadamente o cabelo, reconfortando-a.

– Me conte tudo. Por favor.

– Contarei. Esperei por isso durante muito tempo.

Aquele era o Japão de 1930, tão jovem, tão instável. Mas a vida seguia com a beleza inerente a ela, apesar da guerra premente. Na casa dos Oyashiki, a sétima filha tinha nascido. Vamos chamá-la Saki, sugeriu o primogênito Seiichi, de quinze anos. Seiichi pegou a pequena Saki nos braços e a partir desse momento, a amou. Era inerente do seu ser amar, como se a beleza e inteligência não lhe bastassem e ele ainda precisasse ser bom. Todos saberiam disso no futuro inclusive pela carreira incomum que decidiria seguir – ser professor de crianças, por amor a elas. Embora destoasse da severidade dos professores da época, tal comportamento só o fazia ser ainda mais querido. Seu pai, o capitão Oyashiki, ao ver que ele não tinha vocação militar, decidiu não obrigar o filho a nada e deixou-o seguir seu caminho.

Apesar de todas suas qualidades, porém, os anos se passavam e Seiichi permanecia solteiro, a despeito de todas as investidas de garotas românticas apaixonadas por ele. Começaram a suspeitar que houvesse algo ‘errado’ com ele. Mas quando começaram a tentar interferir, a guerra veio e dominou a tudo e a todos. Seiichi serviu como intendente numa divisão de Tóquio, graças a sua inteligência administrativa e influência paterna. Mas a vida tinha traçado seu destino.

Certa noite, Seiichi voltou para casa. Saki, já com 14 anos, sentada ao lado dele na varanda enquanto tomava o misoshiru que ele fizera para ela, perguntou:

Aniki.

– Saki?

– Por que você nunca se casou? Há realmente algo de errado com você?

Seiichi sorriu e olhou para os bambus que cresciam no jardim, soprados pelo vento.

– Você vai rir – brincou ele.

– Não, eu juro – disse ela, séria.

– Ainda não me casei porque estou apaixonado, irmãzinha.

– Quem é ela?! – perguntou a irmã, interessadíssima.

– É esse o problema. Eu ainda não a conheço.

Ante o olhar espantado da jovem irmã, Seiichi explicou.

– Eu a vejo todas as noites desde que eu me lembro, Saki. Nos meus sonhos. Ela está vestida como uma maiko, bela como uma chama. Seus olhos são da cor do céu noturno, das violetas, mas ela chora, porque está morrendo. Ela chora junto ao portão dessa casa, e eu não posso ajudá-la. Mas ela é tão triste que comecei a amá-la, e agora não posso amar mais ninguém.

Saki ficaria impressionada com isso por toda a sua vida. Mas naquele momento, só perguntou:

– Acha que vai encontrá-la um dia?

– Nem que demore toda a eternidade. – sorriu – Se você a encontrar, diga a ela, que, uma vez que a achar, não a abandonarei.

– Prometo.

Mas, como a Sra. Tachibana completou, no dia seguinte receberam um aviso de que o quartel onde Seiichi estava tinha sido bombardeado. Seu querido irmão, tão amado, tinha partido. E assim, a promessa de Saki ficou a ser cumprida.

– Mas eu sabia que ele a encontraria, de um modo ou de outro – completou a senhora – Sempre soube que ele permaneceu aqui, esperando. Mesmo que eu não o visse. – Tomou o rosto de Violet entre as mãos. – Seus olhos são exatamente como ele descreveu. Ah, minha pequena. – disse, enquanto abraçava Violet.

Naquela tarde, ambas choraram. Mas não de tristeza.

Choraram pelo amor que as alçancara além das barreiras.

***

Sete anos depois.

A talentosa professora Violet Ingram era uma aquisição valiosa para qualquer academia, então o departamento de História da Arte da universidade japonesa onde ela terminara sua graduação e fizera seu mestrado decidira não poupar esforços para mantê-la em seus quadros, e convencê-la a fazer seu doutorado na instituição. Embora ela tivesse ficado insatisfeita ao saber que não poderia ter o renomado orientador que escolhera, e sim um suspeito PhD. recém chegado, as sedutoras promessas da universidade de ajuda de custo e uma vaga em Londres para complementar o doutorado a fizeram reconsiderar.

Mulheres cochichavam cobrindo as bocas com as mãos enquanto ela passava, em seus saltos altos e sua elegância erudita. Tão jovem, diziam, ela só tem 26 anos e já vai começar o doutorado. Não é suspeito que uma jovem mulher dessas seja tão bem sucedida em tão pouco tempo? Nem tanto. Ela não é casada. Também parece nunca ter tido um namorado. E risadinhas flutuavam no ar.

Violet não se importava com essas risadinhas. Não era a primeira vez que mulheres cochichavam sobre ela, e da primeira vez tinha sido bem pior. Dessa vez, também, os verdadeiramente importantes faziam-lhe reverências educadas e admiravam sua coragem. Agora, tinha coisas bem mais importantes a fazer, como conhecer o tal orientador.

O Professor Nishimura tinha mesmo que se aposentar tão cedo?, indagou, diante da porta do seu orientador. Professor Akira Takano. Espero que dê tudo certo.

Quando abriu a porta porém, sua pasta foi ao chão.

Estava tocando Scarborough Fair na sala do Professor Akira Takano.

She will be a true love of mine.

No escritório, do outro lado da mesa, um rosto muito familiar a fitava, igualmente atônito. Os mesmos olhos castanhos.

Os mesmos olhos violetas.

A voz dela soou primeiro.

Sensei?

***


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Notas finais do capítulo

E chegamos ao fim!

Como algumas pessoas podem não conhecer um ou outro termo japonês que aparece no texto, deixo aqui algumas referências que podem ser úteis e de quebra mostram um pouquinho da cultura japonesa :)

Pequeno "glossário" de termos japoneses:

Obi: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/16/Kimono_backshot_by_sth_der.png

Sobre as maiko e as gueixas: http://from_black_to_white.blogs.sapo.pt/8643.html

Geta: http://www.photography-match.com/views/images/gallery/geta.jpg

Sobre as oiran (uma das minhas figuras japonesas prediletas!): http://eternalpoose.wordpress.com/2012/01/17/curiosidades-geisha-e-oiran/

Shamisen: http://img216.imageshack.us/img216/2287/081101142853sk9.jpg

Misoshiru: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sopa_de_miss%C3%B4

Yukata: http://www.kimono-yukata-market.com/catalogue/pic/yukata/d/043/image204.jpg

Obrigada por ler! Deixe seu comentário sobre a história, é primordial para mim, de coração! Nos vemos por aí, certamente! :)