A Morte tem olhos carmesim escrita por Witches


Capítulo 9
Mentes Doentias Parte 2


Notas iniciais do capítulo

A continuação do Mentes Doentias já está pronta. Espero que se divirtam com o desenrolar dos fatos, já que muita gente ficou bem ansiosa depois do fim da parte 1.
Apreciem.



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Lyanna despencou.

Caiu, como se onde quer que estivesse houvesse gravidade, mas que esta funcionasse apenas com ela. Cenas que ela nunca havia visto na vida rondavam-na, tudo muito rápido para que ela pudesse sequer assimilar alguma coisa. Era apenas um enorme caos de imagens e cores, uma bagunça total, que era acompanhada por uma balbúrdia de sons perturbadores.

Gritos, choros, lamentos... Uivos de dor e grunhidos de ódio... Lyanna achou que fosse enlouquecer.

Mas antes que sua própria mente entrasse em colapso, o espaço sumiu numa escuridão absurda, os sons desapareceram, e seus pés finalmente bateram contra algo sólido. Aos poucos, uma tênue luminosidade foi surgindo, dando forma ao lugar onde se encontrava.

Não era nada além de um corredor muito comprido, cujas paredes tinham um tom doentio de cinza, manchadas em várias partes como se houvessem jogado tinta rubra, ou sangue. O piso escuro que cobria o chão estava rachado e apresentava inúmeros buracos. A sua frente, nos dois lados do corredor, havia uma sequência interminável de portas, umas entreabertas, algumas completamente expostas...

Lyanna respirou fundo, enquanto seu coração batia tão alto que parecia estar dentro dos ouvidos. Ela não raciocinou, sequer pensou que deveria sair dali... Apenas caminhou até a primeira porta entreaberta, e espiou...

A visão de Lyanna foi preenchida por nada mais nada menos que a nítida imagem de B. Era ele quem estava detrás daquela porta, totalmente imóvel. Os segundos seguintes passaram rápidos demais... Sua respiração simplesmente parou e foi como se várias informações espremessem-se para penetrar sua cabeça. Ela viu dois pequenos garotos rindo, e em seguida tristes, corriam desesperados de sabe-se lá do quê, e a última imagem que ficou em sua memória foi a cena de um deles derramando lágrimas ao ver o cadáver ensanguentado do outro num gramado. As lágrimas que ele tentava conter deixavam suas íris vermelhas tão marejadas que seus olhos começavam a inchar...
E passou, num piscar de olhos, do mesmo jeito que havia entrado em sua mente. Ela pôde voltar a ver B nitidamente do outro lado, mas agora sua expressão facial havia mudado. Continha um certo ar de "relaxamento" e "alegria" misturados juntos
— Almost? - ele indagou, inclinando a cabeça, afim de ver melhor quem estava detrás da porta.

Lyanna sobressaltou-se ao ouvir a voz de B... Apressou o passo, ou melhor, correu para longe, em direção a uma outra porta. Um desespero começou a crescer quando ela se deu conta de quantas haviam naquele lugar... Poderia ficar presa ali para sempre... Mas a síndrome de Alice-que-sempre-corre-atrás-do-coelho-branco-não-importa-o-que-aconteça a dominou, e ela pôs-se a espiar pela fresta da segunda porta...

E tudo aconteceu como anteriormente. Porém, não somente informações, mas espécies de sentimentos lhe vieram à tona. E ela quase surtou quando foi invadida por um turbilhão de emoções que não eram suas. Agora apenas sabia que sentia um ódio doentio misturado com uma obsessão que ultrapassava o normal por um rapaz de cabelos negros e espetados, caucasiano, que vestia uma blusa branca de mangas compridas muito familiar... não era B, embora o lembrasse muito. Os olhos desse outro eram escuros e tinham grandes anéis negros os rodeando, enormes olheiras. Seu físico era mais magro e ele tinha uma expressão mais velha, além de mais desprovida de emoções. Logo a cena mudou, e Lyanna pode ver aquele mesmo homem, agora já bem mais velho, com fios brancos começando a manchar seus cabelos negros, tomando uma xícara de chá numa mesa ao ar livre, num lugar que ela não pode identificar. Ele lia um livro antigo, e ergueu os olhos quando percebeu que alguém sentara na sua frente... e se deparou com Beyond.

