Realidade Imaginária escrita por Duda Mockingjay


Capítulo 42
Espelho, espelho meu...


Notas iniciais do capítulo

Jujubas estou de volta com um cap novinho em folha e gigantescoooo!
Enjoy ♥



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Pain!

You made me a, you made me a believer, believer

Pain!

You break me down and build me up, believer,

 

— Pássaros... gigantes?

 

Levantei-me em um salto ao ver as formas quase humanas e asas de morcego cortando o céu. Eles estavam em perfeita formação, como um exército organizado o que me apavorou ainda mais. Arregalei os olhos, pronta para me esconder e observar para onde eles seguiam até ver dois dos monstros saírem da formação e olharem para baixo. Na verdade, olharem para mim. E em um voo rápido eles desceram rasantes em minha direção com as bocas escancaradas e os braços finos abertos para um abraço mortal.

Saltei para trás no exato momento em que eles pousaram onde eu estava segundos antes. Ergui os olhos a tempo de desviar das garras de um dos monstros e escorreguei pelo chão escapando da mordida do outro. Levantei a alguns metros deles e percebi que se tratava de harpias como aquelas que limpavam o acampamento. Porém havia algo de errado com essas. Elas se movimentavam eretas, como humanos, e não atacavam de forma irracional. Elas pareciam pensar. Caminhavam com cuidado, me analisando, e eu ergui a espada cerrando os olhos e esperando o próximo ataque que não tardou a chegar. Logo uma delas pulou em minha direção e eu saltei sobre sua cabeça, deixando-a desnorteada, porém não antes de receber um golpe da asa do segundo monstro. Senti a pele escamosa e dura contra minha bochecha, instantes antes de voar pelos ares e bater contra uma das enormes letras do hotel. Minha espada voou longe e eu gemi de dor, provavelmente com uma ou duas costelas quebradas. Expirei o ar dos pulmões, sentindo meu corpo dormente pela dor, e permaneci de olhos fechados, atenta aos sons. Ouvi o som da minha espada rolando pelo chão e logo o som das garras dos monstros estavam a poucos metros. Mas o pior de tudo foi ouvir a voz deles.

— Uma sssssemideussssa! - Uma das criaturas sibilou. Sua voz como metal arranhando contra metal o que fez meu corpo gelar. Como ele poderia estar falando? - O messstre ficaria felizzz com uma ssssemideusssa?

— Ele quer desstruir todosss. - O outro monstro falou com uma voz ainda pior. - Quem sabe até noss dê maisss poder?

Aquela foi minha deixa. Ignorando a pontada em minhas costelas, me ergui o mais rápido que consegui, puxando a adaga que carregava escondida no cinto, e apunhalei o monstro mais próximo de surpresa. Pude sentir o metal frio rasgando o coração da coisa e ele desabou aos meus pés logo virando pó. Meu corpo queimava e controlei a respiração acelerada encarando a harpia que restou. Ele escancarou os dentes afiados e eu me pus em posição de combate com a adaga bem presa entre os dedos. Porém não houve ataque. O monstro encarou o céu, seu bando já distante como uma mancha no horizonte, e me olhou uma última vez de relance lançando um sorriso diabólico.

— Nos vemosss no confronto final, cria de deusssesss.

E alçou voo em direção ao bando. Atônita, só continuei a encarar os monstros sumindo ao longe em uma luz enorme e ofuscante que surgiu. Não, não podia ser...-

— Um portal.... - Sussurrei para mim mesma e me forcei a caminhar em direção à minha espada. Transformei-a no tridente e prendi na pulseira. - Para onde eles estão indo?

Cheguei à porta de metal que levava as escadas e vi meu reflexo. Meu cabelo estava desgrenhado e a roupa coberta dos restos do monstro. Mas o pior era o arranhão em minha bochecha que ia da orelha direita até o início dos lábios e ainda sangrava. Passei a manga do casaco contra o sangue seco e logo puxei o capuz sobre a cabeça, andar por um hotel cinco estrelas com sangue escorrendo do rosto com certeza não era algo tão glamouroso assim. Desci as escadas prendendo a adaga de volta no cinto e logo cheguei ao corredor. Diferente do silêncio de quando saí, o hotel estava movimentado. Pessoas chegando com suas malas abarrotadas e outras saindo entre conversas e risos. Abaixei o rosto e puxei ainda mais o capuz quando um grupo de adolescentes passou por mim. Caminhei rapidamente, desviando das pessoas o máximo que podia, e segui para o hall de entrada. Já eram quase três da tarde e eu preferia encontrar meu grupo fora do hotel lotado e dar um jeito nos meus ossos quebrados e bochecha sangrenta longe de olhares curiosos. Xinguei-me mentalmente por não andar sempre com meu pote de ambrosia e logo cheguei ao hall de entrada que parecia ainda mais lotado do que os corredores. E o pior foi acabar dando de cara com Nico e Venília discutindo no meio do hall.

— Angelo, você está cometendo um erro! - Venília quase choramingava tentando segurar as mãos de Nico e fazê-lo olhar em seus olhos. - Eu quero você!

Nico revirou os olhos e afastou as mãos dela tentando ser delicado mesmo que seus dentes cerrados mostrassem o contrário,

— Veni, me deixa em paz! Eu... - Ele voltou os olhos para mim com surpresa quando me viu aparecer ao seu lado. Logo um sorriso despontou em seus lábios e ele ignorou Venília completamente. - Swa...Amor! Eu estava exatamente esperando você. Onde estava?

— Eu...ahn... - Gaguejei e vi de relance a italiana sair com passadas furiosas. Abaixei a cabeça e suspirei, sussurrando para que apenas ele escutasse. - Eu estava treinando no topo do prédio. Achei a saída de emergência que dava para um heliporto e fiquei ensaiando alguns golpes. Ajuda-me a pensar....

— Certo... - O capuz sobre meu rosto dificultava a visão do rosto de Nico, mas sua voz saiu em tom duvidoso e eu engoli em seco. O que ele diria ao ver o machucado? Na verdade, o que ele gritaria? Ouvi-o pigarrear e me impedi de erguer o rosto, vendo apenas suas mãos cerrarem duramente. - Mas porque está com o capuz sobre seu rosto? Swan, o que houve?

Dei um passo para trás e Nico se aproximou com seu passo rápido e logo puxou o capuz da minha cabeça. Seus olhos vasculharam todo meu rosto e logo viram o arranhão na bochecha. Seu semblante se fechou em uma carranca.

— O que aconteceu? Quem te machucou? - Ele segurou meu rosto entre as mãos e seus dedos frios passaram delicadamente sobre o machucado o que me fez retesar pelo ardor.

— Uma harpia. - Suspirei e me desvencilhei de suas mãos para puxá-lo em direção à saída do hotel. Escondi o rosto das pessoas que passavam e apenas quando chegamos ao outro lado da rua ergui o rosto novamente. Nico parado em minha frente cruzou os braços a espera de uma explicação. - Eu estava treinando quando um bando de harpias passou voando sobre o hotel......

E contei todo o ocorrido incluindo o estranho fato das harpias serem racionais e poderem falar claramente. Nico escutou tudo calmamente e ao fim voltou a analisar meu rosto.

— Que bom que foi um arranhão superficial. - Ele puxou do bolso do casaco uma pequena caixa e logo tirou dela uma folha de ambrosia entregando-a para mim. Engoli sem pestanejar, sentindo o sabor de brownie com sorvete descendo pela garganta. Nico ainda me analisava com os braços cruzados quando voltei a encará-lo. - Você não se cansa de ficar em perigo?

— De tudo que eu te falei você só prestou atenção nisso? - Ergui a sobrancelha e coloquei as mãos nos quadris.

— Te manter viva é mais importante para mim do que harpias inteligentes e falantes! - Nico vociferou me encarando intensamente e eu crispei os lábios digerindo suas palavras. Meus olhos arregalaram e posso jurar que vi Nico corar levemente.

— Eu não sabia que monstros voadores estariam passando no topo do prédio. - Respondi calmamente e tomei as mãos de Nico nas minhas o que o fez relaxar um pouco. - Mas ainda bem que eu estava lá. Assim posso contar ao grupo o que vi.

— E o que você viu? - Uma voz grave soou as minhas costas de repente e por instinto soltei as mãos das de Nico e golpeei o rosto de quem quer que estivesse atrás de mim. Logo ouvi o gemido de dor e os cabelos castanhos de Leo surgiram em meu campo de visão. - Ai! Lembre-me de nunca mais pegar você de surpresa!

— Essa é minha garota! - Percy falou animadamente surgindo ao meu lado e bagunçando meus cabelos. Pela sua expressão orgulhosa e nada preocupada imaginei que o machucado na bochecha já houvesse sumido. Contive o suspiro de alívio.

— Perdão, Leo! - Falei com os olhos arregalados enquanto o filho de Hefesto apenas acenava enquanto massageava o nariz. Todos os outros me encaravam segurando a risada.

— Então Duda, o que precisa nos contar? - Annabeth perguntou sem rodeios e eu suspirei ouvindo minha barriga roncar.

— Primeiro que tal a gente comer? Depois do que eu passei acho que preciso de um bom e gigantesco hambúrguer pra amenizar o trauma....

— Então, me deixa ver se entendi. Você resolveu treinar no topo de um prédio de cinco andares, foi atacada e quase morta por um grupo de harpias superinteligentes e as viu sumir no meio da floresta em algo que parecia um portal?

Encarei Percy ao meu lado e assenti pensando que seu resumo havia sido bastante perspicaz.  Havíamos acabado de sair da lanchonete que ficava próxima ao hotel. Nenhum deles estava com fome, mas eu pedi o kit completo de hambúrguer e batata frita para a viagem e voltamos a caminhar seguindo Annabeth que sabia exatamente onde encontrar Thalia. A cada mordida eu contava um pouco da minha história enquanto todos ouviam atentos. Ao fim do resumo de Percy eu dei a última mordida no hambúrguer e senti Percy limpar minha bochecha suja de katchup. Virei-me para agradecer, mas seus olhos pareciam furiosos e eu apenas me encolhi.

— Você não se cansa de ficar em perigo? - Ele rugiu com exasperação e ergueu os braços para o ar. Pude ver de relance o sorriso metido de Nico e suas sobrancelhas se erguerem como quem diz “Eu te avisei!”. Revirei os olhos e bufei.

— Eu soube me virar muito bem, obrigada! - Cutuquei o peito de Percy com autoridade e ele cerrou os olhos. - Mas isso não é o mais importante. Aquelas harpias agiam como humanos. Elas andavam eretas e até mesmo falavam!

— Isso é bem bizarro. - Piper falou e vi seu corpo tremer ao imaginar as vozes dos monstros. Jason a abraçou forte e me encarou com determinação.

— Alguém está modificando os monstros e eu não duvido que o tal mestre tenha algo a ver com isso.

— Bem, eu tenho certeza de que é ele! - Falei irredutível. Encarei o caminho adiante tentando ver além dos cabelos loiros de Annabeth a minha frente. Já seguíamos a estrada por um bom tempo e naquele momento eu podia ver que o fim dela dava nos portões de bronze de um grande parque. Além deste estava uma floresta densa e um provável portal que levava a deuses sabem onde. - E aposto que era para o mestre que os monstros seguiam quando entraram no portal.

— Já eu aposto que não é coincidência a Duda ver monstros sumindo na mesma floresta que Thalia pediu para nos encontrar..... - Annie falou enquanto empurrava os pesados portões do parque.

Havia poucas pessoas ao redor. Casais nos bancos e próximos às fontes curtindo o dia de sol, senhoras jogando comida para os pombos e alguns guardas espalhados ao redor. Mas nenhum deles perto o suficiente da floresta para ver a garota de cabelos negros e olhos azuis eletrizantes que parecia impaciente. Quando chegamos mais próximo, Thalia cruzou os braços com a sobrancelha erguida.

— Porque demoraram tanto? - Suspirei pronta para explicar que a culpa havia sido minha, mas antes de qualquer resposta Thalia apenas ignorou com um movimento de mão e adentrou a floresta esperando que a seguíssemos. - Deixa pra lá, não podemos perder mais tempo. Vocês não vão acreditar no que nós descobrimos!

— Seria um portal? - Questionei erguendo a mão como uma aluna em sala de aula, esperando que Thalia negasse com uma risada e falasse de algo bem mais simples e menos estranho.

Porém a filha de Zeus estancou no lugar e me encarou com os olhos arregalados.

— Espera, como você sabe?

— Bem, a Duda viu harpias voando para cá e sumindo em uma luz forte no meio da floresta. - Percy explicou voltando a seguir Thalia pelo meio das árvores. - Supomos que fosse um portal.

