A Morte tem olhos carmesim escrita por Witches


Capítulo 11
Determinação estúpida


Notas iniciais do capítulo

Monstros... O que os define, senão sua própria perversidade? Mas, talvez, nem todo monstro seja totalmente cruel. Porque, mesmo entre as pedras, flores ainda possam brotar...



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Lyanna perdeu a noção de quanto tempo ficou sentada sobre o chão frio... Se sentia violada, exposta, vulnerável... e apavorada.

O que vira na mente de Beyond a deixara desnorteada.

Ele era um monstro.

Sim, claro, ela também era. Matava quem precisava e quem se interpunha em seu caminho sem o menor remorso, além daqueles que mais recentemente passaram a lhe servir de refeição. Mas a mercenária era um monstro um pouco mais civilizado, com alguns limites e restrições auto impostas.

Quanto a Beyond, ele não parecia ter qualquer escrúpulo, bom senso, ou sequer alguma limitação. Ele se deleitava em causar dor, divertia-se em torturar, satisfazia-se ao ver a vida deixar o corpo de quem quer que fosse. Aquilo era muito mais doentio do que tudo o que Lyanna já presenciara.

E agora, sabia que era um alvo em potencial. A ameaça fora clara e objetiva...

Com esforço, a mercenária obrigou-se a levantar. Seus passos incertos a levaram até a pia, onde ela tirou o tapa olho e lavou o rosto, pegajoso das lágrimas sangrentas. Quando ergueu o olhar e se deparou com seu reflexo no espelho, o velho desconforto de ver sua face mutilada a invadiu. Mas, ao mesmo tempo, foi um incentivo a deixar o estupor e partir para ação. Ela já tinha sobrevivido a coisas piores, e não ia simplesmente se deixar destruir assim fácil. Afinal, era imortal... Ou não?

Lyanna percebeu que sabia muito pouco sobre sua situação atual, pois nem Beyond parecia conhecer muito sobre as limitações dos vampiros. E, se todos os outros foram extintos pelos magos, então eles podiam sim morrer de forma definitiva.

Ela tamborilou os dedos no mármore, pensativa. E uma ideia surgiu, algo tão simples que ela se amaldiçoou por não ter cogitado aquilo antes.

Só havia uma pessoa a quem ela poderia recorrer...

 

—Vampiros? É serio?

—Ora, quem melhor que você para me contar sobre isso? -Lyanna abriu um sorriso de canto, e deu um grande gole na garrafa de vodka que estava a seu lado.

A Covil dos Murmúrios não tinha nada de murmurante aquela noite, muito pelo contrário. A taverna era uma balbúrdia, um grupo de clientes já bêbados cantavam e dançavam, embalados pela música de uma dupla de bardos, enquanto garçonetes semi nuas equilibravam canecas e pratos em bandejas de madeira e tentavam servir os presentes sem derrubar nada. O ar estava impregnado com odores de porco assado e cerveja preta, misturados a suor e tabaco. Em um canto afastado do tumulto, a mercenária dividia a mesa com uma jovem trajando um comprido manto azul. Esta tinha um cabelo curto e negro, e olhos esverdeados. Mas o que chamava mais atenção em sua aparência era um par de orelhas felinas de pelagem escura que saiam de sua cabeça e se mexiam ocasionalmente enquanto ela falava.

—E qual seu interesse nesse assunto? -a garota indagou, curiosa, dando um gole na caneca de vinho que uma garçonete lhe entregara segundos atrás

—Interesse puramente profissional.

—Humm... Você deveria saber que, com meu posto, não posso passar certas informações para uma assassina...

—Mercenária. -Lyanna interrompeu- E isso nunca a impediu de fazer antes.

—Veja bem, há certos protocolos que devo seguir...

—Fico te devendo uma.

—Você me deve umas dez...

—Porra, Nahiri. Você já foi mais compreensiva. Enfim... -a caolha colocou uma caixa em cima da mesa e abriu para que a maga visse seu conteúdo. Os olhos da garota meio gato se arregalaram, e ela exclamou:

—Um pedaço de coração de serpente marinha! Onde conseguiste?

—Shhhhhh -Ly abanou as mãos freneticamente, pedindo silêncio- Não fale alto, isso é muito valioso e raro. Como consegui é uma história para outra ocasião.

—Eu sei o quanto isso vale. É um ingrediente poderoso para muitas poções.

—Exato. E é seu.

—Está tentando me subornar? -Nahiri soergueu uma sobrancelha, mas não parecia ofendida, apenas intrigada.

—É um presente. Mas se não quiser me passar as informações, eu vou embora, sem ressentimentos...

A maga revirou os olhos, e depois de soltar um suspiro resignado, respondeu:

—Tudo bem. Mas quero que entenda uma coisa: o que lhe direi é apenas o que sei pelos livros da biblioteca real. Vampiros sumiram do mapa a muito tempo, então não se tem muita informação a respeito. -ela entrelaçou os dedos das mãos- Primeiramente, o que se deve saber é que eles eram criaturas de Carnage. Dizem que o próprio deus dos monstros os criou, e era uma maldição poderosíssima que os mantinham "vivos"...