—Achei que estivesse morto. –ele disse, calmamente, enquanto fechava o livro.

—Mas eu estou. Há muito tempo. –B replicou, com um sorriso maligno nos lábios- Graças a você.

Os olhos de Lawliet se arregalaram por um milésimo de segundo, com a compreensão que lhe ocorreu, e ele voltou a olhar para a xícara de chá, como se pudesse encontrar alguma resposta ali:

—Mas... –a voz dele abaixou, até virar um sussurro- Eu não pretendia que acabasse daquele jeito...

—Você sabia, sempre soube... -B parecia inabalável, como sempre... Mas havia um brilho a mais em seus olhos vermelhos- Ainda assim me condenou a forca. O que pretendia, senão minha morte?

—Você precisava pagar pelas coisas que fez... Era apenas justiça. Pura e simples. Não podia deixar me levar por motivos... pessoais.

Beyond riu. E aproximou o rosto do de Lawliet. E Lyanna pode perceber as semelhanças físicas tão acentuadas, os mesmos cabelos escuros, os rostos finos e pálidos, as mesmas olheiras profundas... A mercenária conteve a respiração, percebendo o óbvio, enquanto B agarrava o pescoço de L com a mão direita, e sorria:

—Muito tarde para tentar se redimir... Eu só vim retribuir o favor...

E Lyanna pode sentir em sua própria mão a garganta dele se partindo, enquanto aos poucos a vida deixava seus olhos escuros, numa expressão de susto, ou surpresa... E, enquanto a lembrança se desvanecia, ela sentiu um forte aperto no peito, com a certeza de que Beyond matara sem o menor remorso alguém que não era apenas seu rival... era seu irmão.

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Na porta seguinte, Lyanna achou que fosse morrer...

A dor a cegou, e por um tempo ela sentiu um calor infernal, e uma agonia tão profunda que a levou ao desespero... Um cheiro insuportável de fumaça e carne queimada invadiu suas narinas, a sufocando...

Entretanto, aquela tortura cessou para enfim mostrar-lhe uma praia de areias escuras, a sombra de um enorme penhasco... Ali estava um corpo, tão queimado que era impossível identificar, numa posição que sugeria que boa parte dos seus ossos estava partido... Embora estivesse nesse estado, ele incrivelmente não estava morto... e Lyanna sabia de quem se tratava. E a confirmação veio quando uma garota de cabelos cor de rosa se abaixou ao lado do moribundo, e cravou os caninos compridos no pescoço devastado...

E depois passou tudo muito rápido... Beijos, abraços, risos e choros... Quase meio século de companheirismo. Terminado com um tapa na cara. E quando a mercenária deixou aquela porta, ela quase pode sentir pena de Mellie... A vampira oferecera tudo de si, em todos aqueles anos, e Beyond a retribuiu com migalhas, com fragmentos de sentimentos... Ela o amara, disso não havia dúvida... Mas ele não fora capaz de fazer o mesmo.

E assim, de porta em porta, Lyanna foi vivenciando os pedaços da vida insana de Beyond Birthday. Viu o abraço que sua irmã Nymeria compartilhara com ele, e percebeu ali algo que ela deveria sentir: carinho fraternal... Viu B de frente para um túmulo, onde um buque murcho de flores repousava... Observou ele fabricando algumas daquelas estranhas bonecas que havia em seu quarto... Porém, ela não estava pronta para o que viria a seguir...

A próxima entrada a levou para um mundo vermelho...

A mercenária começou a ver o mundo pelos olhos de Beyond... E descobriu que o assassino tinha as bênçãos do Deus da Morte. Ele via, flutuando sobre a cabeça de cada ser vivo, a data de sua morte... Mas não era capaz de ver a sua própria. Era uma sensação angustiante, e Lyanna se perguntou se ele sabia qual seria a sua data, ou o que ele sentiria ao vê-la toda vez que olhava a caolha... De toda a forma, aquele foi o menor dos problemas.

Pois aquela, na verdade, era a porta das vítimas dele.

E Lyanna se afundou num mar de sangue. Presenciou uma infinidade de assassinatos, mutilações e tortura, todas protagonizadas por Beyond, que parecia sentir um prazer indescritível por toda aquela carnificina...