— Então acertaram na mosca! – Thalia passou as mãos pelos cabelos enquanto caminhava entre Percy e Annie seguindo a trilha que, provavelmente, as próprias caçadoras fizeram – Quando chegamos aqui passamos a caçar os monstros que encontrávamos. Como em vários lugares por onde já passamos, acreditamos que haveria um grupo de monstros e logo acabamos com todos eles. Porém quando fazíamos nossa ronda hoje, apenas para nos certificar que havíamos acabado com todo o perigo de vez, encontramos um novo grupo de monstros ainda maior que o primeiro. E mesmo depois de acabar com esse outros surgiram em pouco tempo. Não estava adiantando nada matá-los já que eles pareciam surgir novamente e cada vez mais. - Thalia pulou sobre um grosso tronco e continuou sua narrativa enquanto todos ouviam atentamente. - Então seguimos um dos grupos. Eles atravessaram a floresta e saíram numa clareira que terminava em um penhasco. Eu e as garotas nos escondemos atrás das rochas e árvores enquanto víamos os monstros pulando do penhasco em direção ao mar abaixo.

— Eles estavam se suicidando? - Leo interrompeu com as sobrancelhas erguidas, fazendo a pergunta que rondava a mente de todos.

— Foi o que pensamos já que até mesmo os monstros com asas pulavam do penhasco e sumiam de vez. Então quando o fluxo de monstros diminuiu eu e mais duas garotas caminhamos apressadamente até a beira do penhasco e vimos um portal dourado como um pequeno redemoinho a alguns metros de distância. Eles estão indo para algum lugar e estão andando em bandos organizados. Parecem até....

— Humanos. - Completei com um suspiro, um arrepio subindo pela espinha, e recebi um olhar de relance de Thalia que acenou afirmativamente. - É, hoje ouvi dois deles conversando claramente, entendi todas as palavras. Eles estão ficando inteligentes.

— No caso, alguém os está deixando inteligentes. - Annie corrigiu e eu acenei discretamente.

Os outros continuaram a conversar, mas as palavras pareciam distantes para mim enquanto eu tentava achar a conexão entre os monstros superdotados, o roubo do livro e eu. Porque ele queria me raptar? O que ele pode querer com meu poder de Língua Encantada? No entanto todas as perguntas sumiram de minha mente quando saímos da floresta, adentrando a ampla clareira, e vi uma das maiores batalhas da minha vida se desenrolando bem diante dos meus olhos.

Monstros de todos os tipos e formas se espalhavam pela ampla clareira, guinchando e uivando com as caçadoras que os combatiam arduamente. O barulho era ensurdecedor e, se não fosse pela névoa que encobria tudo dos olhos mortais, o exército, a marinha e a aeronáutica com certeza já teriam sido chamados. Num piscar de olhos vi Percy transformar sua caneta e entrar na batalha, o irmão carinhoso e superprotetor sendo substituído rapidamente pelo guerreiro feroz. Annie o acompanhou automaticamente, sua adaga afiada e mortal zunindo pelo ar, assim como todos os outros. Como um extinto já natural em mim, puxei o tridente e transformei-o em uma espada, logo saltando da primeira rocha que encontrei. Pousei sobre um monstro pegajoso e com quatro braços no momento que este se preparava para atacar a caçadora a sua frente. Ouvir minha espada rasgando sua carne e seu guincho de horror foi como música e pousei no chão graciosamente, limpando a espada na grama alta enquanto o monstro se desintegrava a minha frente. A caçadora, uma garota pequena e ruiva, sorriu em agradecimento e logo partiu para o próximo monstro que encontrara em seu caminho.

Minutos se passaram, minha espada trabalhava como uma máquina matando mais monstros do que eu achava ser possível. Lancei minha adaga em um monstro a distância o vi se desintegrar em segundos. Em determinado momento percebi Thalia próximo a uma de suas caçadoras perguntando o que havia acontecido, como aquela batalha começara. A garota desviou de um monstro gosmento e com vários olhos, explicando, em seguida, que quando elas estavam escondidas nas árvores um dos monstros saídos do portal parou no meio da clareira e observou as árvores com uma atenção quase humana, farejou o ar e acabou encontrando-as escondidas, o que apenas confirmava a modificação feita nas criaturas. Não lutávamos mais com monstros irracionais, mas com guerreiros que pensavam claramente.

Um arrepio de aflição percorreu minha espinha, mas logo foi substituído pelo calor da batalha quando um monstro com três vezes minha altura surgiu em minha frente. Escorreguei por entre suas pernas partindo-o ao meio em poucos minutos. Olhei ao redor, a clareira antes calma agora era cheia de gritos e retinir de metal. Caçadoras e semideuses lutavam lado a lado com fervor, mas de nada adiantava. À medida que bandos de monstros eram destruídos pelas espadas e adagas mais apareciam em seu lugar vindos direto do fundo do penhasco. Era fácil perceber que, apesar da nossa resistência sobre-humana, o cansaço já surgia em golpes desferidos com mais fraqueza e desvios feitos de forma descuidada. Se algo não fosse feito seríamos derrotados e mortos em breve.

— O portal.... – Sussurrei comigo mesma correndo em direção ao um monstro que acabava de surgir na beirada do penhasco, subindo com suas patas enormes. Em um golpe rápido enfiei a espada em sua cabeça e ele explodiu em centelhas cinza fazendo uma nuvem escura cair penhasco abaixo. Finalmente pude observar o que estava no fundo. O portal ficava a uns bons vinte metros abaixo de onde eu estava e brilhava com uma luz dourada. O centro deste era como um espelho mostrando apenas o céu acima e pude ver meu rosto quando inclinei a cabeça para frente, mas nada revelava sobre como era o outro lado. Meu reflexo ondulou e sumiu quando cinco monstros pularam do portal em direção a lateral do penhasco, começando a escalar com voracidade. Só havia uma solução: – O portal precisa ser destruído.

Caminhei impaciente de um lado a outro na beirada do penhasco e matei dois dos cinco monstros que surgiram do portal enquanto tentava colocar a cabeça para funcionar.

— Annie já teria um plano nessa altura do campeonato. – Bufei comigo mesma e procurei Annie com os olhos, mas ela estava ocupada com três monstros que a rodeavam. – Tudo bem, Duda, hora de pensar como uma filha de Atena!

Suspirei aflita vendo o portal tremular mais uma vez, mas algo diferente chamou minha atenção. Minha mão começou a esquentar e eu a encarei confusa até ver o anel de íbis de minha avó brilhando com uma luz tão dourada quanto a do portal.  Aproximei a joia dos olhos e pude ver no centro do íbis um pequeno redemoinho que acelerava cada vez mais quanto mais eu aproximava até que parou de repente e uma luz dourada explodiu em meu rosto vinda do anel. Mas eu não consegui fechar os olhos e, ao contrário do que imaginei, a explosão dourada não me causou nenhuma dor. Na verdade, por mais louco que pareça, a luz pareceu abrir minha mente de uma forma extraordinária. Eu sabia o que devia ser feito, eu sabia como deveria fechar o portal. A luz dourada sumiu tão rápida quanto surgiu e eu me vi transformando a espada novamente em tridente e a prendendo na pulseira. Não precisaria dela para o que iria fazer. Toda a batalha pareceu passar em câmera lenta ao meu redor, eu me sentia fora do meu corpo e, ao mesmo tempo, completamente dona das minhas ações. Era uma sensação completamente nova e arrebatadora, algo difícil de explicar. Eu apenas sabia o que devia ser feito e estava pronta para fazer mesmo que não fizesse ideia se iria sobreviver aquilo. Procurei o medo profundamente dentro de mim, mas não encontrei nem vestígio dele. Então apenas caminhei lentamente para a beira do precipício, o vento vindo do mar parecia balançar meu corpo como a um barco frágil. Quando parei no limite máximo, as pontas dos pés já não sentindo mais a terra abaixo, respirei fundo.

— Swan...? – A voz de Nico parecia ultrapassar as barreiras da minha mente nublada e atingir meus ouvidos como uma onda violenta, mas nada me faria recuar. – Swan, o que pensa que está fazendo?!

E assim eu deixei meu corpo cair na imensidão abaixo.

Mantive os olhos bem apertos sentindo o vento bater contra mim violentamente, o portal cada vez mais perto. Podia ouvir gritos vindo do alto do penhasco, mas minha mente focava apenas no dever a ser cumprido como se programada para aquilo. Senti um ardor estranho surgir em minha barriga em determinado momento, mas ignorei quando algo novo surgiu em minha mente. Uma palavra em uma língua completamente estranha, mas que soou familiar quando sussurrei a mim mesma como se fosse uma velha amiga. Juntei as mãos à frente do corpo com as palmas abertas em direção ao portal e quando poucos metros me separavam deste proferi a palavra com toda a força de meus pulmões, sentindo-a ser amplificada por meu poder.

— TADMIR!

Destruição, destruição, destruição! A palavra parecia se repetir em minha mente enquanto ecoava de minha boca na língua estranha. No mesmo instante senti minhas mãos esquentarem, um calor aconchegante que envolveu todo o meu corpo em queda livre. Num piscar de olhos o portal oscilou freneticamente até explodir em uma chuva dourada no momento que mais um bando de monstros saía dele. Os monstros explodiram junto com o portal no momento exato em que meu corpo se chocaria com eles. Após poucos segundos senti o calor sumir de mim e meus sentidos voltaram ao normal. O poder aterrador que senti minutos antes sumiu como um suspiro e meu corpo voltou a ser comandado apenas por minha consciência e logo percebi que continuava caindo. O mar se aproximava rapidamente e fechei os olhos no momento que senti o impacto da água contra meu corpo.

O frio da água invadiu meu corpo causando um choque térmico, mas a familiaridade do domínio de meu pai fez meu corpo relaxar imediatamente. Continuei afundando no oceano límpido, tão transparente que pude vê-lo sendo manchado por algo vermelho que rodeava meu corpo. Arregalei os olhos ao perceber que a mancha saía de um corte feito em minha barriga, a blusa em farrapos até quase a altura dos seios enquanto o sangue esvaía do ferimento. Provavelmente causado pela garra de alguns dos monstros que subia pelo penhasco enquanto eu fazia bunguee jump sem cordas.  Fechei os olhos e respirei fundo sentindo a água fazendo seu trabalho em meu corpo aos poucos. Porém, quando encarei o ferimento novamente, o arranhão continuava ali em carne viva. Eu estava envenenada, podia jurar que sentia o ácido invadindo meu corpo, e a água não poderia fazer nada para me ajudar no momento. Sentindo o corte que transpassava minha barriga arder a cada movimento, nadei para a superfície com dificuldade. Precisava voltar ao penhasco e conseguir ambrosia ou estaria bastante encrencada. Quando emergi pude ver que alguns quilômetros me separavam do penhasco, mas não avistei nenhum monstro na clareira. Apenas diversas cabeças de semideuses na beirada do penhasco encarando o alto mar. Tentei erguer a mão para mostrar que estava bem, mas a dor em meu abdômen me fez gemer. Respirei fundo e mergulhei, focando em meu poder. Logo senti um redemoinho se formando aos meus pés, vindo do fundo do mar. Ele cresceu cada vez mais até ter o poder suficiente para me erguer por sobre a superfície e me levar na direção do grande rochedo. Sentia minha força diminuir a cada momento, destruir o portal não pareceu nada demais no momento, mas agora as consequências de tanto poder usado era o cansaço que me abatia. Forcei meus braços a manterem o redemoinho fixo, eu precisava chegar ao penhasco, faltava tão pouco! Sentia minha consciência vacilar durante o percurso e acabei acelerando meu ‘meio de transporte’.

Porém quando poucos metros me separavam do rochedo, o rosto aliviado de todos já entrava em foco em meu campo de visão, eu não consegui mais suportar. Estava esgotada e o redemoinho sumiu aos poucos me lançando novamente no mar. Eu só queria ser engolida pelas ondas e descansar tranquila no fundo do mar, na paz e calmaria, mas antes que meu corpo voltasse para a água senti um novo redemoinho surgir sob mim e me elevar novamente. Eu sabia vagamente que não estava controlando nada, mas me deixei levar sem forças para questionar o que acontecia. Vi apenas Percy com as mãos erguidas e as sobrancelhas franzidas em concentração antes do redemoinho me deixar cair no chão macio e gramado da clareira. O ar escapou de meus pulmões com a pancada repentina e eu gemi sentindo o ferimento em meu abdômen arder ainda mais. Percy relaxou ao desfazer o redemoinho e logo caiu de joelhos ao meu lado olhando meu corpo meticulosamente. Um sorriso grogue despontou de meus lábios enquanto eu tentava descobrir se as árvores estavam realmente de cabeça para baixo.

— Obrigado, maninho. – Sussurrei com um resquício de força e vi Percy sorrir aliviado enquanto alisava meu cabelo com carinho.

De repente senti algo ser colocado em minha boca e o sabor de bolo de laranja desceu pela minha garganta como um manjar dos deuses. Minha mente trabalhava lentamente e virei o pescoço em direção à mão que depositara a ambrosia em minha boca dando de cara com um Nico ajoelhado do meu outro lado. Raiva, preocupação alívio, indignação. Eram tantos sentimentos estampados na expressão do filho de Hades que quase me deixou tonta, quer dizer, mais tonta do que eu já estava.