Nahiri falou por mais de meia hora. E a mercenária gravou cada palavra que ela proferiu, armazenando as informações com precisão, enquanto a garrafa de vodka ia esvaziando e as bitucas de cigarro se acumulavam sobre a mesa. Por fim, a maga também terminou sua bebida, junto com a sua narrativa:

—Bem, isso é tudo. Espero ter ajudado.

—Mais do que imagina, gatinha. Obrigada.

—Lyanna, o que anda aprontando? -a garota a encarou por um longo momento, e a caolha se sentiu ligeiramente desconfortável- Eu não sou nenhuma tola. Eu sei que andam acontecendo mortes estranhas e desaparecimentos. Você por acaso foi contratada para caçar... alguma coisa?

A mercenária quase suspirou aliviada. Pelo visto, Nahiri não percebera sua atual situação.

—Talvez... Não posso afirmar nada, sigilo profissional.

—Só não faça nenhuma besteira, certo? Agora preciso ir. Se me virem aqui, terei problemas. Até mais, Blood Silent.

Lyanna abriu a boca para responder, mas Nahiri simplesmente tinha desaparecido, como se nunca estivesse estado ali. Sobre a mesa haviam algumas moedas de ouro para pagar o que consumira, no exato lugar onde antes estava a caixa com o pedaço de coração. Ela não pode deixar de sorrir.

—Magos... Quem pode entendê-los?

 

A mercenária deixou a taverna, e começou a caminhar debaixo da chuva fina que caia. Não se preocupou em usar seus poderes para correr, nem sequer apressou o passo. Afinal, não era como se pudesse pegar uma pneumonia ou algo do tipo. E também não tinha pressa de chegar a lugar algum.

Ela andou por um tempo, tentando colocar em ordem as informações que recebera, quando deparou com a entrada do templo de Allonel. Lyanna afastou o cabelo molhado do rosto e encarou o lugar, sentindo uma pontinha de raiva. Era tudo tão mais simples quando não havia nenhum sentimento envolvido...

Anos atrás, quando o pai adotivo dela ainda estava no mundo dos vivos, ele costumava dizer que "o amor era a força motriz do mundo". Depois que Lyanna o perdeu, a cada surra que a vida lhe dava, ela duvidava cada vez mais daquela teoria. Passou a acreditar que as únicas coisas que moviam o mundo eram o desespero, a ganância... e o ódio. Mas depois de Beyond, não sabia mais o que pensar...

A mercenária foi interrompida por alguns sons que vinham de um lugar próximo. Parecia uma súplica de ajuda, em meio a um choro abafado.

"Bem, isso não é problema meu."

Num beco sujo e escuro, a alguns metros dali, uma garotinha esfarrapada tentava se livrar de um homem grande que a agarrava. Com a calça arriada e o membro viril exposto, ele tentava arrancar a roupa dela, enquanto a menina chorava e implorava para que a deixasse em paz. Por fim, ela pegou uma pedra e acertou o rosto do seu agressor, o que apenas resultou num pequeno corte, e este revidou imediatamente com um potente soco no rosto delicado e infantil. Ela bateu com a cabeça contra a parede e caiu no chão, zonza e sangrando. Talvez por isso não tenha percebido o que aconteceu na sequência...

Quando a menina ergueu novamente a cabeça, percebeu que o corpo do homem caia pesadamente no chão... decapitado. De pé havia uma mulher de cabelos brancos, com um tapa olho cobrindo metade de sua face, uma adaga em uma mão e a cabeça do agressor na outra.

—Filho da puta. -Lyanna cuspiu, e jogou a cabeça longe- Com tantas prostitutas por ai, e ainda quer molestar uma criança? Que Carnage carregue sua alma.

A mercenária olhou para a menina, constatando que esta não estava seriamente ferida, e deu meia volta para continuar seu caminho:

—Vá para casa, criança. Está tudo bem.

Foram alguns passos, até ela sentir um par de braços finos envolver sua cintura. Surpresa, ela ouviu a vozinha infantil, embargada de choro, soar as suas costas:

—Obrigada... Você me salvou.

Lyanna se soltou, sem jeito. Não sabia como lidar com aquilo.

—Não agradeça. -ela mostrou as mãos cobertas de sangue- Eu sou só um monstro qualquer, nem tão melhor do que aquele outro ali...

—Você é minha heroína.

—Vá para casa. -a caolha repetiu, com um certo aperto em seu coração morto- E tente não se meter em encrencas...

A menina a encarou por um minuto, depois se virou e saiu correndo debaixo da chuva fina. Lyanna esperou que sumisse e voltou a caminhar, resmungando:

—Não era da minha conta...

 

A mercenária voltou a estalagem, uns dois dias depois do incidente que mudaria tudo. Quando entrou no quarto, percebeu que Beyond não estava lá, mas com certeza passara um tempo ali, pois tudo estava impecavelmente organizado. Antes que fosse a procura de B, decidiu que precisava tomar um banho, e se livrar das roupas sujas que vestia. Encheu a banheira com água quente, colocou suas armas a um canto, se despiu e entrou na água, afundando até o queixo. Não haviam se passado nem cinco minutos quando ela pode ouvir a porta se abrindo, e o som de passos arrastados que conhecia bem. Em seguida a silhueta de Beyond apareceu na soleira...