Ela não era de se impressionar.

Já tinha visto muita coisa durante sua vida.

Mas as coisas que viu ali a deixaram a beira de um estado de nervos... E, quando ela se viu novamente no corredor, ela sentou no chão e abraçou os joelhos.

Lyanna aprendera a nunca demonstrar sentimentos... Mas Beyond era diferente. Era como se tudo o que ele hipoteticamente sentia fosse artificial, como um ator interpretando um papel. As emoções pareciam difusas, tênues... irreais. Como se sempre faltasse alguma coisa.

Era perturbador...

Ela sabia que não tinha visto nem um milésimo, mas só pensava que tinha sair dali. Não queria ver mais nada... E sentia que Beyond também não queria que ela continuasse explorando, pois um desconforto começou a crescer, como se algo a sugasse...

Entretanto, quando ergueu a cabeça novamente, o corredor havia mudado. Todas as portas haviam desaparecido... Ou melhor, quase todas. Diante dela havia uma única porta de ferro, enferrujada, com uma placa acima... Em uma letra estranha, como se tivesse sido feita por unhas compridas arranhando a madeira, lia-se nitidamente "Deathday"

A mercenária caminhou até a porta, e a analisou por algum tempo... Talvez aquela fosse a saída, ou não... Ao contrário das outras por qual ela passara, aquela era a única que estava completamente fechada.

Ela não pensou.

E este foi seu maior erro.

Lyanna simplesmente girou a maçaneta, e entrou...

O som produzido pela tranca foi um gemido agourento, como se desse a entender que estivesse extremamente enferrujada... ou quase pedisse para não ser aberta. Ali dentro não havia nem sinal de algo parecido com a pouca iluminação que havia lá fora. Estava completamente escuro, porém, havia ficado mais do que claro que Lyanna estava no lugar errado e na hora errada - se é que existiam horas naquele lugar. Nada parecia existir ali, como se fosse um espaço esquecido pelo próprio B...

Até que uma risada histérica quebrou essa hipótese e violou o silêncio. Uma risada que lembraria a de um deus da morte...
— Hey... - o mesmo alguém a chamou e ela pôde perceber que sim, de fato, era a voz de B. Algo a envolveu pela cintura antes que tivesse mais tempo para pensar ou mesmo para responder, e ela sentiu a respiração dele bater pesadamente em sua testa.- Não devia estar aqui, Ly.
Havia algo diferente na voz dele. De alguma forma conseguia lembrar o jeito de uma pessoa totalmente fora de si. Ele a segurava com força, o que lhe impedia de conseguir se soltar. Não conseguir vê-lo era quase perturbador, mas seria ainda pior se ela o fizesse...

Lyanna teve vontade de gritar, mas não o fez... Afinal, não era para aquilo acontecer. Era para ela ser uma mera espectadora, já que aquilo tudo não era real... Ou, pelo menos, não deveria ser...
—Quem... o que é você? - ela não conseguia se soltar, por mais que se esforçasse, mas tentou manter a voz neutra -Solte-me... Seja lá o que você for, não é real...

— Espera, espera... "quem é você"? "Não é real"? Hah... nós podemos nunca ter tido uma chance para fazer as devidas apresentações, mas... -Ele a apertou ainda mais contra o próprio corpo e se aproximou de seu ouvido, sussurrando- Sabe, desde que ele ganhou umas... habilidades estranhas, se você entra dentro da mente dele, as mesmas regras aplicadas a mim, aplicam-se a você também... Não posso morrer, então você também não pode... e eu meio que sou material aqui dentro, então você também é. Isso não é engraçado?

Lyanna se esforçou para abrir um sorriso, embora não tivesse certeza se ele podia ver no escuro:

—Não tem graça alguma, em minha opinião... Mas você sequer se apresentou, ou mostrou como és... Isso é uma tremenda descortesia.

— Você sabe bem como eu sou, querida...

—Se soubesse não teria a curiosidade... –ela respirou fundo, e disse com naturalidade- Olha só, você me solta, eu vou embora, e não perturbo mais o buraco escuro em que você vive, tá? Eu não tinha mesmo a intenção de incomodar...