— Nico... – Suspirei encarando o moreno ao meu lado, tentando expressar pelo olhar todas as desculpas que não conseguia pronunciar.

— Você quebrou nosso acordo, Swan. – Ele respondeu em um sussurro tomando minha mão entre as suas sem se importar com ninguém ao redor. Seus dedos brincavam com os meus como se ele precisasse me tocar para ter certeza de que eu estava bem, viva. Seus olhos se ergueram para os meus com uma empatia tão grande que me fez estremecer. – Você se jogou de um penhasco com quase sessenta metros de altura na direção de um portal repleto de monstros sem saber se sairia viva. Você fez picadinho da nossa primeira regra!

— Bem, você também não é um exemplo de cumpridor dos acordos... – Sorri fracamente voltando os olhos para nossas mãos unidas e ele tentou sorrir, mas saiu como uma careta. Seus olhos estavam vermelhos e eu me bati mentalmente ao imaginar tudo o que passou pela cabeça dele quando eu pulei do penhasco feito uma suicida. Baixei os olhos envergonhados. – Desculpe.... eu só senti o que deveria fazer e fiz.

— Simples assim? – Ele vociferou, mas logo tentou controlar a voz mesmo que suas mãos tremessem pelo esforço. Nico parecia desolado como se tentasse voltar a ser o garoto desinteressado e frio, mas algo em si não permitisse. Pela primeira vez ele não conseguiu esconder seus sentimentos e isso o deixou transtornado. – Eu achei que você tivesse morrido e fiquei apenas esperando para ver seu espírito seguir para o mundo dos mortos. Você não pode fazer isso, não poder fazer isso comigo nunca mais!

— Eu sei... mas estou bem. Eu estou bem... – Falei para ele tentando mostrar que estava realmente bem, mesmo que de vez em quando eu visse dois Nicos ao invés de um.

Antes que eu falasse qualquer outra coisa senti os braços fortes de Nico me rodear, suas mãos acariciavam meus cabelos com delicadeza e sua respiração arrepiava minha nuca. Eu nunca quis tanto me perder em um abraço como desejava me perder naquele, mas a força do abraço me fez gemer de dor pela ferida ainda cicatrizando no abdômen o que fez Nico se afastar rapidamente e acabar encarando minha barriga exposta fixamente. Podia jurar que o vi corar violentamente, mas minha cabeça não estava tão boa assim no momento então apenas segurei a mão de Nico e passei a encarar todo o grupo disposto ao meu redor. Caçadoras e semideuses me encaravam com preocupação e alívio, alguns até com admiração, e forcei a voz para sair o mais forte que conseguia junto com um sorriso inocente.

— Então, vencemos?

O suspiro de alívio foi geral junto com algumas risadas. Todos pareciam exaustos e machucados, mas a felicidade por mais uma batalha vencida parecia reanimar a todos.

— É claro que vencemos! – Percy respondeu como se fosse óbvio enquanto me ajudava a sentar. Sentia o ferimento cicatrizando aos poucos, mas a dor ainda era intensa. – Depois que você destruiu o portal foi fácil acabar com os monstros restantes. Se não fosse por você acho que não teríamos chances. Mas se fizer algo assim de novo tá de castigo... pro resto da vida!

Revirei os olhos para meu irmão, mas acenei em concordância. Eu também esperava não repetir aquilo tão cedo!

— O que leva a pergunta: Como você fez aquilo? – Annabeth me encarava com sua típica curiosidade estampada no olhar. Eu ainda respirava pesadamente recapitulando tudo o que havia ocorrido. – Como você destruiu aquele portal?

— Na verdade eu não sei explicar.... – Cerrei os olhos tentando focar os pensamentos ainda desconexões pela tontura. – Eu estava na beira do penhasco tentando impedir os monstros de subirem até sentir meu anel brilhar e quando ele explodiu em luz no meu rosto eu simplesmente soube o que deveria fazer, o que deveria falar para destruir o portal.

— Então você destruiu o portal dos infernos com uma única palavra? – Leo questionou com a sobrancelha erguida e eu acenei.

— Uma palavra estranha e que agora eu lembro apenas do significado. Destruição. – Me arrepiei ao lembrar do poder que senti ao proferir aquela única palavra. Foi algo arrebatador e que pareceu controlar o meu corpo. – E num piscar de olhos o portal explodiu.

O silêncio reinou enquanto a maioria dos olhos me encarava perplexos, principalmente as caçadoras que desconheciam meu poder herdado pelo lado da minha mãe. Suspirei pesadamente deixando que todos processassem a história, foi realmente muita coisa para um dia só, mas todos pareciam bem. Algumas caçadoras ainda estavam com ferimentos expostos, mas que aos poucos cicatrizavam, a ambrosia mostrando seus efeitos. Já os semideuses pareciam apenas esgotados, mas me lançavam sorrisos encorajadores provavelmente porque eu parecia ser a mais machucada entre todos ali. Senti a mão de Nico apoiar-se na base de minha coluna me ajudando a levantar enquanto Percy segurava meu braço. A dor parecia diminuir a cada instante, mas a pontada fina em meu abdômen ainda me fazia respirar fundo e distorcer o rosto angustiada. Os garotos me encaravam preocupados quando finalmente fiquei de pé, mas forcei um sorriso mesmo que a tontura tenha feito minha cabeça revirar.

— Foi tudo uma grande loucura, mas que bom que todos estão vivos e bem. Agora, uma última dúvida... – Pisquei os olhos freneticamente vendo com dificuldade algumas caçadoras se dispersarem, apanhando suas armas. Nico continuava ao meu lado e me esforcei bastante para fazer seu rosto entrar em foco, mas falhei miseravelmente. A vertigem parecia aumentar à medida que a dor diminuía e quando olhei para o céu percebi que algo estava muito errado comigo. – Porque as árvores estão flutuando?

E então senti minhas pernas bambearem e meu corpo desfalecer sem forças para continuar em pé. Minha visão se tornou um grande borrão e eu me senti flutuar assim como as estranhas árvores.

 Eu estava caminhando para a luz, a escuridão ficando para trás como um véu. Aos poucos minha visão entrou em foco, mas logo percebi que não estava no mundo real. Ao menos não no tempo real. Primeiro, o ambiente parecia desbotado como em um flashback, e segundo, minha avó estava ali bem na minha frente com seu rosto calmo tomando sua típica xícara de chá. Arregalei em olhos, os lábios entreabertos em completa surpresa. Vê-la ali foi como um soco no estômago, memórias e mais memórias enchendo minha cabeça como uma inundação irrefreável. Ela parecia serena, o rosto calmo como uma brisa sobre o mar saboreando o chá com os olhos fechados. Meu coração parecia querer sair do peito, não podia ser ela ali!

— Vovó? – Ouvi meu sussurro como uma lamentação embargada. Já não continha as lágrimas que desciam por meu rosto e caminhei lentamente até onde ela estava. O cabelo preso em um coque perfeito, as pernas balançando ao som de uma música que soava da sala. Sorri ao lembrar quando ela me conduzia pela sala dançando como uma adolescente. Meu coração falhou uma batida e eu chamei-a novamente. – Vovó, eu estou aqui!

A campainha soou e ela abriu os olhos castanhos em surpresa. Ergueu-se da cadeira rapidamente apesar da idade e caminhou até a sala deixando a xícara de chá para trás. Ela estava a centímetros de mim e sorri, abrindo os braços, sonhando em sentir seu abraço quente e confortável contra mim. Mas ela simplesmente continuou caminhando e atravessou meu corpo. Prendi a respiração ao confirmar que aquilo era realmente um sonho. Suspirei e arregalei os olhos de repente. Eu não costumava ter sonhos, mas sim pesadelos. Corri atrás de minha avó pedindo aos deuses que ao menos daquela vez tudo fosse apenas um sonho bom. Ela já alcançava a porta com um mínimo sorriso nos lábios.

— O que minha pequena faz aqui há essa hora? – Ela murmurou para si enquanto girava o trinco.

Mas não era eu à porta. Pude ver apenas garras contra a grossa madeira quando vovó arregalou os olhos e fechou a porta novamente o mais rápido que pode. Na verdade, tentou fechar já que uma garra se prendeu ao vão da porta e empurrou a madeira fazendo-a se estilhaçar contra a parede. Vovó caminhou para trás com as mãos contra o peito enquanto os mais novos convidados invadiam a casa sem cerimônias.

— Mas que falta de educação Sra. Swan! – Uma voz arrastada e grave falou sarcasticamente e antes mesmo de fixar os olhos eu soube quem era.

Ou, na verdade, o que era.

Ele não tinha forma, parecia uma sombra com buracos no lugar dos olhos. A mesma aparência de quando o vi na floresta dias atrás saindo do corpo de Jason com uma ameaça lançada contra o vento. O espírito que servia ao mestre. E ele não estava sozinho. Trazia como guarda-costas dois escorpiões, quase tão grandes quanto o que me atacou na floresta, que arrebentaram a porta lançando lascas de madeira para todo lado. Minha avó se afastou rapidamente para trás com uma agilidade que me surpreendeu, se postando ao lado do porta guarda-chuva que parecia conter apenas um deles naquele momento. Meu coração acelerou angustiado quando vi o fantasma se aproximar da minha avó com o que parecia ser um sorriso zombeteiro no rosto desfigurado enquanto os escorpiões o rondavam a espera de um sinal para atacar.

— Quem é você? – Minha avó questionou com a voz firme e carregada de fúria, completamente diferente da forma doce e pausada que ela costumava usar habitualmente. Aquela mulher a minha frente não parecia em nada com minha avó. Sua coluna estava ereta e seu corpo parecia mais jovem e forte do que ela costumava aparentar, mas a pele ainda era marcada pelas rugas e eu pude perceber suas mãos tremerem levemente. Eu nunca a vira com toda aquela garra mesmo que a idade quisesse se sobrepujar a guerreira que parecia morar ali. Mas ela não cederia tão fácil! Ela posicionou os pés e cerrou os punhos, pronta para o combate e eu deixei um leve sorriso me escapar dos lábios. – O que quer de mim?

A sombra flutuou de um lado a outro como se admirasse a decoração rústica da sala e logo cravou os olhos em minha avó quando ouviu sua voz.

— Corajosa, mesmo que tenha feito à pergunta errada. Não quero algo de você, eu quero você, ou melhor, a sua bela voz! – Ele cruzou os braços nas costas e se inclinou para trás analisando minha avó de cima a baixo. – E nós podemos fazer isso da forma fácil ou da forma difícil.

— Saia da minha casa, agora! – Vovó vociferou firme, encarando a sombra com autoridade e esticando o braço em direção ao único guarda-chuva. Ergui a sobrancelha, o que ela pretendia fazer contra dois monstros e um fantasma maligno usando um guarda-chuva?

— Sempre prefiro a forma difícil.... – A sombra lançou o que parecia um sorriso sarcástico e, em um piscar de olhos, voou contra minha avó pronta para possuí-la.

Meus olhos arregalaram e um grito desesperado saiu de minha garganta antes que eu pudesse conter, mesmo que ninguém ali pudesse ouvir. Porém minha avó não hesitou e até mesmo ergueu os lábios em um sorriso mordaz enquanto o fantasma se aproximava cada vez mais. E chocou-se contra uma espécie de parede mística que brilhou ao redor de vovó sendo lançado do outro lado da sala com estrondo vívido. Tudo paralisou e o silêncio preencheu cada canto do cômodo. Vovó permaneceu altiva enquanto o espectro se recompunha, os olhos ocos franzidos em uma ira ensandecida.

— O cobre de Maat – A sombra bradou encarando fixamente o pescoço de minha avó onde um colar brilhante e idêntico ao meu repousava. O sobrenome Swan começava a esmaecer e percebi, espantada, que foi dele onde o escudo invisível que protegeu minha avó surgiu. A sombra rosnou e encarou os escorpiões que permaneciam inertes a esperada de uma única ordem que não demorou a aparecer. – Peguem-na a qualquer custo!

Os escorpiões correram em direção à vovó como se esperassem por isso desde que surgiram. Senti meu sangue gelar quando o rabo de um deles passou a centímetros do rosto dela, mas vovó foi rápida e puxou o guarda-chuva que se transformou, diante dos seus olhos, em uma espada curva e afiada, muito parecida com aquela usada por Arthur. Agora eu que estava paralisada vendo minha avó lutar contra dois escorpiões com o dobro do seu tamanho de forma tão natural, como se fizesse isso todos os dias. Sua espada cortava o ar com destreza enquanto ela se esquivava das garras e pinças dos monstros. Com um golpe certeiro sua espada cortou ao meio um dos escorpiões que sumiu em poeira em um piscar de olhos o que me fez sorrir orgulhosa. No entanto, por um deslize, o escorpião restante acertou-a nas pernas e arrancou o colar de seu pescoço com rapidez. Vovó prendeu o fôlego, ajoelhada contra o tapete felpudo e rasgado da sala, e ergueu os olhos para a sombra que agora a encarava vitorioso, prostrando-se em sua frente.