—Ly! Você voltou! -ele abriu aquele sorriso estranho, e entrou na banheira, aparentemente sem se importar de molhar toda a roupa, puxando a mercenária para si e a envolvendo num abraço- Me deixou preocupado...

—Lamento por isso- ela retribuiu o abraço, encostando a cabeça em seu ombro e falando bem próximo ao seu ouvido- Está tudo bem. Só precisava de um tempo, para colocar as ideias em ordem. Agora, querido, não vou mais fugir...

Uma afirmação clara e precisa, que não fora direcionada exatamente a B. Algo dentro dele rosnou, mas o serial killer ignorou:

—E não deixarei que você vá. Nunca mais, okay? Agora, falando sério: como consegue ficar nessa água tão quente?

Lyanna riu, dando-lhe um beijo e se afastando um pouquinho em seguida:

—Eu gosto de brincar com fogo...

"Por que não mostramos a essa puta os problemas de se brincar com fogo?"

A voz soou tão nítida na cabeça de Beyond que ele sobressaltou-se. Estava ficando mais forte a cada dia, e na presença de Lyanna conter o monstro parecia uma tarefa quase impossível. Então ele se levantou e saiu da banheira, com uma calma impecável.

—Acho que preciso tirar essa roupa molhada. Termine o seu banho, Ly.

—Hey... Por que...? -mas ele já tinha deixado o banheiro, tão rápido quanto chegara.

A caolha se enrolou em uma toalha e foi atrás dele. Quando chegou no quarto, ele tirava a camisa, revelando cicatrizes feias de queimadura nas costas. Uma lembrança da dia em que deveria ter morrido, mas fora salvo só para continuar espalhando sua loucura por ai. Ela se aproximou, deslizando os dedos pelas marcas que riscavam e enrugavam a pele.

—Não sou só eu que gosto de brincar com fogo, não é mesmo? Não acha... que deveria parar de fugir de mim? Não quer experimentar coisas novas?

O toque dos dedos dela o arrepiou, uma sensação boa demais para ignorar. O que ela despertava em B ainda era mais forte que a voz enlouquecida em sua mente.

—Coisas novas? -ele se virou, a agarrou-a pela cintura- Pode ser interessante...

—Aposto que sim. -de alguma forma, ela ainda conseguia se surpreender com as mudanças repentinas na personalidade dele. Como em um instante ele parecia uma criança, e no segundo seguinte um predador. Mas aquele novo comportamento era empolgante, pois ela conhecia bem aquele tipo de olhar...

As coisas pareceram se aquecer ainda mais quando ele começou a mordiscar levemente o pescoço da mercenária.

—Então... Não deveria começar o que não pretende terminar...

—Quem disse que não vou terminar? -ele puxou a toalha que envolvia Lyanna, expondo o corpo dela por completo. Este era ainda mais marcado que o dele... Havia uma cicatriz feia, deixada pela lança de Nymeria do lado esquerdo do tórax. Do lado oposto, uma mancha marcava a pele, sugerindo que houvera uma esfolação naquela região.

A mercenária soergueu uma sobrancelha, e puxou-o para um beijo ardente, que terminou com um comentário provocativo:

—Para quem alegava ser tão inocente, parece saber muito bem o que está fazendo...

Beyond deu um meio sorriso, então agarrou seus braços , atirando-a com perversidade na cama. Seu corpo cobriu o dela, enquanto sussurrava ao pé de seu ouvido:

—Estou apenas seguindo meus instintos... Não vê? Está queimando.

—Eu ou você? -ela indagou, passando as unhas pelas costas dele.

—Ora, acho que ambos estamos...

No meio da troca de beijos e carícias, B puxou Lyanna para o seu colo. Sua respiração começou a ficar ofegante, sabe-se lá se pelo calor ou pela pontinha de nervosismo que estava sentindo...

Os olhos vermelhos dele encontraram com o azul dela, e pareceu que o tempo parou...

"-Vocês realmente gostam de fazer o circo pegar fogo. Quer mesmo abrir as cortinas? -a voz soou de novo, puro ódio.

”-Agora não é hora para metáforas”. -B respondeu, resistindo ferozmente à força que crescia dentro dele

“-Estou há muito tempo fora do palco, as suas piadas já me cansaram. Deixe-me comandar o show"

“-Não pode fazer isso.”

“-Tarde demais, minha vez de brincar agora.”

E então Beyond tirou as mãos da cintura dela. Foi como se seu raciocínio lógico tivesse parado de funcionar por ali. Lyanna não percebeu o que estava acontecendo até que ele a empurrou, fazendo-a cair à sua frente e acertar a cabeça no ferro da cama. Antes que pudesse reagir, as mãos dele envolviam o pescoço dela num aperto sufocante.

Naquele instante, em que seus olhares se encontraram novamente, ela soube que seu Beyond não estava mais ali.


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