Ele riu, como se a reação dela fosse uma boa piada, até que parou no segundo depois e apertou os braços dela com os dedos
— Acredite, eu estava contando com um encontro de nós dois há muito tempo, fiquei me preparando para isso, mas...- ele parou um pouco para suspirar pesadamente.-... olhe só, você me fez a surpresa de vir pessoalmente até mim... –ele afrouxou o aperto na pele dela até soltá-la lentamente, mas antes que a mesma pudesse festejar por isso, sentiu as mãos quase frias dele agarrarem seu rosto, puxando-o para perto - Bem... eu gostaria de sentar e conversar, mas sei que não irá ficar muito tempo por aqui, então vamos direto ao ponto. Tenho uma circunstância bem séria para impor a você, querida.

—Você não pode me impor coisa alguma... Você não é real, é só uma sombra da personalidade dele... -Lyanna se permitiu uma risada, mas era apenas puro nervosismo -Não pode me ferir aqui...

As mãos dele escorregaram da face dela e não voltaram a perturbá-la nos segundos seguintes. Outra risada deu seu eco pelo local, sobrepondo-se à dela e lhe causando um calafrio na espinha:
— O que você tem que aprender é que ninguém é o que se mostra ser. Todos se escondem... Você não percebeu ainda, querida Lyanna...? A sombra não sou eu.

O silêncio se fez, enquanto Lyanna tentava processar aquilo, mas logo seu acompanhante voltou a se pronunciar

— De fato, não posso machucar ninguém por aqui... além dele, claro. Mas... -ela pôde sentir, de alguma forma, que ele estava sorrindo para ela - Lá fora, sim...

—Isso é uma ameaça? Se quisesse me ferir, lá fora, já o teria feito... Oportunidades não faltaram... -a mercenária retrucou, enquanto percebia que sua visão já havia se adaptado ao escuro, e que começava a divisar os contornou difusos daquele que se movia ali perto.

—Acredite, eu estou tentando ser bonzinho... Mas você está me atrapalhando...- aquela última frase tinha um tom de ira e soou bem próximo ao ouvido de Lyanna. - Ele está ficando mais forte por causa de você, está me evitando com mais facilidade do quê antes. Me trancou aqui desde o dia em que você voltou, numa tentativa idiota de protege-la... Nem com aquela outra era desse jeito...

Lyanna trincou os dentes, enquanto via o vulto dele novamente se aproximar e enlaçar o pescoço dela com os braços suavemente.

— Eu sei que você já tem que ir daqui a pouco e que talvez nunca nos encontraremos novamente. Mas você deve ficar feliz por isso... Porquê da próxima vez que me ver, saberá seu destino final. - ele foi baixando o tom de voz gradualmente. - Por isso, a condição é essa: fique longe dele, e não verá o monstro...

O desespero a invadiu de forma violenta, mas a raiva ainda foi maior... Aquela coisa, sabe-la que diabos era, estava deliberadamente a ameaçando para que se afastasse de Beyond...

E, depois de tudo o que vira, era realmente o mais sensato a fazer...

Mas Lyanna não era sensata... Desde que começara a se envolver por B, ela sabia dos riscos... Sabia o quanto era insano...

Sabia que era perigoso.

E, embora ela quisesse chorar, assustou-se com a convicção em sua própria voz:

—Foda-se. Não vou me afastar, e você sabe disso muito bem.

—Hum... Você quem sabe... Eu sabia que ia ser... divertido. Agora, já que você vasculhou quase tudo aqui dentro, acho bem justo que B tenha a mesma oportunidade, não acha? Nos vemos em breve, Ly. Muito em breve.

—Espere... não... VOCÊ NÂO PODE!

A sensação de estar sendo sugada a interrompeu. De alguma forma, ela sabia o que ia acontecer, e não podia permitir... Mas era tarde demais. Enquanto ela mergulhava na escuridão da inconsciência, deixando a mente de B para trás, este era arremessado para dentro da mente obscura de Lyanna...