— Sra Swan tudo seria mais fácil se tivesse cooperado. – Ele ergueu a mão de fumaça fazendo o escorpião se afastar com o rabo ainda tremendo em antecipação. A sombra abriu mais um de seus sorrisos lúgubres. – Acredito que agora podemos ir.

E então o espectro se aproximou novamente, dessa vez com cautela a espera de outro escudo, porém nada aconteceu já que o colar repousava a metros de minha avó. A sombra alargou o sorriso e se aproximou mais. Minha garganta secou e senti minhas mãos cerrarem, não aguentaria ver minha avó ser possuída. E, pelo jeito, nem ela. Antes que a sombra entrasse em seu corpo vovó usou o restante de suas forças para abrir o cabo da espada e tirar dali um comprimido minúsculo. Ela ergueu a espada e tateou o ar ao seu lado como se procurasse algo, sua mão tocou algo e ela jogou a espada no espaço vazio, fazendo-a desaparecer diante dos meus olhos. Como em um armário no além. Mas não tive como pensar muito sobre o sumiço da espada, pois a sombra logo tomou conta do corpo de vovó o que a fez arregalar os olhos e suspirar em desespero. Já sentia as lágrimas embaçando meus olhos, mas apesar da imagem distorcida pude ver claramente que a possessão não durou muito porque vovó logo jogou o comprimido na boca e engoliu-o rapidamente. A ação foi quase imediata, seu corpo esmoreceu e o espectro foi expulso dela.

— Eu... prefiro morrer a ser seu fantoche. – Vovó sussurrou sem fôlego para a sombra que permanecia em sua frente, caída e com as orbes ocas queimando de fúria. Vovó lançou-lhe um sorriso vitorioso. – Você não vai chegar à minha família, shabh! Sua respiração parou no momento em que sua cabeça se chocou contra o chão. A música ainda soava na sala quando senti meus joelhos contra o chão e meu coração se estraçalhar. Ela parecia estar apenas dormindo, um sorriso singelo ainda repousando em seus lábios. Apesar da dor que parecia transpassar meu corpo e chegar até a alma, me forcei a continuar encarando a cena e pude ver quando o fantasma se ergueu e pegou o colar de vovó. Flutuou até o vão de entrada da casa, sendo seguido pelo escorpião restante, e ali ele se virou para trás encarando o corpo de minha avó. O pior: ele sorria como um vencedor.- É uma lástima que estivesse enganada, Swan. – Ele cruzou o vão, erguendo uma das mãos, o que fez a porta voltar a ser inteira e todos os resquícios da batalha sumirem, como se nunca tivesse acontecido. Mas suas últimas palavras antes de sumir completamente continuam na minha cabeça até hoje. – Já sei quem procurar em seguida.Meus soluços ressoavam na sala e rastejei até o corpo de minha avó. Cada vez mais próximo, o odor ferroso do sangue me deixando zonza. Ainda me lembro do dia que a encontrei na sala, o corpo já gelado. Não havia marcas de batalha, tudo indicando um ataque cardíaco. Algo normal que poderia acontecer a qualquer mortal. Mas estando ali como um espectador fantasma pude perceber o quanto a névoa me enganou naquele dia. Meus olhos já ardiam quando a sala começou a sumir diante dos meus olhos, os móveis se tornando fumaça negra. O último a sumir foi o corpo de minha avó e, após, tudo que via era o nada como se o mundo houvesse caído em trevas. Mas eu não podia me mexer, não conseguia, a cena da morte se repetindo em minha mente de novo e de novo. Então o nada se tornou algo sombrio e perverso, as sombras começaram a se mover ao meu redor como um redemoinho cada vez mais rápido. E naquele momento eu não senti medo ou angústia, apenas a fúria me dominava.- Você a matou. – Minha voz saiu como um sussurro enquanto o borrão de sombras parecia se aproximar de mim ainda mais. Um rosnado furioso saiu do meu peito junto com a força das palavras. – VOCÊ A MATOU!- Está equivocada, criança. – A voz grave arranhou meus tímpanos e fez um arrepio gelado percorrer minha espinha, mas apenas cerrei os punhos e ergui o rosto. As sombras não passavam de borrões, mas podia jurar que vi flashes de pontos vermelhos como olhos demoníacos. – Nunca estive ali.Senti o ódio preencher cada pequeno espaço do meu corpo e meus dentes rangeram em reação.- O que é uma lástima. – Ele prosseguiu, a voz se tornado um riso perverso. – Ver a grande Swan morrer por nada, isto é decepcionante até mesmo para mim.E esta era a fagulha que faltava que inflamar o ódio em mim. Ergui-me em um pulo e ataquei, mas era como lutar com sombras. Literalmente. Minhas mãos socavam o nada e senti a frustração tomar ainda mais meu corpo. Mal contive as lágrimas, mas lutei bravamente.- Então porque toda essa demora? – Vociferei rodando no lugar, tentando encontrar qualquer parte das sombras que recordasse, mesmo que vagamente, um rosto para que eu pudesse encarar. – Porque não me pegar antes mesmo que eu chegasse ao acampamento?

 Então olhos vermelhos surgiram no meio do redemoinho, me encarando como se lessem minha alma. Não desviei o olhar mesmo quando uma risada alta soou dentre as sombras como se zombasse de mim. Ergui a sobrancelha em descrença.

— Você não sabe? Como você não sabe? Tudo melhora cada vez mais! – Cerrei os punhos e crispei os lábios esperando algo como uma explicação e não uma zombaria, mas nada recebi. – O destino é um mistério até para os imortais. Agora chegou a sua vez de brilhar, cria dos deuses.

— Eu não vou fazer nada para você! – Gritei com todas as minhas forças. – Vai ter que me matar primeiro.

— Oh, mas você já está vindo até mim. – As sombras serpentearam a minha volta mais lentamente como se o monstro me inspecionasse com cuidado. – É questão de tempo até eu tê-la na palma da minha mão.

— Não seu eu matá-lo antes!

— Sua coragem é admirável, mesmo que ingênua. Heróis e deuses já tentaram o que você promete e falharam miseravelmente. O que espera uma adolescente que tem medo de usar os próprios poderes?

— Veremos quando a hora chegar se sou tão ingênua assim.

— Ameaças vãs me divertem. Mas estou ansioso para encontrá-la pessoalmente então não demore! – As sombras se aproximaram cada vez mais de mim assim como os olhos escarlates e brilhantes. – Mal posso esperar para ter seus amigos em minha posse e matá-los, um a um, em sua frente pequena Swan...swan...swan....

SWAN!

Meu ataque foi mais rápido do que eu achava ser possível. Imaginar meu irmão e meus amigos mortos pelas mãos daquele monstro me fez ver em vermelho e avancei sem me importar com o que poderia acontecer comigo. Senti minha mão ao redor de um objeto pesado e pressionei isto contra algo. Ou melhor, alguém. Minha visão voltou ao foco logo em seguida, a escuridão de sombras dando lugar a uma luz artificial. Senti algo macio sob mim, lençóis de seda acariciavam meus joelhos enquanto meu corpo pressionava outro corpo logo abaixo de mim, minhas pernas apertando o tronco do estranho. Minhas mãos apertavam minha espada contra o pescoço da pessoa que estava sobre meu domínio e, ao levantar os olhos centímetros a mais, vi Nico me encarando com olhos arregalados e as mãos erguidas ao lado do corpo em rendição. Suor pingava de minha testa e arregalei os olhos ao reconhecer a pessoa. Soltei a espada ao lado da cama, o baque de metal enchendo o quarto de hotel que contava apenas comigo e Nico, e, antes que pudesse pensar, agarrei o pescoço de Nico com todas as minhas forças como um náufrago se agarra a um bote salva-vidas. Senti seu cabelo roçando meu nariz, seu aroma amadeirado enchendo meus sentidos, e me revezei entre rir e chorar ao perceber que o pesadelo acabara e eu estava à salva nos braços de Nico, no abraço reconfortante do filho de Hades.

— Está tudo bem agora, eu estou aqui com você. – Sua voz calma e tão próxima ao meu ouvido me fez arrepiar de uma forma boa e me apertei ainda mais contra ele, se é que isso era possível. Seus dedos passeavam por meu cabelo enquanto sua outra mão se apoiava na base de minha coluna. – Você estava tendo um pesadelo e eu te chamei várias vezes, mas nada adiantava. Acabei pegando no seu braço e foi quando você acordou e a gente acabou assim... Me desculpe, eu...

— Não foi culpa sua. – Murmurei contra seu pescoço e pude ver, com gratificação, os pelos ali se arrepiarem. – A culpa é dele, sempre foi culpa dele.

— Quem?

— O Mestre. – Rosnei e me forcei a levantar a cabeça encarando os olhos negros e profundos de Nico. Ver tamanha preocupação e carinho naqueles orbes fez as lágrimas voltarem aos meus olhos e um soluço angustiado irromper de meu peito. – Ele matou minha avó. Ele a matou! O ataque cardíaco foi uma mentira. Ele mandou o capanga dele na casa dela para forçá-la a trabalhar pra ele, mas ela se recusou. Ele fez ela se matar para me proteger. É culpa minha também! Se eu não fosse tão despreparada....

— Swan nada disso é culpa sua! – Nico se apoiou em um dos cotovelos e ergueu meu queixo com a outra mão, me fazendo ver seus olhos brilhantes e determinados me encarando. – Tudo é culpa dele e nós vamos fazê-lo pagar.

— Mas aí é que está, ele já nos espera! – Gemi, angustiada, o que fez Nico erguer a sobrancelha em confusão. – Ele sabe que estamos a caminho do esconderijo dele e espera ansiosamente por mim. Disse que matará cada um de vocês em minha frente e me forçará a trabalhar para ele. Eu não posso perder mais ninguém. Não conseguiria suportar! Mesmo que eu tenha de morrer no processo.

— Você acha que eu deixaria isso acontecer? Por acaso se esqueceu da promessa? – Ele vociferou zangado, como se apenas pensar nessa possibilidade fosse insuportável. – Vamos sair todos juntos dessa, ninguém ficará para trás. Eu prometo!

— Por favor, não faça promessas que não pode cumprir di Angelo. – Sussurrei sentindo um aperto no peito. Fazer esse tipo de promessa nunca acaba bem. – A própria profecia fala que alguém ficará para trás.

— Profecias são metafóricas. Não leve tudo ao pé da letra. – Ele zombou com seu sorriso malandro o que acabou por tirar um sorriso de mim também. – Nós vamos acabar com esse monstro como acabamos com todos os outros que ousaram se colocar em nosso caminho e voltaremos são e salvos para casa, va bene?

Acenei em concordância mesmo que parte de mim ainda achasse que ter um final feliz assim era fantasioso demais para uma missão com uma profecia tão obscura.  Mas Nico estava dizendo aquilo e ele era um herói, meu coração clamava para acreditar nele e eu aceitei sua decisão ao menos uma vez. O quarto silenciou enquanto eu finalmente olhava ao redor. Estávamos no quarto de hotel que eu dividia com as meninas, mas nenhuma delas estava à vista. Olhei para minha cama, onde Nico ainda repousava sob mim com um sorriso calmo, e logo encarei minhas roupas. Um short jeans coberto com moletom preto e gigantesco em mim onde a forma branca de um morcego repousava bem no centro do meu peito. Batman. Inspirei o aroma que fluía da roupa e sorri para o garoto deitado a minha frente.

— Posso saber por que estou com seu moletom?

— Bem... espera! Como sabe que é meu? – Ele questionou com seu típico sorriso de lado e a grossa sobrancelha negra erguida.

— Primeira dica, é preto! – Revirei os olhos e Nico bufou. – Segundo está encharcado com o cheiro do seu perfume que eu reconheceria em qualquer lugar.

Nico me encarou por alguns segundos com os olhos brilhando e um sorriso sacana nos lábios que me fez ruborizar.

— Depois que você voltou à terra firme no penhasco acabou desmaiando de cansaço e te trouxemos de volta para o hotel. Não sabe o quanto foi difícil passar pela Venília no hall de entrada, com você nos braços. Ela ficou gritando: “Você me trocou por uma bêbada desmaiada, Nicolas. Blá, blá, blá.” – Ele riu relembrando a cena enquanto eu bufei de raiva da italiana de meia tigela. Nico, vendo meus olhos em fúria, engoliu em seco e voltou ao relato. – De qualquer forma você ainda estava tremendo, seus lábios brancos como gelo, então peguei um dos meus moletons antes que Percy viesse com seu papo de irmão ciumento e te vesti. Na verdade, achei sua cara e fica bem melhor em você do que em mim.