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B se viu num lugar que era difícil definir... Piscou uma, duas vezes os seus olhos cor de sangue, tentando entender onde estava. Árvores mortas se contorciam em formas estranhas, enquanto plantas espinhosas se arrastavam pelo chão. A pouca luminosidade vinha de uma lua vermelha, num céu sem nuvens, mas que também não ostentava nenhuma estrela. Uma série de ruídos ecoava insistentemente, como se fossem murmúrios de centenas de pessoas juntas, um agouro que nunca silenciava...

Beyond se sentiu em casa, claro...

Embora não tivesse certeza do que estava acontecendo, ele pode deduzir. E, ao olhar para o chão, teve a confirmação: nas poças de água estagnada, ele podia ver fragmentos de cenas. Ele estava dentro da mente de Lyanna.

Sua cabeça doía desesperadamente, mas ele decidiu continuar, já que não via outra saída. Ele deu o primeiro passo sobre as águas que mostravam as memórias dela, de olho em cada uma, como se tentasse entendê-las ou mesmo quisesse se ver ali. B adentrou mais profundamente aquele cemitério de árvores, se deparando com uma poça bem maior, quase um pequeno lago. Ao olhar para a água, ele se transportou diretamente para dentro de uma das lembranças mais dolorosas da mercenária de cabelos descorados...

Ele se viu em pé no canto de um aposento pertencente a uma casa simples... E o quarto fedia a morte... Já fazia mais de um mês que as pernas de Ed tinham virado duas toras, negras e inchadas. Já haviam feito infusões, compressas, chás, e até um médico viera vê-lo. As notícias não eram boas. A necrose avançava rapidamente, mas Ed se recusava a amputar qualquer coisa. E quando Lyanna entrou no quarto aquela noite, uma menina de apenas treze anos, ela não sabia que seria a última dele...
—Chamou-me, pai? -disse, sentando-se ao lado dele na cama.
—Sim... -a voz dele soava fraca, e quando ele segurou sua mão, sua pele parecia tão fina quanto papel- Minha pequena... você deve saber que não verei o amanhecer de um novo dia...
—Pai... precisa me dizer de onde vim. Quando você se for, o que será de mim?
—Você não deve... Eu vi... as cartas me mostraram...
—O que? O que você viu? -sua ansiedade estava explícita em seu rosto.
—Você tem o sangue de uma família antiga e poderosa, mas marcada pela desgraça e fadada a tragédia. Poderá encontrar a verdade, mas ela não lhe trará paz, muito menos conforto...-ele tirou uma carta de dentro da gaveta, junto com um pedaço de pano, colocando-os na mão dela. A carta era A Morte, e o pano, um lenço com um brasão cujo as letras haviam sido queimadas com cigarro- Quando pedi para ver seu futuro, foi essa a carta que saiu. A morte a seguirá, aonde quer que você vá. Quanto ao lenço, veio junto com você.
Ela olhou o lenço longamente.
—Isso não me ajudará em nada...
—Se quer saber sua origem, procure a garota de olhos desiguais... Mas tome cuidado, minha pequena. Seu caminho está traçado pelas trilhas da dor e do sangue, e não encontrará paz para seu espírito angustiado em lugar algum. E lembre-se do seu velho pai... Eu a amei como se fosse a minha verdadeira filha...
Seus olhos se fecharam, para nunca mais se abrir. E pela primeira, ela chorou. Do seu olho azul, caiu uma lagrima cristalina. Do outro lado, onde o tapa olho escondia a cicatriz, correu uma lágrima de sangue...

E B foi cuspido de volta ao jardim morto, sendo invadido por uma enorme quantidade de sensações que não eram suas... Tristeza, revolta, ódio... Uma frustração e um vazio que nunca eram preenchidos... Ele sentia um aperto incomum em seu coração morto... era horrível e ao mesmo tempo incrível... B nunca havia tido sentimentos de verdade, apenas sombras dele, e agora estava ele ali, sentindo tudo aquilo. Por mais que as emoções lhe causassem uma sensação desgostosa, e por mais que o que tivesse visto sobre ela fosse mais do que lamentável, ele não podia esconder a surpresa que estava sentindo junto com todos aqueles sentimentos. Aquilo lhe deu quase um ânimo para prosseguir... Ele passou por dentro daquele lago raso do qual acabara de sair e foi mais adiante, em passos rápidos.