Ele analisou meu corpo cuidadosamente como um complemento a sua fala e eu senti meu estômago revirar principalmente ao perceber, de verdade, a posição em que nos encontrávamos. Eu sentada sobre o tronco de Nico, ele erguido nos cotovelos com o rosto a centímetro do meu tronco. O silêncio que caiu desta vez foi mais pesado e eu comecei meu caminho para longe do filho de Hades, mas algo me impediu. A mão de Nico se prendeu em minha cintura antes que eu pudesse me mover mais do que alguns centímetros. Rapidamente ele se sentou, as costas contra a cabeceira de madeira da cama, e me puxou contra si. O choque entre nossos corpos foi inevitável assim como o gemido que saiu de meus lábios entreabertos. Ouvi o suspiro de Nico ante meu gemido e impedi com todas as minhas forças que outro saísse. Nem mesmo ar conseguiria passar entre nossos corpos colados, as mãos dele pousadas na minha coxa e cintura transmitiam verdadeiras descargas elétricas pelo meu corpo agitado. Senti meu coração palpitar enquanto o sangue esquentava meu corpo assim como a respiração irregular do garoto colado em mim. Meu cérebro gritava para escapar dos braços fortes deles, mas meu corpo clamava por mais daquele toque, daquele suspiro. Meus lábios clamavam para provar os dele, entreabertos e convidativos. Os olhos de Nico alternavam entre meus olhos e minha boca enquanto eu sentia seu peito dançar junto com o meu, uma dança sensual e desconexa que apenas eles entendiam. A voz dele saiu rouca, o que fez minhas pernas bambearem e todo o meu corpo ser firmado por sua mão presa contra minha cintura.

— Swan, eu.... – Ele murmurou com o rosto cada vez mais próximo do meu, seu perfume mandando meu juízo para o espaço assim como nossas regras de amizade que pareciam cada vez mais ultrapassadas.

— Você...? – Incentivei, minha voz um mero sussurrou rouco que fez Nico fechar os olhos como se quisesse apreciar cada momento.

— Eu preciso....

Sua voz parecia música e eu estava completamente hipnotizada ansiando pelo resto de suas palavras que foram interrompidas pelo grito agudo e bem feminino vindo da porta do quarto.

— Bela adormecida está na hora de acordar! Temos uma missão para cumprir.... – Ouvi Piper engasgar com as próprias palavras ao entrar no quarto e me virei lentamente em sua direção, ainda tragada pelo aroma de Nico e voltando aos poucos ao mundo real. Piper arregalou os olhos e fechou a boca com as duas mãos. – Oh minha Afrodite, que péssimo timing o meu!

E subitamente eu tive consciência de tudo. De mim, de Nico, da posição que estávamos e da nossa mais nova espectadora. Arregalei os olhos e num pulo saí de cima de Nico, mas não calculei bem a distância e acabei dando de cara com o chão.

— Swan! – Nico se inclinou para fora da cama me olhando com preocupação enquanto eu gemia de dor totalmente desconjuntada no chão gelado. – Você tá bem?

Ergui uma mão fazendo sinal de positivo já que o ar tinha escapado de meus pulmões com a queda e aos poucos me sentei, sentindo o quadril doer como o inferno. Piper correu em minha direção e estendeu a mão tentando esconder a risada presa nos lábios ao ver meu olhar zangado.

— Se não quiserem ser interrompidos é só deixar um aviso na porta. – Ela me puxou e logo cruzou os braços com a sobrancelha erguida. – Não sou Delfos pra ficar prevendo o futuro!

Meu rosto ardeu de vergonha enquanto Nico apenas se ergueu da cama com um sorriso fácil nos lábios como se o que estávamos prestes a fazer fosse algo normal e ele estivesse orgulhoso disso. Meu rosto avermelhou ainda mais com a possibilidade.

— Bem, já chequei e garanti que você está bem. – Ele falou me olhando fixamente e eu assenti com os olhos baixos e alisando o quadril ainda dolorido, uma forma de evitar seus olhos perscrutadores. – Então vou arrumar a mochila. Não se atrasem, saímos em uma hora!

E com esse último aviso ele se dirigiu à porta e saiu do quarto, não sem antes me lançar uma piscadela. Eu estava procurando um buraco aonde enfiar a cabeça quando ouvi a risada alta de Piper.

— E que checagem ele fez!

— Piper! – Gritei lançando um travesseiro em sua direção enquanto ela se desviava usando sua mochila como escudo.

— Falei apenas verdades. – Ela deu de ombros se esquivando do segundo travesseiro lançado. Seu sorriso era enorme. – Tudo bem, você ouviu o seu petit ami então vá se arrumar. E sem mais visitinhas!

— Jogarei outro travesseiro quando descobrir o que ‘petit ami’ significa! – Resmunguei, me dirigindo ao banheiro, enquanto Piper lançava um último beijo e saía pela porta do quarto, sua risada ecoando pelo corredor.

Logo entrei no box deixando a água fria acalmar minha pele ainda quente pelos toques do filho de Hades. Apesar de lutar para afastar os pensamentos dele, mal consegui esconder o sorriso que insistia em ficar nos meus lábios. Meu banho foi rápido e ajudou a clarear meus pensamentos. Esta era uma parte decisiva da missão em Roma, minha mente não poderia estar focada em nada além de passar para a próxima fase com todos os meus amigos vivos. A conversa com o monstro voltou a minha mente enquanto eu arrumava a mochila, os olhos vermelhos e suas palavras disputavam em minha mente com a visão de meus amigos mortos fazendo uma lágrima solitária escorrer por minha bochecha. De acordo com a profecia a missão em Roma estaria diretamente ligada à Nico e não saber que perigo ele teria que enfrentar fazia meu estômago revirar. No fim, focar na missão era focar em Nico mesmo que não da forma que eu esperava. Teorias e mais teorias rondavam minha cabeça no momento que fechei a porta do quarto, saindo para o corredor e dando de cara com meu irmão que me encarava com um misto de surpresa e alegria, até encarar meu rosto e franzir as sobrancelhas.

— O que houve? – Ele se aproximou colocando as mãos em meu rosto e me encarando com os olhos preocupados. – Você estava chorando?

— Não! – Respondi rápido e cocei os olhos com um sorriso. Odiava mentir para Percy, mas aquela era a melhor forma de mantê-lo longe de meus pensamentos mórbidos. – Foi apenas o shampoo. Nada demais!

— Ok. – Ele concordou desconfiado e engoli em seco. Não queria mais mentir e se ele fizesse mais perguntas não sei como escaparia. No entanto um sorriso calmo abriu-se em seu rosto e reprimi um suspiro aliviado enquanto sentia seus braços me rodearem. Relaxei instantaneamente, seu abraço me transmitindo a segurança que eu já conhecia de cor. Apertei-o contra mim quando sua voz soou abafada entre meus cabelos soltos. – Eu fiquei tão preocupado quando te tirei da água. Sei que um filho de Poseidon não se afoga, mas quando não te vi submergindo eu realmente acreditei que isso tivesse acontecido. Já disse que você não pode fazer isso comigo!

— Sei que ficou preocupado, mas não posso prometer que nunca mais ficarei em perigo. – Me afastei um pouco de Percy e encarei seus olhos verde-água, um reflexo perfeito dos meus. – Essa é a vida de um semideus, Percy. Você não poderá me proteger de tudo, eu tive que fazer aquilo senão pessoas teriam morrido. Você também poderia ter morrido....

— Eu sei. – Ele suspirou e colocou um cacho atrás da minha orelha beijando minha testa em seguida. – Mas somos irmãos e eu lutaria para te proteger até a morte.

— Você sabe que eu faria o mesmo!

— Sim. Mas somos mais fortes juntos. Uma gota nada pode fazer, mas uma enchente....

— Que eles enfrentem a enchente, então.

Percy retribuiu minhas palavras com um sorriso orgulhoso e um aceno de concordância. Meu irmão estava certo, a própria profecia previu que sozinha eu nada poderia fazer. Preciso de todos os meus amigos para que tenhamos ao menos a chance de destruir o Mestre. A morte é um risco que faz parte do trabalho e lutarei com tudo o que tenho para que ela não chegue àqueles que amo. Ergui os olhos para Percy e sorri, ele me abraçou de lado e caminhamos pelo corredor em direção ao elevador. No hall de entrada o restante do grupo já nos esperava e todos me abraçaram rapidamente alguns falando de minha coragem e outros de minha burrice. Totó, que sumia e aparecia quando bem entendia, estava na frente do grupo e saltou em meus braços no momento que me viu. Seu corpo minúsculo balançava-se alegremente e eu o apertei carinhosamente contra mim. Ri abertamente da narrativa de Leo sobre os fatos no penhasco enquanto saíamos do hotel em direção à rua iluminada apenas pelas luzes artificiais dos postes.

Decidimos por ir a pé, chamar dois táxis poderia levantar suspeitas demais e, em particular, caminhar para espairecer não me era uma má ideia. O vento frio bagunçava meus cabelos enquanto meus olhos focavam na lua cheia que enfeitava o céu. Estrelas pontilhavam o manto negro e eu me senti bem com toda aquela simplicidade, aquele momento de calma. Totó lambeu minha bochecha e latiu, seu focinho molhado fazendo cócegas em meu pescoço. Sorrindo, abaixei os olhos novamente, pronta para brincar com Totó, mas acabei vendo Nico me encarando intensamente, seus lábios entreabertos lançando sua respiração fria no ar. Ele se mantinha a certa distância como se quisesse me dar espaço. Mas para que? Instantaneamente lembrei-me do rápido momento em meu quarto, de suas mãos contra minha cintura e sua respiração enroscando-se com a minha. Um calafrio percorreu minha coluna e desviei os olhos. O que aquilo havia significado para ele? Ou melhor, o que aquilo significava para mim? Eu já admitira para mim que o que sentia por ele não era apenas amizade, era algo bem maior, tão grande que chegava a me sufocar em alguns momentos. Mas e Nico? Eu era um mero flerte para o famoso filho de Hades ou havia algo mais? Eu nunca teria coragem de ser direita, deixá-lo contra a parede, e não acredito que o di Angelo seria capaz de falar sobre esses tipos de sentimentos comigo. Eu era uma covarde e ele um orgulhoso, esse ciclo vicioso duraria para sempre. Pensar nisso apertava meu peito e me dava ânsia de vômito, quanto tempo mais eu aguentaria guardando tudo isso para mim?

Graças aos deuses o latido de Totó me fez voltar à realidade. Deixei os pensamentos voarem para longe quanto me dei conta que havíamos chegado à praça e logo nos vimos de frente à bela Fontana de Trevi. Como esperado, a praça estava vazia e o silêncio reinava no local sendo interrompido apenas pelo vento contra as folhas das árvores fazendo tudo parecer um cenário de filme de terror. Coloquei Totó no chão, que reclamou com um ganido irritado, e aproximei-me da fonte, a água turva pela brisa fria, enquanto a estátua de Netuno se erguia imponente no centro assim como eu me lembrava. Tudo estava como planejado e encarei Nico vendo-o se posicionar ao meu lado. Seu suspiro foi audível quando suas mãos pousaram na base da fonte deixando o poder de Hades fluir através das sombras que surgiram e se avolumaram ao redor do grupo. Assim como na noite anterior as sombras serpentearam pela água, subindo pela grande estátua e se encontrado no topo formando o elmo de Hades, mas, diferente de antes, Nico não cessou e deixou suas sombras crescerem ainda mais. O suor já brotava da testa do moreno quando as sombras revelaram algo mais. Abaixo do elmo palavras escritas em grego antigo surgiram piscando como luzes de natal.

Nas águas límpidas a moeda deve ser guardada

Assim como o desejo mais profundo e sincero

Do coração de sombras.

— De novo, não! – Nico suspirou limpando o suor da testa. Ele me encarou em cumplicidade – Já tentamos isso e não deu certo.

— Mas ontem você não fez seu desejo mais profundo e sincero. – Respondi com um olhar ameno. Apesar de querer estar ao lado dele em todos os momentos aquilo era algo que ele deveria fazer sozinho.

— E seu eu não souber? – Ele questionou, sua voz soando ansiosa como a de um garotinho.

— Você sabe. – Afirmei com confiança e apertei a mão dele. Seus dedos se entrelaçaram nos meus por um breve momento enquanto seus olhos buscavam nos meus uma âncora a qual se apoiar. – Acredito em você.

E aquilo foi exatamente o que ele esperava ouvir, pois acenou com um sorriso corajoso e soltou minhas mãos lentamente. Observei enquanto ele subia na beira da fonte e logo pousava seus pés em meio a água cristalina. Ele se manteve de costas para mim e o resto do grupo, que também o analisava de forma ansiosa. Pude ver suas costas arquearem com seu suspiro longo e pude imaginar perfeitamente seus olhos fechados e as sobrancelhas franzidas em concentração. Pensar em seu desejo mais profundo não era algo fácil para nenhuma pessoa e inconsequentemente me vi tentando adivinhar o de Nico. Seria ter sua mãe de volta? Bianca? Seria nunca ter tido de passar por tanta dor. Ou quem sabe não ser um semideus? As suposições continuaram a rodopiar em minha mente enquanto via Nico jogar uma pequena moeda prateada no meio da fonte, o metal fazendo a água espirrar para todos os lados com um som ameno. E este foi o único som durante longos segundos.

— Eu sabia que não funcionaria. – Nico bufou já colocando um pé novamente no parapeito da fonte, o tênis pingando contra a pedra antiga. – Só serviu para encharcar meus.....

Sua voz foi abafada pelo som alto e arranhando que se seguiu. A fonte tremeu e logo à frente da estátua de Netuno o chão começou a se abrir lentamente. A água sumiu na abertura que crescia a cada segundo, mas a fonte não chegou a ficar vazia mesmo depois que o buraco se abriu completamente revelando uma escadaria que descia para a escuridão. Engoli em seco, mas forcei meus pés a caminharem em direção à fonte pronta para seguir o filho de Hades a onde quer que aquele alçapão fosse parar. Mas não consegui chegar tão longe, pois no momento que meu pé se apoiou na beirada da fonte fui arremessada para trás com violência e caí sentada no chão.

— Swan – Nico gritou já pronto para pular da fonte em minha direção, mas neguei com a cabeça e me levantei com a ajuda de Percy e Jason. Balancei a cabeça, tentando normalizar minha visão embaçada, e logo pude ver uma espécie de campo de força brilhando ao redor da fonte.

— Eu estou bem, Nico. – Falei me aproximando o máximo que me era permitido enquanto os olhos do garoto me analisavam em busca de algum ferimento. – Só acho que não sou digna dessa missão. Terá de erguer esse Mjölnir sozinho, bravo asgardiano.

Brinquei o que fez Nico rir e relaxar um pouco. Ele ergueu os olhos e acenou brevemente.

— Não podemos atravessar. – Falei com pesar quando Nico pulou para dentro da fonte novamente e se dirigiu para a entrada sombria. Seus olhos se voltaram para mim como um imã ao ouvir minha voz. – Mas estaremos aqui esperando você voltar.

— Eu voltarei. – Ele prometeu com uma piscadela quando se virou e desceu os degraus molhados cautelosamente.

Minha última visão foi dos cabelos negros e revoltos, açoitados contra o vento, sumindo na escuridão desconhecida até o alçapão se fechar e a fonte voltar a ser calma e límpida, engolindo o filho de Hades e meu coração junto com ele.

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P.O.V. Nico

Era a terceira vez!

A terceira vez que a escada molhada e cheia de musgos me fazia escorregar. Equilibrei-me rapidamente, segurando nas paredes ásperas que estavam a centímetros do meu corpo.

— Droga de descida pro inferno! – Bufei e balancei as mãos, espalhando musgo pelo resto dos degraus. Foquei o olhar na escadaria a minhas costas, mas tudo o que vi foi o completo breu. A entrada havia se fechado e parecia que eu estava descendo há séculos na completa escuridão. Rolei os olhos, me impedindo de cair pela quarta vez. – Só espero que não encontre meu velho amigo Caronte no final porque conheço descidas bem mais agradáveis para o submundo do que essa.

Minha voz cessou no exato momento em que senti os degraus escorregadios serem substituídos por um piso irregular, mas, graças aos deuses, seco. As pequenas pedras se misturavam a areia onde meus pés afundavam enquanto eu continuava a caminhar em frente. Apesar das trevas que ainda me cegavam senti as paredes ao meu lado se ampliarem, formando um ambiente circular maior do que eu imaginava. O ar frio fazia meus pelos arrepiarem e o som de água pingando do teto era audível, com certeza estava em alguma caverna. O silêncio era sepulcral sendo cortado apenas pelo gotejar da água, até um barulho diferente soar repentinamente. Cerrei os olhos em completamente atenção e desembainhei minha espada negra com cautela enquanto o som arrastado e preguiçoso aproximava-se cada vez mais.

— Quem está aí? – A pergunta saiu firme e raivosa, aguçando a audição já que a visão era nula. Praguejei baixo quando areia entrou nos meus tênis enquanto me firmava na posição de ataque, mas minha atenção continuou naquele que se aproximava. O som de passos era nítido agora, mas nada de respostas. Apertei o punho da espada, um rosnado irado saindo de minha garganta involuntariamente – Mostre-se, agora!  

— Sempre tão explosivo! – A voz que soou era grave e.... familiar? Logo ouvi o som de uma espada sendo desembainhada a poucos metros de mim, era tão negra quanto a minha, mas uma luz espectral rodeava a lâmina iluminando parcamente a caverna no processo. Mas o rosto da criatura ainda era uma incógnita. A voz voltou em tom amargo e franzi as sobrancelhas com a estranha familiaridade que me transmitia – Tudo bem, sei que é bem clichê, mas....

O ser mudou a espada de mãos rapidamente e meu corpo retesou, preparando-se para o ataque. Mas meu oponente continuou plantado no lugar e apenas estalou os dedos livres fazendo uma luz repentina surgir do alto da caverna, iluminando o ambiente tão rápido que me fez cerrar os olhos por segundos. Quando tornei a abrir os olhos percebi, estupefato, que não poderia estar menos preparado para o que vi. Ou melhor, para quem vi.

O sorriso sarcástico, os cabelos negros grudados à testa, o corpo alto e esguio, os olhos como ônix brilhantes, a voz profunda e amarga. Um espelho perturbador sem vidro algum separando os dois lados.

— Eu sou você!

Pisquei os olhos, a surpresa dando lugar à frustração por fazer parte de mais um dos joguinhos dos deuses. Minha sósia apertou o punho da espada e passou a caminhar lentamente em um círculo, me estudando cuidadosamente.

— Imaginei que não se surpreenderia por tanto tempo. – O clone bradou, girando a espada com habilidade e me encarando com um simples levantar de ombros. – Não é comum para nós demonstrarmos tanto sentimento, não é?

— Sinceramente não estou com tempo nem paciência então qual é o teste? – Vociferei querendo acabar logo com tudo aquilo. Passei a me movimentar em círculos para manter a distância que ele insistia em diminuir. – O que tenho que conseguir para você?

— Conseguir para mim? – A sósia riu abertamente, jocosa, fazendo minha fúria aumentar ainda mais. – Não, não, o teste é simples. Você tem que me derrotar.

— Apenas isso? – Questionei com uma sobrancelha erguida em confusão.

— Exatamente. – O clone sorriu largamente, um desafio nítido nos olhos predadores. – Ou o grande herdeiro de Hades está com medo de enfrentar a si mesmo?

Aquela foi a gota d’água. Em um salto investi contra ele que bloqueou o golpe com facilidade fazendo o som de metal contra metal ecoar pela caverna. Puxei minha espada e tentei um novo golpe direto em suas costelas, mas a sósia se esquivou com rapidez, girando em torno de si e me acertando direto no estômago com o punho da espada. Senti o ar sair de meus pulmões e a dor se alastrar pelo meu corpo, mas me mantive de pé e encarei meu oponente com os olhos em chamas.

— Derrotar a si mesmo não é tão fácil assim. Sei todos os seus golpes, todos os seus movimentos. - Ele me encarou com escárnio enquanto eu corria em sua direção, a espada erguida e pronta para um golpe certeiro em seu peito. No entanto ele se abaixou no último minuto, rolando para o lado e ser erguendo em um salto perfeito para logo chutar a parte de trás de meus joelhos ainda bambos pelo pouso recente. Cai a sua frente, ajoelhado e com a cabeça baixa para normalizar a respiração, minha espada a apenas centímetros de mim. Ele se aproximou ainda mais e sorri comigo mesmo por seu descuido. Estiquei os dedos lentamente para minha arma, esperando que ele estivesse no ponto perfeito para o golpe. Quando meus dedos se fecharam contra o punho da espada o vi pisar sobre ela, impedindo-me de erguê-la. Ergui a cabeça, preparando-me para lutar com as próprias mãos, quando vi os olhos felinos do meu reflexo me encarando com superioridade, o sorriso sarcástico tão largo que parecia pronto para me engolir enquanto sua voz soava feroz. – Principalmente, sei todos os seus pensamentos e sentimentos....

Impulsionei meu corpo para cima no exato momento em que ele pousou suas mãos contra minhas têmporas, empurrando-me para baixo novamente. Surpreso, encarei profundamente seus olhos que agora pareciam pequenos furacões, a íris rodopiando em preto e dourado, enquanto sua última frase ecoava em minha mente parecendo cada vez mais distante. Logo tudo ao redor pareceu estar distante, como se minha alma e meu corpo houvessem se separado para sempre. Pisquei freneticamente e percebi que não estava mais na caverna. Na verdade, não estava em nenhum lugar no mundo real já que o ambiente parecia cinza como uma foto antiga há muito tempo esquecida. Minha sósia havia sumido e a minha frente havia um enorme e luxuoso hotel.

Um hotel completamente em chamas.

Senti minha garganta travar quando as memórias retornaram como uma enchente. Eram minhas memórias, mas pareciam tão recentes como se houvessem ocorrido há segundos. Algo estalou em minha mente e encarei minhas mãos. Elas estavam menores do que eu me lembrava e, quando encarei uma poça cheia aos meus pés, vi meu reflexo. O reflexo de um Nico com dez anos com os olhos vermelhos e molhados por lágrimas. Eu estava vivendo aquele dia terrível novamente. Meu coração apertou como se fosse me sufocar e olhei para o lado, para a mão que segurava a minha com força. A garota ao meu lado era tão linda quanto eu me lembrava, os cabelos escuros voando contra a fumaça intensa do incêndio, o peito agitado com os soluços e os olhos brilhando de tristeza. Ver minha irmã ao meu lado, me segurando junto a si de forma protetora, fez meus olhos arderem ainda mais ao perceber o que perdemos naquele dia. As lembranças do Nico mais novo eram tão recentes que me fizeram engasgar. Minha mãe embalando-me em seus braços protetores enquanto nos contava, aos risos, uma de suas aventuras. Eu amava o som de sua voz. Tudo estava tão perfeito até o som de um estrondoso trovão soar acima de nossas cabeças e, em um piscar de olhos, nossa casa havia desmoronado levando minha mãe junto consigo. Na época eu e Bianca não sabíamos como havíamos conseguido chegar do lado de fora do hotel são e salvos, algo que também assustou os bombeiros que chegaram ao local, minutos depois do ocorrido. Hoje eu saberia explicar. Hades conseguiu nos tirar, mas não minha mãe. Ele a deixou novamente para morrer nas mãos de seu irmão. Senti a raiva me consumir, mas o garoto sentia apenas uma dor intensa ao perceber que nunca mais ouviria a voz que tanto amava. Sentia-me preso dentro do jovem Nico. Ele apenas chorava e agarrava a irmã como se fosse sua última salvação enquanto eu bloqueava todos esses sentimentos, transformando toda a dor em raiva pura. Bianca apertou os braços ao redor de mim e sussurro por sobre a cacofonia de som de sirenes e gritos.

— Não chore, mio soldatino. – Ela afastou meus cabelos dos olhos e ergueu meu rosto, seus dedos macios enxugando minhas lágrimas e seus olhos negros como os meus tão profundos que alcançavam minha alma. – Eu sempre estarei contigo.

Naquele momento senti o coração do garoto se fechar tanto quanto o meu. Não queríamos sentir tanta dor, tanto sofrimento. Ele limpou os olhos, sua feição tristonha se tornando série e resoluta enquanto encarava os olhos da irmã. Bianca depositou suas mãos nas têmporas dele e logo vi seus olhos castanhos se tornando pequenos redemoinhos, lançando-me num vórtex vertiginoso. Logo que abri os olhos novamente estava de volta à caverna, minha sósia com o sorriso voraz esperava pacientemente enquanto eu me erguia ainda tonto. A memória tão dolorosa pareceu me incendiar ainda mais. Balancei a cabeça, focando os olhos no meu oponente, e avancei. Ele desviou facilmente com uma risada alta como se tudo aquilo não passasse de uma piada.

— Porque tão irado? – O clone investiu contra mim pela esquerda causando um corte em meu braço. Vi o sangue escorrer do ferimento, mas o pior foi a lembrança que veio com ele. Eu não tinha mais de dez anos, garotos riam de mim, me empurrando e me batendo. Foi rápida, mas tão nítida que fez meu estômago embrulhar. Encarei meu oponente com os dentes rangendo. Ele retribuiu o olhar com desdém. – Isso não significa nada para nós. Sentimentos são uma fraqueza, não é o que vive dizendo para si mesmo?

— Sim! – Gritei descontrolado girando nos calcanhares e atacando-o nas pernas. Ele saltou graciosamente para trás fazendo sua espada me atingir nas costelas. O sangue veio instantes depois junto com mais uma memória. O Cassino Lótus, o abandono, a esperança de ver minha mãe entrando pelas portas ou meu pai desconhecido vindo me buscar. Pisquei freneticamente, fugindo de minha própria mente. – Qual o sentido de tudo isso?

— As pessoas nos decepcionam, as pessoas morrem. – Ele ignorou minha pergunta, voltando ao seu monólogo enquanto me rodeava como um predador. Suas palavras mergulhavam fundo em minha mente, minhas palavras. Ele parou às minhas costas e ergueu a espada, desferindo um golpe contra meu ombro, mas desviei e nossas espadas se cruzaram com um som agudo. Tirei os cabelos suados da testa e ele refletiu meus movimentos. – Só precisamos de nós mesmos.