O próximo lago exibia uma cena mais tranquila... Duas garotas, que não chegavam nem a ser adolescentes, bebiam escondido numa taverna à beira mar... Ele logo as reconheceu: Lyanna, com seu inconfundível tapa-olho, e Nymeria, com seus óculos escuros... Elas conversavam e riam, mas a cena de repente mudou... Beyond se viu ao lado de Lyanna, já na sua idade atual, encarando um brasão na parede de um castelo. A expressão dela era indecifrável e ao ver Nymeria descendo as escadas, ela a encarou de um jeito homicida. A mão dela escorregou até a pistola, sacando-a num segundo e apontando-a na cara de sua anfitriã. A arma fez um sonoro "clic" quando ela engatilhou. Virou a arma para trás e deu um tiro no brasão, bem no meio do L do Lindberg. A voz tinha um tom de acusação quando ela disse:
—Você sabia... Você sempre soube. Porque mais teria dirigido palavra a uma mercenária qualquer? Jamais teria me chamado para dentro de sua casa se não tivesse certeza...

—-Não sei do que está falando... e aliás, eu a chamei por que devia-lhe uma, lembra-se? –O olho vermelho de Nym brilhou assustadoramente, e no segundo seguinte Lyanna não conseguia mais se mover, nem um músculo. Com um gesto de mão, a garota de olhos desiguais fez com que ela abaixasse o braço que segurava a arma.

—Não sabe, ou está se fazendo de idiota? Será que não vê? –Lyanna parecia realmente furiosa, ainda mais com a magia de Nymeria agindo sobre si...

—Não vejo o que, sua tola? Já lhe disse, não sei do que estás falando... –Nym colocou as mãos na cintura, visivelmente irritada... -Parece que com seu olho perdeu um pedaço do cérebro...se vai me acusar, que seja de algo que eu realmente tenha feito...

A mercenária respirou fundo, tentando manter o auto controle:


—Temos os mesmos olhos...bem, quase. Os mesmos cabelos descorados, o mesmo humor ácido...-o olho dela se fechou... Admitir que aquela teoria fosse possível parecia doloroso demais... -Se pudesse me soltar, eu mostraria a você. Não se preocupe, não pretendo feri-la... Pelo menos por enquanto...

Nymeria desviou o olhar, quebrando o encanto, e franziu o cenho:

Lyanna estralou o pescoço e pegou a mochila, tirando um pedaço de pano e jogando-o em seguida para Nymeria
—Isso foi achado junto comigo. Encharcado pelo sangue do meu olho arrancado... Agora eu pergunto-lhe, minha cara Nyn: Quem arranca o olho de um bebê, e por que? Nunca entendi isso, mas agora começo a cogitar algumas possibilidades...

Nymeria pegou o pano... E uma sombra de compreensão passou por seus olhos...

—A criança...a bastarda que todos diziam estar morta... Você...é minha irmã.

—Sou? É mesmo? - havia desprezo na voz dela, uma hostilidade quase palpável -Não temos certeza disso, certo?

—Use a cabeça, tu mesma apontou para os sinais... só não enxerga quem não quer ver... De qualquer forma, este castelo também é seu, de acordo com o sangue. Se precisar ficar aqui, não farei objeção.

Lyanna riu... uma risada amarga e vazia. A pistola apontou inconscientemente para Nym mais uma vez.
—Poupe-me de sua falsa comiseração... Não preciso de nada que venha de ti ou desta família maldita...
A mercenária fez a menção de abaixar a arma, entretanto... Ela atirou.

Beyond não soube explicar, mas, de alguma forma ele sabia que Ly não tinha atirado... Que a arma disparara...sozinha. Isso se comprovou pela expressão pasma dela quando a bala transpassou o ombro de Nym e cravou-se na parede...

A retaliação foi automática... Nymeria conjurou sua lança, a Grito de Agonia, e fez o corpo escorregar para frente, acertando a ponta no abdômen de Lyanna, fazendo-a derrubar a arma no processo:


—Atiras-te em mim? Como ousas?

Lyanna encurvou-se com a dor que lhe rasgou o lado direito... E B soube que ela queria gritar que não havia atirado porra nenhuma... Entretanto, ao invés disso, a mercenária puxou o rosto da irmã para perto do seu, o que fez com que a lança afundasse ainda mais... O gosto desagradável de sangue invadiu a boca de Lyanna enquanto as unhas marcavam a face de Nym, agora perto o bastante para que os narizes quase se tocassem.