— Você sabe exatamente o que penso, já entendi! – Rosnei, bloqueando seu golpe contra meu pescoço, mas não fui rápido o suficiente quando sua perna atingiu minhas costelas no exato lugar do ferimento. Caí no chão, minhas mãos apoiadas contra a areia marrom enquanto tentava puxar o ar de volta para meus pulmões. Rangi os dentes quando ele puxou meus cabelos para trás me fazendo encará-lo mais uma vez. Arregalei os olhos quando suas íris voltaram ao turbilhão de preto e dourado. – Não, não!

Cerrei os olhos, esperando que quando os abrisse não visse o hotel em chamas novamente. Mas o que vi era tão ruim quanto. Estava em um ferro-velho gigantesco e uma batalha se desenrolava a minha frente. Caminhei apressadamente, desviando de restos de máquina, enquanto tentava discernir quem lutava. A medida que diminuía a distância pude ver os cabelos negros de Percy enquanto ele corria para o autônomo que parecia atacar uma garota de cabelos negros e olhos azuis faiscantes.

— Thalia! – Murmurei e apertei o passo até ver outra garota que surgiu pelas pernas do monstro. Os cabelos negros presos em uma trança já bagunçada pela luta e a pele morena brilhando em prateado com a áurea das Caçadoras de Ártemis. Bianca. Meus pés mal tocavam o chão. - Bianca. Bianca!

Cheguei a ela no exato momento em que entregava algo para Percy fechando sua mão sobre a dele enquanto o encarava com o olhar triste e determinado.

— Diga ao Nico que sinto muito!

Percy pareceu atônito e nada pode fazer quando Bianca correu em direção ao autônomo. Pus-me em sua frente com os braços abertos, a esperança corroendo meu peito. Eu estava ali, poderia salvá-la! Ela correu até mim.... e me atravessou. Arregalei os olhos tocando em meu peito. Eu não passava de um fantasma naquela visão. Virei-me rapidamente, vendo Bianca chegar ao autônomo e escala-lo.

— Bianca, não faça isso! – Gritei com todas as minhas forças tentando subir no robô atrás dela, mas minhas mãos simplesmente atravessavam a lataria. Ergui os olhos vendo-a sumir dentro daquela coisa. Meu peito ardia como se possuído por mil sois. – Saia daí. Não faça isso!

Mas minha voz era como o nada. Ouvi vozes gritando o nome de minha irmã, suplicando o mesmo que eu. Ergui a cabeça e vi Percy com os olhos arregalados e o objeto de minha irmã seguro entre seus dedos. Uma estatueta de Hades. Cerrei os olhos, lembrando-me do momento que Percy me contou da morte de minha irmã, a estatueta de Hades encharcada de poeira e sujeira, a última que faltava para minha coleção. Quando abri os olhos novamente vi o autônomo se desmanchar em metal e engrenagens, sumindo no ferro-velho e levando minha irmã consigo.

Quando a poeira se dissipou me vi novamente na caverna. Mal percebi as lágrimas rolando por minhas bochechas, mas as espantei para encarar minha sósia mais uma vez. Seu sorriso já me irritava mais do que qualquer coisa no mundo, nunca havia odiado tanto a mim mesmo quanto naquele momento.

— Bianca morreu para pegar uma estátua estúpida. A culpa é nossa. – A voz do clone era amarga e me atingiu como um tapa. Eu não tinha argumentos e continuava a lutar contra o sentimento de culpa que se espremia em meu peito. Investi contra ele sem técnica ou planos, apenas com a crua vontade de matar a mim mesmo, fazê-lo para de falar, parar de me fazer sentir algo que tinha me proibido há muito tempo. Ele pareceu ler minha mente e ampliar seu sorriso de escárnio. O choque de sua espada contra a minha foi constante. – Mas isso não importa porque não sentimos culpa, não sentimos dor. Do que temos tanto medo?

— Eu não tenho medo de nada! – Rosnei e senti a espada dele passar por meu rosto, rápida e quase fatal.

O arranhão ardia indo da minha orelha até os lábios e quando senti o gosto cúprico de sangue mais uma lembrança me atingiu. O Cupido e suas perguntas insuportáveis, a dor da revelação, do amor não correspondido. Apesar de ter superado, a lembrança era tão real que me fez engasgar. Tentei revidar, mas meus braços não pareciam ter mais forças apesar da raiva me impulsionar. Desta vez meus joelhos cederam sozinhos, meus cabelos pingando suor contra a ferida recente. A espada caída ao meu lado era uma clara amostra de derrota. Mesmo eu ainda querendo lutar, meu corpo me fazia ceder. Senti ele se aproximar e simplesmente ergui o rosto contorcido pela raiva e frustração quando ele pousou os dedos frios em minhas têmporas. Não precisei olhar para seus olhos em turbilhão, sua voz foi suficiente desta vez.

— Sim, você tem medo de algo.

Tentei manter meus olhos abertos, mas pareceu ainda pior. A caverna começou a rodar cada vez mais rápido e quando tudo estabilizou eu estava em pé sobre a relva fresca. Uma floresta densa circundava o lugar e eu estava parado em uma das extremidades da grande campina. O vento trazia o aroma de canela e o som dos pássaros era o único no ambiente, tudo parecia tão pacífico que me fez suspeitar. Aos poucos um barulho diferente surgiu ao meu lado e foi aumentado aos poucos, como se eu acabasse de emergir da água. Logo discerni as vozes que gritavam do meu lado esquerdo: Percy, Annie, Piper, Jason, Leo. Cada um deles segurava suas armas e conversavam algo apressadamente até Percy erguer a mão em direção ao outro lado da campina. Voltei o olhar para a outra extremidade e logo vi criaturas surgindo do meio das árvores. Eram monstros estranhos, nenhuma raça que eu já tivesse visto, e seus guinchos eram altos e perturbadores. Estava pronto para pegar minha espada e partir para o ataque, mesmo que não me lembrasse de nada daquilo em meu passado como ocorreu com as outras visões, até sentir uma mão se entrelaçar a minha. Surpreso por não ser apenas um fantasma daquela vez, ergui os olhos para meu lado esquerdo, aos poucos descobrindo a dona da mão que me segurava. A pele morena brilhava contra o sol, seus lábios cheios estavam presos em um sorriso e seus olhos verde-água encaravam os meus com cumplicidade e esperança. Swan parecia ainda mais linda do que eu me lembrava, os cachos castanhos soltos deixando seu aroma fluir. Canela e o toque de menta no fim. Sorri e agradeci aos deuses por poder apertar meus dedos contra os seus e sentir seu calor tão próximo. Logo arregalei os olhos ao perceber aonde estávamos, encarei os monstros que pareciam cada vez mais próximos e voltei os olhos para a garota ao meu lado. Swan desenlaçou nossas mãos carinhosamente e acenou em minha direção, a determinação em seus olhos fazendo um orgulho subir em meu peito. Minha vontade era pegá-la no colo e deixa-la o mais distante possível da batalha, mas parada ali, a espada brilhante em mãos e a postura feroz, eu via a guerreira que ela se tornou. Ela estava pronta e eu estaria ao lado dela para enfrentar qualquer coisa.

As espadas entraram em ação, icor de monstros se espalhando pela grama verde. Os gritos e urros pareceram se embaralhar em minha mente, a luta passando como um filme por meus olhos. De repente me vi lutando contra uma criatura enquanto alguém se apoiava em minhas costas como uma proteção. Os cachos castanhos tão conhecidos voaram por meu ombro quando Swan girou às minhas costas acertando o monstro com o qual lutava e fazendo-o explodir em icor. Suas costas se separaram das minhas e eu quase protestei até ver o monstro em minha frente investindo contra mim. Desviei de suas garras e ele se encolheu fazendo espinhos grossos surgirem em suas costas. Veneno marrom pingava da ponta de cada agulha e corri em sua direção, pronto para desferir o golpe final. Minha espada penetrou nas costelas do monstro segundos depois dele lançar suas agulhas em todas as direções. Respirei fundo vendo a coisa cair morta aos meus pés e percebi que era o último monstro que faltava. Ergui os olhos deixando um sorriso satisfeito pontilhar meus lábios até ver as expressões apavoradas dos semideuses ao meu redor. Todos encaravam um ponto logo as minhas costas, o lugar onde eu estava minutos antes. Senti meu estômago embrulhar, um pressentimento ruim apertando meu peito. Virei-me para onde todos olhavam e tudo pareceu em câmera lenta: Swan em pé exatamente ao lado de onde eu estava, os olhos verdes arregalados e uma agulha envenenada projetando-se do seu peito, perfurando seu coração.

Meu mundo ruiu e mesmo que minha mente continuasse gritando que tudo era uma visão, meu coração mandou a vozinha pra vala mais profunda do submundo enquanto meus pés voavam em direção a garota.

— Não! Swan, não! – O desespero em minha voz era palpável e segurei-a nos braços no momento que seus joelhos desfaleceram. Ajoelhei-me, aninhando-a em meus braços enquanto via sua respiração diminuindo a cada segundo. Seu corpo ainda era quente contra o meu, mas seus olhos pareciam vazios quando focaram em meu rosto. Nunca me senti tão impotente, tão fraco, quanto naquele momento. – Você vai ficar bem, vamos te tirar daqui e....

— Nico! – Ela falou o mais forte que pode e logo sofreu um acesso de tosse. O sangue pingava de seus lábios e seu peito mal subia. A poça de sangue em sua camiseta me fez engasgar e as lágrimas fluíram por meus olhos sem que eu pudesse evitar. Eu não queria evitar! Seu sorriso foi singelo e senti sua mão tocar em meu rosto carinhosamente. Repousei minha mão sobre a sua e foquei em seus olhos, o verde tão opaco que me fez chorar ainda mais. Ela estava fraca e tão frágil. Estava.... Até pensar na palavra fazia meu peito apertar como se meu coração estivesse sendo arrancado dele. Aproximei meu rosto do seu quando seus lábios pronunciaram as palavras com dificuldade. – Eu te....

Suas últimas palavras. Sua respiração parou, o corpo desfaleceu completamente e pude sentir sua alma tomando o caminho dos mortos. A dor que me atingiu pareceu arrancar um pedaço da minha alma e meu grito foi lancinante e se estendeu até os confins da Terra. Tentei puxar sua alma de volta, mas nem um filho de Hades era assim tão poderoso, então abracei seu corpo e chorei sem me importar com mais nada. Chorei por dores antigas quando não me permiti chorar. Chorei por minha mãe, por Bianca, por mim. Minhas lágrimas banhavam o rosto sem vida enquanto soluços saltavam em meu peito, tão profundos e sinceros que me faziam tremer. E me dei conta que havia perdido tudo porque o que sentia era apenas o vazio. Ergui os olhos para o céu, minha visão ainda embaçada pelas lágrimas, e gritei com o resquício de fôlego que ainda havia em mim.

— A visão acabou! Tire-me daqui! Tire-me daqui agora! – Cerrei os olhos suplicando internamente para voltar àquela terrível caverna. Qualquer coisa era melhor do que estar ali segurando o corpo dela nos braços e sentindo que sua morte era real. Abri os olhos, mas continuava na floresta e Swan continuava em meu colo. Meus olhos ardiam, os dentes cerrados em desespero. – Por favor! Eu não aguento mais. Preciso voltar. Você estava certo, eu tenho medo! Medo de ser abandonado novamente, medo de amar, medo de não conseguir salvar os poucos que permito amar, medo de perdê-la. Não posso perdê-la....

Fechei os olhos fortemente e apenas apertei a garota contra mim. Daria tudo pra trocar de lugar com ela, para ver os olhos verdes-mar mais uma vez. Minha testa foi de encontra a dele e apenas me afundei na dor. Senti o ar ao meu redor oscilar e quando abri os olhos estava de volta à caverna. Meu peito se encheu de alívio até perceber que um peso permanecia sobre minhas pernas. Quando olhei para baixo vi o corpo de Swan ainda em meus braços, seus olhos vidrados no nada enquanto o peito perfurado ainda expelia sangue mesmo que a agulha tivesse sumido. Meu inferno pessoal. Rangi os dentes, os olhos erguendo-se para o sósia a minha frente com o típico sorriso nos lábios.

— A linha é tênue entre o amor e a destruição. – Ele murmurou com superioridade, a espada negra e brilhante rodando em sua mão. Eu continue ajoelhado, meus braços negando-se a deixar o corpo de Swan longe de mim. – Ela morreu. O que isso muda?

— Tudo. Isso muda tudo! – Berrei descontrolado. Finquei os dedos na pele macia do braço da garota e deixei meus olhos sobre os do meu oponente, meus lábios derramando palavras como enchentes. – Eu...eu não consigo sozinho. Amar não significa destruir. Amar é ter esperança, é confiar, é dar um pouco de si a outros e receber um pouco deles em si mesmo.

— Pura idiotice! Nós não pensamos assim. – O clone esnobou e apontou a espada em minha direção. – Acima de tudo, você ainda não me derrotou.