—Você acabou de arrumar uma guerra...

—E ti, assinou sua sentença de morte...

—Tu não sabes... com quem está lidando, Nymeria... -falar tornara-se muito díficil de repente- Mas eu realmente torço para que ninguém te faça mal... Porque caberá a mim matar-te com minhas próprias mãos...

Mais uma vez, B foi lançado para fora da recordação. Dessa vez, o ódio veio seguido de impotência e desprezo... Nymeria e Lyanna haviam sido amigas, mas o destino tramou para que se detestassem...

Beyond continuou seu caminho...Conhecer mais sobre Lyanna e o que se passava naquela mente sem dúvida doentia, era o que ele queria. Ele mudou o rumo da direção, indo para o que lhe pareceu apenas uma parte mais fechada do jardim.

Lá ele encontrou uma lembrança um pouco mais recente...

—Beyond Birthday...

Ele surpreendeu-se ao ouvir seu nome, ainda mais porque ele estava sendo pronunciado por Lyanna... B se encontrava agora num quarto luxuoso, onde no meio de uma cama enorme encontrava-se um casal completamente nu. O rapaz era bonito, cabelos castanhos e olhos muito verdes, exibindo no braço esquerdo um símbolo estranho... E sua acompanhante, obviamente, era Lyanna. Suada e com os cabelos grudados ao corpo, ela levantou-se da cama e começou a recolher suas roupas, enquanto prosseguia falando:

—Serial Killer, psicopata, vampiro... Tem algo mais que eu deveria saber?

—Ele é perigoso, se é que é preciso acrescentar isso... –ele olhou com um certo desapontamento quando ela se pôs a vestir o corpete.- Recomendo que mantenha distância...

—Ora, me poupe...

O rapaz franziu o cenho, e olhou para ela de forma visivelmente irritada:

—Você se interessou, não é? Vai ser mais um de seus brinquedos, Lyanna?

A mercenária se virou para ele por um breve momento, antes de voltar e se vestir... E a resposta foi fria e direta:

—Não sei porque você ainda fica “putinho” ... Eu nuca lhe prometi coisa alguma, Matt... Nunca disse que você teria de mim alguma exclusividade...

—Porque você é uma tola... Uma vadia burra. Eu podia lhe dar tudo, Lyanna. –ele sentou na cama e encarou-a de uma forma quase suplicante- Você não precisaria mais se arriscar, se humilhar, se vender... Porque você não aceita? Porque não fica aqui comigo?

O silêncio se fez, desconfortável, enquanto Beyond inconscientemente cerrava os punhos...

Finalmente, a mercenária jogou um enorme manto sobre os ombros, e encarou Matt com seu brilhante olho azul.

—Porque você não pode me dar nada que eu não possa conquistar sozinha... E, a partir de amanhã, eu serei imortal, querido... E talvez eu não aprecie ter que ver você envelhecer e morrer, enquanto eu perdurarei para sempre.

Com essas palavras, a visão se desfez... E Beyond teve a estranha certeza que Lyanna o escolhera, desde o início... Que ela se prendera a ele desde aquele dia, renegando uma vida mais fácil... Ela descartara uma das melhores propostas que recebera... E fora por sua causa.

Beyond agora se deparara com um lago enorme, o qual era tão extenso que não era possível ver o lado oposto. Ao olhar para as águas escuras, foi invadido por uma série de informações e sentimentos, tudo numa velocidade incrível, que poderia deixar qualquer um surtado para sempre... Mas com Beyond já era louco, ele não teria qualquer problema quanto a isso...

Viu Lyanna num campo de treinamento, menina ainda, em meio a um monte de brutamontes, escutando repetidamente que os mercenários não poderiam alimentar qualquer tipo de sentimento... Logo em seguida, um garoto loiro, com olhos de um azul muito claro, lhe dava um selinho e dizia algo do tipo: “É hoje, Ly... Vamos embora daqui, juntos... É uma promessa.”

Deparou-se com a imagem de um garoto de cabelos escuros, Makoto Ishikawa, apontando uma arma para Lyanna enquanto ela apontava a sua para a cabeça dele... Logo depois ela estava presa em uma cela suja, enquanto ele discorria sobre como ela seria uma boa escrava quando ele lhe fizesse uma lavagem cerebral...

Viu ela e Nym, numa dança de espadas com uns monstrengos muito estranhos, provavelmente antes de terem dado início a suas disputas...

Sentiu o vento marinho, quando ela embarcou no Morte Negra ao lado de Edric, com a intenção de nunca mais voltar... Os apuros nas missões que o pirata a incumbira... O beijo que ela roubara do próprio irmão, exclusivamente para poder surrupiar o coração da serpente que eles haviam exterminado...

E, a partir daí, as imagens começaram a passar ainda mais rápido. Viu a si mesmo quando batera no quarto dela a primeira vez, o beijo interrompido por Mellie... Viu todas as vezes que ela dormira na rua, que passara fome, que fora agredida e violentada... Todas as vezes em que ela engoliu o choro à força e botou um sorriso no rosto...Sentiu todas as suas tristezas e dores, toda a frustração e impotência, toda a raiva e rancor...

B pensou que as emoções não pudessem causar-lhe uma sensação pior, mas estava redondamente enganado... Era horrível, e ele grunhia por uma dor psicológica que parecia não acabar mais, e se emoções fossem mesmo tão ruins aponto de quase fazê-lo vomitar como estavam se mostrando, ele agradeceria de joelhos por não tê-las...

E, tão de repente como começara, ele se viu finalmente consciente, sentado na janela no quarto do qual ele jurava ter esquecido que existia... Então ele simplesmente deixou-se cair sobre a cama e fechou os olhos, tentando se recompor ao menos fisicamente, já que sentia que seu psicológico estava afetado e para sempre. E pensar que ele jurava que não fosse capaz de ficar mais perturbado do que já era...

Quanto a Lyanna... Esta despencara no chão, e ali ficara, abraçando as próprias pernas... Sentia que alguma coisa nela havia se partido para sempre, e cogitou se perdera o restinho de sanidade que lhe restava... E então, tudo o que sempre reprimira, toda dor, raiva e tristeza vieram a tona, e ela se pegou aos prantos, soluçando como uma criança indefesa.

B ouviu-a chorar, e sentou-se sobre a cama, encarando Lyanna, e entendeu o que ela estava sentindo, pela primeira vez em toda a sua própria vida. Se ainda estivesse com aquele turbilhão de sentimentos que encontrou na mente dela, também estaria do mesmo modo... por um lado sentiu uma pontinha de felicidade, misturada com surpresa. Nunca havia entendido alguém e agora, que fazia ideia de como era sentir, de como era ter emoções, estava conseguindo. Deixou o monte de dúvidas e perguntas que tinha a fazer de lado, e no segundo depois se viu abraçando-a com força, sentado logo ao lado dela.

— Hey.. Ninguém jamais aguentaria esconder isso por muito tempo. Você foi muito forte, mas...

—Está tudo bem... –ela tentou dizer, mas a voz dela morreu num soluço.

Beyond tomou o rosto dela entre as mãos... A face esquerda dela estava rubra pelas lágrimas sangrentas que vazavam de seu olho ausente, dando a Beyond a desconfortável sensação de que ela era mais uma de suas vítimas...

—Estou aqui, com você... Ly...

—Vá. Agora... –ela o encarou firmemente, controlando o choro, o desespero, e a vontade de sumir...

—O que? Mas... –Beyond a encarou de forma perplexa- Porque?

—Eu... preciso de um tempo... Preciso ficar sozinha... Só... me deixe um pouco, sim?

B não entendeu... Mas também não contrariou a vontade de Lyanna. Talvez ele também precisasse de um tempo para colocar as ideias em ordem. Deu-lhe um beijo na testa, e deixou o quarto, murmurando um “até mais” ...

E Lyanna ficou ali, sentada no chão frio... E a única coisa que lhe vinha a cabeça eram aquelas palavras:

“Fique longe dele, e não verá o monstro...”

Mas era muito tarde, e ela sabia disso.

O que libertara era muito maior do que ela, muito mais forte do que Lyanna Storm poderia enfrentar...


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