— Eu estava errado. Errado sobre não querer sentir e sobre pensar no amor como uma fraqueza. – Murmurei, desviando os olhos para a garota em meu colo. Apesar de tudo eu sorri tristemente ao perceber o sentindo de tudo aquilo. Ergui os olhos com determinação. - Bianca me avisou sobre o rancor ser o mal dos filhos de Hades e eu não dei ouvidos. Eu me fechei e me afastei de tudo e todos. Deixei a raiva me consumir, transformei a dor em ira. Mas eu estava errado. Eu preciso sentir e ela me fez sentir. Preciso sentir a dor, a tristeza, a saudade. Preciso sentir tudo para que não seja mais como você! Isso me faz forte, este é o sentindo disso tudo. Era o que queria ouvir? Não vou deixar o rancor e a raiva me controlarem para poder derrotá-lo. Se esta é minha derrota então aceito a morte com prazer.

Estufei o peito no momento que a sósia crispou os dentes, como um predador, e ergueu a espada, pronto para atravessá-la em meu peito. Apesar da coragem, fechei os olhos esperando pelo impacto, pela lâmina cortante contra minha carne, mas nada aconteceu. Logo o peso em meu colo sumiu como se levado pelo vento e abri os olhos de repente. O corpo de Swan havia sumido e quando ergui a cabeça não vi mais minha sósia. Em seu lugar estava Hades, a túnica preta arrastando no chão poeirento e as mãos cruzadas nas costas com toda a altivez e superioridade de sempre. Seus olhos me encararam e, surpreso, vi um mínimo sorriso abrir-se por trás da volumosa barba, sumindo tão rápido quanto surgiu.

— Era exatamente o que queria ouvir.

— Pai? – Questionei com a voz rouca e arranhada por ter sido forçada ao extremo minutos antes. Meus olhos perscrutaram o lugar, mas nada do meu oponente. Pisquei confuso. – Então eu passei no teste?

— Sim. Você conseguiu dominar sua ira e rancor, deixou-se sentir o luto que estava guardado por anos. – O deus juntou as mãos à frente do corpo enquanto me observava. Ergui-me do chão, guardando minha espada, e refreei o suspiro de alívio por sair de todo aquele pesadelo. Apenas parei em frente à Hades enquanto seus olhos me estudavam. – Um teste extremo para um filho de Hades, mas você passou com maestria.

Ele apenas inclinou a cabeça, provavelmente a única forma de parabenizar que ele se dignava a usar, e repeti seus movimentos. Assim que ergui a cabeça vi sua mão estendida em minha direção, seus dedos se moveram fazendo uma fumaça rodopiar e, de repente, um livro surgiu em sua palma. O título brilhava em uma capa vermelha. A Casa de Hades.

— O primeiro item de sua missão, use-o com sabedoria. Ele os guiará para o próximo teste. – Ele falou seriamente e me entregou o livro. – Também não se esqueça do que aprendeu aqui. Sua vida e a de seus amigos poderão depender disso.

Acenei afirmativamente e Hades ergueu sua mão para o outro lado da caverna fazendo a escadaria reaparecer. Apertei o livro contra meus dedos e caminhei para as escadas até ouvir a voz de meu pai soar novamente.

— Aliás filho, sobre seu desejo mais profundo. – Arregalei os olhos para Hades que me encarou firmemente, os olhos tão negros quanto os meus. Podia jurar que vi certo orgulho nas irias brilhantes quando suas últimas palavras voaram até meus ouvidos. – Apenas olhe com atenção. Pode estar mais perto do que imagina.

E a caverna voltou à escuridão total. Subi os degraus molhados sem me importar tanto com todos os deslizes, minha mente rondando as palavras de Hades e tudo o que aquele teste significou. Eu não podia, não queria, ser o mesmo Nico que enfrentei naquela caverna. Então deixei que as memórias reprimidas enchessem minha mente, tentando tirar o melhor delas. Deixei a saudade de Bianca e minha mãe inundarem meu peito, me deixei sentir e foi como respirar novamente depois de anos prendendo a respiração. Foi como tirar um peso das costas que eu nem ao menos sabia que estava levando. Foi bom e me trouxe uma profunda paz. Já conseguia ver a luz da lua no fim da escadaria, a água da fonte entrando calmamente pelo alçapão reaberto, quando o último pensamento bom me atingiu. Eu não queria ser melhor apenas por mim, eu queria ser melhor por ela, para ela. Pensar nela fazia meu corpo arrepiar e era o complemento perfeito para a paz que me encheu. Foi ela que começou a mudança em mim e negar isso àquela altura era impossível. Seu sorriso, seu aroma, seus olhos. Tudo nela despertava o melhor de mim. E ser seus olhos preocupados e ansiosos a primeira coisa que vi quando emergi da fonte me fez lembrar a visão de sua morte, os olhos verdes tão vivos que ficaram opacos e o sangue vermelho se derramando por seu corpo. Aquilo despertou algo em mim. Um desejo, uma necessidade, uma verdade.

Eu precisava dela mais do que qualquer coisa no universo.

Não lutei quando meus pés me guiaram pela fonte com velocidade, meu corpo ansiando pela proximidade dela. Minha respiração era descompassada e saltei da beirada da fonte sem me importar com toda a água espirrada, meus olhos presos como que por magnetismo.Os olhos dela estavam brilhantes e surpresos. Acima de tudo, vivos.

— Di Angelo! – Sua voz era como música, me deliciando em cada sílaba. – Você conseguiu?

— Você está bem! – Minha voz saiu repleta de alívio. Aquela era a confirmação que meu coração ansiava. Minhas mãos voaram para seu rosto, acariciando suas bochechas e ignorando tudo ao redor. Vi suas bochechas corarem o que fez meu coração saltar. Ela era perfeita e estava viva. O murmúrio saiu de meus lábios como uma prece. – Você está viva.

Meu coração tomou as rédeas e deixei meu corpo ter aquilo que tanto desejava. Meus braços rodearam o corpo dela e quando estava presa ao meu peito deixei meus lábios tomarem o caminho para os seus como se já o conhecessem de cor. Foi rápido como um suspiro, um simples tocar de lábios, mas que pareceu durar milênios para mim. Seus lábios macios se moldavam aos meus com perfeição, seus olhos surpresos logo se fecharam fazendo-a se derreter em meus braços. Meus lábios buscavam se aprofundar nos seus como se afogassem em um profundo e belo oceano. Havíamos apenas nós naquele momento. Eu queria me perder naquele beijo e nunca mais ser encontrado.

Até que o pigarrear irritado de Percy fê-la se afastar de mim com um sobresalto, seus olhos arregalados em surpresa, os lábios entreabertos e molhados, as bochechas ruborizadas, as mãos ainda em meu peito deixando seu calor fluir por mim. Voltei ao mundo real como se acordasse de um torpor, os olhos piscando preguiçosamente e o sabor dos lábios dela ainda presos aos meus. Logo me dei conta de onde estava e o que tinha feito no calor do momento. Senti minhas bochechas queimarem e minha voz se perdeu na garganta. Não me arrependia do beijo, pelo contrário, beijá-la parecia ser a coisa mais certa que fiz em muito tempo. Mas será que ela queria aquilo? Será que não estraguei tudo de vez com aquele beijo impulsivo? Quando meu coração se acalmou finalmente fiquei bem ciente de todos os olhares voltados para mim. Annabeth sorria abertamente e seu olhar era astuto como se acabasse de confirmar uma teoria. Ela estava acotovelando Percy, provavelmente repreendendo sua interrupção, enquanto o filho de Poseidon tentava segurar a careta de ciúmes, franzindo a testa e com os lábios em uma linha fina. Piper sorria como uma maníaca e parecia se segurar para não soltar gritos de felicidade e bater palmas, o que me assustou um pouco. Leo estava de braços cruzados e seu sorriso era complacente, seus olhos voando para Swan e lançando uma piscadela. Ela pareceu ficar ainda mais vermelha, baixando os olhos, e eu cerrei os punhos até ver os olhos de Jason sobre mim. O sorriso do filho de Júpiter era cúmplice e sua piscadela amigável me deixou ainda mais ruborizado. Graças aos deuses havia Totó que pulou em meus braços e lambeu meu rosto em pura alegria, me fazendo sorrir e esquecer um pouco todos os olhares. Acomodei o cachorro e pigarreei, lembrando-me da última pergunta que saiu dos lábios de Swan antes que eu os tomasse para mim. Pensar naquilo novamente quase me fez gaguejar, mas controlei-me no último momento.

— Sobre a missão, eu consegui. Passei no teste. – Encarei a garota em minha frente. O vermelho em seu rosto havia diminuído consideravelmente e ela já conseguia me encarar sem ruborizar novamente, provavelmente focando o pensamento no problema atual e tentando esquecer o momento segundos atrás. No íntimo, esperava que ela tivesse tanta dificuldade de esquecer quanto eu estava tendo. Balancei a cabeça, voltando ao relatório. - Hades em pessoa me entregou o prêmio dessa missão e disse que ele nos levaria para o próximo teste.

Entreguei o livro para a filha de Poseidon, seus dedos encostando-se aos meus por segundos enquanto ela pegava o livro e o folheava com atenção.

— A Casa de Hades. Era um dos livros que estava na minha bolsa quando cheguei ao acampamento. – Sua voz parecia confusa quando terminou de passar todas as folhas do livro. Ela ergueu a cabeça em direção à Annabeth. – Mas como o livro vai nos levar para a próxima parte da missão?

Annie se aproximou e analisou o livro, seus olhos focando na última página.

— Espera, tem algo aqui. – Ela alisou a parte de dentro da capa final do livro onde um pedaço de papel estava grudado. Ela o puxou com cuidado e o ergueu diante dos olhos. Era amarelado e cabia na palma da mão. A filha de Atena franziu as sobrancelhas. – É um pedaço de pergaminho antigo, mas está completamente em branco.

Todos encaravam o papel amarelado, mas percebi que Swan estava com os olhos voltados para o livro, o cenho franzido em confusão.

— O pergaminho não estava no livro quando o li. – Ela pegou o livro novamente e focou os olhos no canto da última página onde palavras escritas em uma caligrafia caprichada brilhavam em dourado. Ela passou os dedos sobre o pequeno texto e ergueu os olhos para mim. – Nem esse texto.

— E se você tentar lê-lo? – Questionei diante do seu olhar e dei de ombros. – Bem, você é uma Língua Encantada e a pista para o próximo teste está no livro. Acho que vale a pena tentar.

— Faz sentido. – Percy concordou apesar de ainda me encarar ferozmente. Logo voltou os olhos para a irmã e piscou brincalhão, uma mudança de humor tão repentina que me fez arregalar os olhos. – Vamos maninha, faça sua mágica!

Swan engoliu em seco, mas concordou com um suspiro. Seus dedos apertavam o livro e ela voltou os olhos para o pequeno texto. Todos estavam tensos com a expectativa e quando sua voz soou pelo ambiente silencioso parecia mágica e hipnotizante.

Então os sete semideuses foram mandados para a Casa das Virgens em busca do próximo prêmio de sua missão.

Por um tempo nada aconteceu e todos olharam ao redor, ansiosos.

— Acho que não funcionou muit....

Mas a voz da filha de Poseidon foi interrompida quando a fonte começou a se movimentar. Todos os olhares se voltaram para a água que se movia em círculos cada vez mais velozes. Logo os redemoinhos se afunilaram formando um pequeno furacão composto de água e ar que foi aumentando cada vez mais. Ninguém conseguia se mover ante o fenômeno surpreendente e apenas apertei Totó contra meu peito quando o olho do furacão se voltou para nós e nos sugou para dentro do vórtice de água.

Tudo se embaralhou em minha cabeça, mas sabia que não estava sozinho ali por ouvir os gritos assustados de meus amigos bem atrás de mim. Mantive os olhos fechados, ouvindo o ganido assustado do cachorro em meus braços, e prometi a mim mesmo nunca mais rir das pessoas que passavam mal ao viajar pelas sombras comigo. Aquilo parecia muito, muito pior! Mas assim como a viagem nas sombras, poucos minutos se passaram até eu sentir o chão firme contra meus pés. O vento no local era forte, mas não me causou calafrios. Apesar da viagem em um vórtice de água percebi que não estava molhado. Firmei as pernas ainda bambas e forcei meus olhos a se abrirem apesar da forte luz do Sol que afligia minhas pálpebras. Logo vi todos os meus amigos ao meu lado, tão tontos e desnorteados quanto eu, e Swan à frente parecendo bem mais sã do que todos nós. Seus olhos estavam erguidos para o horizonte, focados em uma construção gigantesca a poucos quilômetros de onde aterrisamos. Voltei meus olhos para o lugar, reconhecendo em instantes.

Aquele era o Partenon.

Estávamos na Grécia!


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Notas finais do capítulo

Beijinho Nuda para animar os shippadores de plantão ♥
Próxima parada: Grécia!
Kisses and see you soon!



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